Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Crise na administração da privacidade

FREUD, CENA PRIMÁRIA ? II

Fernando Dias Campos Neto (*)

O homem tem direito à privacidade. Ela é prevista por lei. Somente "antileis" de exceção, como um AI-5 ou uma omertá mafiosa, poderiam encontrar pretextos espúrios para negar-lhe esse direito.

Mas, com a revolução científico-tecnológica, a privacidade vai se tornando um bem cada vez mais escasso. De fato, o desafio é avançarmos nesse terreno, sempre de forma democrática e transparente, beneficiando a todos com o progresso da ciência.

Se pesquisarmos a raiz da devassidão ou da promiscuidade, encontraríamos em Sigmund Freud a sem-razões dessa insanidades. Freud diria que ela deriva de uma "fixação" ou "regressão" à "cena primária" dos cinco primeiros anos da vida humana. Que quero dizer com isso? Que, para ele, toda noção de secreto pode ocultar um vínculo qualquer inconsciente com a experiência instintiva do bebê quanto ao que ocorria no quarto ou na cama dos pais.

Assim, toda sociedade secreta seria como que composta de neuróticos que, em última análise, são ainda os bebês que atacam ciumenta e invasivamente o espaço dos pais.

Essas criaturas guardariam em seu inconsciente bisbilhoteiro uma "concepção sádica do coito", quando a criança, um pouco mais velha, interpretou-o erroneamente por projeções de sua agressividade, não como um ato de amor, mas uma luta de vida e de morte entre pai e mãe.

As sociedades secretas (por que secretas?) só existem para exercer uma pretensa justiça paralela e fora da lei a mais óbvia, para nós cristãos um apelo do amor, uma "concepção amorosa do coito". Quando um adoentado "passa à ação" em fantasias de coito sádico vai lidar com o secreto agressivamente. E não só no conteúdo, mas na forma de seu comportamento.

Michel Foucault e Norberto Bobbio, bem como o velho George Orwell, são aqueles escritores que mais avançaram na profecia do momento em que lidamos com a necessidade de administrar a privacidade social nessa fase de vertiginoso desenvolvimento tecnológico.

A hipnose das sociedades secretas

O primeiro, em Vigiar e punir, como que intui o momento atual, ao estudar o microcosmo benthamiano de seu Panópticon. É uma arquitetura freudianamente regressiva, que Bentham pode ter criado para um zôo ou presídio. Com uma torre central, o Panópticon consiste num anel de celas que o cercam, incomunicáveis entre si, vigiadas constantemente do centro. Na torre, sabe-se que pode estar alguém, espionando. A completa invisibilidade do observador torna essa possibilidade sempre atual, numa "dissociação do ver-não ver".

A estrutura dessa construção insana remete-nos fatalmente ao quarto dos pais, onde o berço do bebê. A torre fálica é uma simbologia da cama onde a preocupação da criança dependente, a sua caminha, a cela panoptical. O devasso, por uma "transformação no contrário", termo de Freud para interpretar o que oculta o inconsciente no sintoma dessa "passagem à ação", torna-se de bebê irado e onipotente em dono (ou dona) da cama dos pais, na ocasião, o universo inteiro.

Se supormos, talvez com adequação, que a maioria das pessoas elaborou mal a sua "cena primária", nossa cultura sofre socialmente dessa limitação. Ela padece do secreto potencializado pelo número daqueles que a organizam, inclusive arquitetonicamente, em torno dos pruridos que movem a alcovitice.

A administração da privacidade estaria em crise.

Freud situa a necessidade dela em torno do que chamou "enamoramento", quando o amor une duas pessoas para o ato sexual, como que excluindo as outras. Dele vai resultar a família, não necessariamente burguesa… Aliás, Marx e Engels abandonaram a sociedade secreta da Liga dos Justos para fundar um partido. Abandonaram o lado "maçônico" e clandestino da luta pelos pobres por uma transparência de linguagem e comportamento. Se isso nem sempre é possível, devido a perseguições, é muito melhor e mais democrático.

As sociedades secretas que exercem uma hipnose pelo poder são um "nós" que, em sendo um "eu", mata impunemente (para isso existem!), opõem-se à concepção de democracia em que, reza a nossa Carta Magna, "todo o poder emana do povo", não admitindo qualquer instância paralela, qualquer "mão invisível".

Guerra do Golfo, "coito sádico"

Com o avanço da tecnologia e os ataques à privacidade, as pessoas passariam a ter alterações de linguagem e de conduta como uma péssima estratégia de defesa.

A espontaneidade dos sentimentos tolhida, a "verdadeira lei" desrespeitada, criam-se deploráveis teatros ? reality shows ? com a desagregação do íntimo, do sincero, do inteligente, do sagrado. Há quem se julgue adaptável a tais perspectivas superlativas?

Sempre houve o devasso. Mas não uma educação supostamente inteligente que o multiplicaria ao uso de uma linguagem telepática, alucinatória, subliminar. Sempre houve o crime, mas ele é um fenômeno marginal, não uma regra ou estratégia política.

Temo que a globalização perversa possa nos embarafustar por ínvios caminhos, em função dessa incapacidade de termos elaborado "socialmente" nossa cena primária.

Na torre do Panópticon está Sua Majestade, o Bebê. Não é uma anjinho assexuado como se pensava antes de Freud. Nem isento de agressividade, na frustração de sua dependência. Faz fantasias onipotentes com as armas que tem. Esvazia sugando, dilacera com os dentes, suja e envenena com fezes, "queima" com urina. Destrói aquela e aquele que se entregam à "luta devoradora" no leito conjugal…

O neurótico, fixado por aí, vai "passar à ação" criando outras armas, adultas, que vêm desses protótipos do ódio infantil, exercendo as mais variadas formas de sadismo pré-genital. O que é bomba atômica senão um ataque anal? Como a simples pichaç&atiatilde;o de estátuas e muros. Os incendiários não levam os bombeiros a urinarem como o Gulliver de Swift? As baionetas não são dentes furiosos?

Mas, no centro dessas regressões está a "cena primária". O que foi, por exemplo, em termos psíquicos, a Guerra do Golfo pela TV? Não seria "um coito sádico" entre os pais, que agora ameaça gratificar o sadismo do "bebê" regredido com uma segunda edição?

(*) Médico