Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Crise, preguiça e descaso com o leitor

JORNALISMO DIÁRIO

Luiz Egypto


A arte de fazer um jornal diário, de Ricardo Noblat, 174 pp., Editora Contexto, São Paulo, 2002; telefone (11) 3832-5838, e-mail: contexto@editoracontexto.com.br Lançamento no Rio, em 3 de dezembro, a partir das 19 horas, na Livraria Travessa (Ipanema); e em São Paulo, em 10 de dezembro, na Livraria Siciliano do Shopping Higienópolis.


No período em que dirigiu o Correio Braziliense, de Brasília (DF), o jornalista Ricardo Noblat transformou um inexpressivo diário chapa-branca num dos melhores e mais premiados jornais do país. Focado na cobertura local, o Correio soube conquistar um público fiel em sua área prioritária de circulação. E enquanto exerceu o cargo de diretor de Redação, Noblat e sua equipe pretenderam (e conseguiram) tornar o Correio um jornal de referência nacional ? ajudados pela proximidade circunstancial dos círculos do poder federal e calçados na decisão editorial pelo investimento na reportagem. A isso acrescente-se a ousadia gráfica e a qualidade do texto, a fuga feito o diabo da cruz da mesmice das pautas previsíveis e vontade expressa de, a cada dia, criar uma supresa para leitor.

Foi bom enquanto durou. Em outubro passado, no calor da disputa eleitoral, um definitivo enfrentamento com o governador do DF Joaquim Roriz (candidato a reeleição, afinal vencedor do pleito, com quem o Correio já havia trombado em ocasiões anteriores), reverberou na direção dos Diários Associados, grupo controlador do jornal, e produziu estragos irreparáveis numa experiência bem-sucedida. O assunto foi esmuiçado em edições anteriores deste Observatório [veja remissões abaixo]. Resumo da ópera: Noblat deixou a direção do Correio. Perdeu o jornalismo de qualidade, perderam os leitores.

Em meio ao tiroteio do faroeste candango, estava no prelo o livro A arte de fazer um jornal diário, que Noblat escreveu por encomenda da Editora Contexto e no qual embutiu "a maioria das lições que aprendi em 35 anos de profissão". Escrito em linguagem clara, formatado em tópicos curtos, o volume reúne uma fieira de "lições" ? "matéria ou tema ensinado ou explicado pelo professor ao aluno", na primeira acepção do dicionário Aurélio ?, mas sem concessões ao pernosticismo ou à arrogância. O autor entende do riscado, escreve bem e ilustra reflexões conceituais com histórias recolhidas ao longo de sua trajetória profissional.

Abaixo, a entrevista de Ricardo Noblat ao OI. Nas páginas seguintes, dois textos do primeiro capítulo de seu livro.

Como nasceu A arte de fazer um jornal diário? Por que e para que escrevê-lo?

Ricardo Noblat ? O livro me foi encomendado pela Editora Contexto. Ele inaugura uma coleção sobre Jornalismo. Sempre alimentei a idéia de escrever um livro assim voltado para estudantes de jornalismo e colegas de profissão. Mas só o fiz quando provocado pela editora. Penso ter resumido no livro a maioria das lições que aprendi em 35 anos de profissão.

A imprensa brasileira está contaminada pelo vírus do jornalismo declaratório ? o que significa embrenhar-se numa atividade essencialmente reativa aos fatos e quase sempre determinada pela agenda das fontes. Que riscos isso implica? Como superá-los?

R.N. ? O maior risco do jornalismo declaratório é o de tornar os jornais intragáveis. E eles se tornaram, sim. E o de estimular a preguiça dos jornalistas. E os jornalistas se tornaram preguiçosos, sim. Essa é uma das razões que explicam a decadência dos jornais. Os leitores querem ser surpreendidos com a publicação de histórias que desconhecem. Com a explicação de fatos que não entenderam direito. E com a antecipação de notícias que ainda estão sendo paridas. Os jornalistas sabem disso. Os donos de jornais também. Mas pouco
fazem para atender a essa justa demanda dos leitores.

Revistas e jornais parecem mais empenhados em conquistar clientes do que dispostos a atrair leitores. As estratégias comerciais estão se sobrepondo às políticas editoriais?

R.N. ? De alguma forma estão se sobrepondo, sim. Os jornais já apelaram para toda sorte de truques com o objetivo de vender mais exemplares. Todos os truques se esgotam rapidamente porque tudo o que os leitores desejam é um jornalismo de qualidade. E independente acima de tudo. Os jornais apostam pouco na qualidade. Falta-lhes também imaginação, ousadia, atrevimento, coragem para quebrar paradigmas. E quando se vêem apertados financeiramente, cortam páginas, mandam jornalistas embora, empobrecem o conteúdo, aumentam o preço do exemplar ? e querem mesmo assim vender mais.

Seu livro não esconde um tom professoral, como se o autor (também) estivesse se dirigindo a alunos numa sala de aula. A tática funciona bem, aliás. Com base em sua experiência no comando de redações, duas perguntas em uma: 1) como avalia os jovens jornalistas recém-egressos da universidade?; e, 2) os cursos de Jornalismo são mesmo necessários para a formação de jornalistas?

R.N. ? Acho que se deveria estabelecer cotas para jovens jornalistas nas redações. Quem tem menos de 25 anos leu pouco, viveu pouco, experimentou pouco. Os jovens que chegam
hoje às redações me parecem mais despreparados do que os de antigamente porque leram menos do que aqueles. Não sei se a exigência do diploma tem a ver com isso. Sei que o diploma é dispensável para que alguém se torne um bom jornalista.

O que você diria a um(a) jornalista que fosse começar hoje na profissão? Que objetivos deverá buscar, que armadilhas evitar?

R.N. ? Diria como disse Nelson Rodrigues certa vez: "Envelheça". Diria mais: leia muito; reescreva sempre; jamais fique satisfeito com o que fez; desconfie de tudo que lhe contem;
seja o primeiro a chegar na redação e, se possível,o último a sair. Se não estiver disposto a seguir tais regrinhas, vá procurar outro trabalho.

Como se forma um bom repórter?

R.N. ? As redações carecem hoje de bons formadores de repórteres. Eles são obrigados a se virar sozinhos, a aprender sozinhos. Os mais espertos acabam aprendendo. Mas muitos se perdem por falta de orientação. Somente numa redação se forma um bom repórter.

Qual a lição mais importante a guardar do episódio que culminuou com sua saída do comando da redação do Correio Braziliense?

R.N. ? A lição: que infelizmente tudo pode dar para trás na vida, até mesmo experiências bem-sucedidas e que alcançaram reconhecimento público. Isso é tanto mais verdade no setor de jornais ? o mais atrasado da área da comunicação.

O jornalismo é um serviço público. O jornalismo está em crise. Qual o futuro do jornalismo?

R.N. ? Não sei responder. Temo que ele vire um negócio a mais da indústria do entretenimento ? e não o principal.

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