Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Crônica de uma baixaria anunciada

DIPLOMA DE JORNALISMO

Maurício Tuffani
(*)



A primeira vítima, quando a guerra chega, é
a verdade
. Senador Hiram Johnson, 1917 [epígrafe
do livro The First Casualty (A Primeira Vítima),
de Phillip Knightley, 1975]



Pouco mais de dois anos após a primeira manifestação
judicial sobre a Ação Civil Pública contra
a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício
da profissão no Brasil, o debate sobre esse assunto continua
praticamente na estaca zero. Longe de haver uma discussão
e uma maior conscientização sobre o modo como é
regulamentada a profissão em nosso país e no mundo,
o que temos hoje não é nada mais que uma guerra de
desinformação, em que predominam ofensas, ocultação
de dados e desrespeito ao confronto de idéias.

O capítulo mais recente dessa história toda se deu
a partir da divulgação de uma decisão do Tribunal
Regional Federal da 3? Região (TRF-3), sediado em São
Paulo. No dia 2 de dezembro, o juiz federal convocado Manoel Álvares
anulou outra decisão, tomada em 23 de julho pela sua colega
desembargadora Alda Basto, que por sua vez havia suspendido, até
que fosse julgado pelo mesmo tribunal, o recurso da Fenaj contra
a sentença de primeira instância que em 10 de janeiro
proibiu em todo o país o Ministério do Trabalho e
Emprego de autuar e multar as empresas que contratam jornalistas
sem o diploma específico, além de obrigar o órgão
a fazer o registro profissional sem exigir formação
superior em jornalismo.

Na medida em que a notícia da nova decisão judicial
surgiu com uma reportagem minha, na quinta-feira (11/12), renunciei
a participar das discussões sobre ela que apareceram rapidamente
a partir de sua publicação na revista eletrônica
Consultor Jurídico com o título "Diploma
de jornalismo deixa de ser obrigatório novamente" <http://conjur.uol.com.br/textos/23398>.
Habitué que me tornei dos comentários sobre
o tema no site do Comunique-se, limitei-me dessa vez a acompanhá-los
sem fazer parte, da mesma forma que em relação ao
fórum do Consultor.

Ignorância sobre o Judiciário

Grande parte das manifestações, tanto de favoráveis
como de contrários à obrigatoriedade do diploma, consistiram
em criticar o que se desconhece. Vários comentários
demonstravam que seus autores não sabiam que a nova decisão
judicial não havia entrado no mérito da questão.
Em outras palavras, grande parte daqueles que comentaram o assunto
mal se deram conta de que o juiz convocado Manoel Álvares
não se posicionou a favor nem contra à exigência
do diploma para o exercício da profissão, mas decidiu
somente que deveria ser cumprida a sentença emitida em janeiro
deste ano pela 16? Vara Cível Federal de São Paulo
enquanto ela não for apreciada no mérito em segunda
instância.

É impressionante como ainda existem jornalistas de ambos
os lados dessa polêmica que continuam se referindo à
"liminar" da juíza federal Carla Abrantkoski Rister,
sem se dar conta que ela já emitiu há 11 meses uma
sentença definitiva de primeira instância. Nesse contexto
de desinformação sobre o tema, não faltaram
ofensas a essa magistrada e ao autor da nova decisão judicial,
da mesma forma que em julho jornalistas contrários à
obrigatoriedade do diploma fizeram o mesmo com a desembargadora
federal Alda Basto, cuja decisão foi comemorada pela Fenaj,
pelos sindicatos, e por muitos jornalistas e estudantes.

Não bastassem essas ofensas, vários comentários
demonstraram também a ignorância sobre a função
do Poder Judiciário. Acusações de fazer papel
de legislador, como as que foram feitas várias vezes à
juíza Rister, mas dessa vez dirigidas ao magistrado, atestaram
novamente o desconhecimento da atribuição da Justiça
de tornar sem efeito atos legislativos que conflitam com o Estado
de Direito. Por mais que acreditem na legalidade da exigência
da formação superior em jornalismo para o exercício
da profissão, cidadãos que se dizem preparados nos
bancos acadêmicos para exercer o jornalismo jamais deveriam
passar o recibo de que ignoram essa atribuição do
Judiciário, ou que não conseguem compreendê-la.

Desinformação deliberada

O grande mau exemplo desinformativo no recente capítulo
dessa novela foi capitaneado pela própria Fenaj. Por mais
que seja parte nessa polêmica, o fato de ser uma entidade
de profissionais submetidos à ética jornalística
torna imperativo mostrar argumentos dos dois lados da questão.
No entanto, o órgão optou por desrespeitar o preceito
ético que proíbe "frustrar a manifestação
de opiniões divergentes ou impedir o livre debate" [Código
de Ética do Jornalismo, aprovado em 29 de setembro de 1985
no Congresso Nacional dos Jornalistas, artigo 10?, item c). O texto
integral está disponível no site da Fenaj ? Federação
Nacional dos Jornalistas]. No espaço reservado em seu site
para as informações sobre o assunto, a Fenaj mostra
somente seu recurso apresentado ao TRF-3 contra a decisão
judicial de primeira instância, e nada mais [recurso Fenaj,
19/11/2001, em <http://www.fenaj.org.br/Agravo%20Instrumento%20
-%20Fenaj2.pdf
>]. Não mostra o texto da sentença
contra a qual ela recorre [processo n? 2001.61.00.025946-3, 16?
Vara Cível de São Paulo. Justiça Federal de
Primeira Instância, em <http://www.trf3.gov.br/sis/noticias/anexos/PROC.2001.61
.00.025946-3.doc
>], nem o da Ação Civil
Pública movida pelo procurador da República André
de Carvalho Ramos, da Procuradoria Regional de São Paulo
do Ministério Público Federal ["A Convenção
Americana de Direitos Humanos e a exigência de diploma para
a profissão de jornalista", Associação
Nacional dos Procuradores da República, em <http://www.anpr.org.br/boletim/boletim45
/andre.htm
>].

Em sua nota oficial do dia 11 ["Uma decisão contra
o jornalismo", 11/12/2003, em <http://www.fenaj.org.br/campanha_
em_defesa_da_profissao_30.htm#fnj
>], a Fenaj usou, sem
citar a fonte, trechos de minha reportagem à revista Consultor
Jurídico
. Afirmo com segurança que a entidade
fez isso porque sua nota oficial reproduziu não só
um erro gramatical meu ? pois transcrevi erroneamente "vigir"
em vez de "viger" da declaração do advogado
da entidade, João Roberto Piza Fontes, que sabe conjugar
corretamente esse verbo ? como também reproduziu os mesmos
erros de digitação da íntegra da decisão
judicial na versão da página eletrônica com
minha matéria, como, por exemplo, "Alda Bastos"
em vez de "Alda Basto", e outros que não existem
no documento lavrado no TRF-3. Se tivesse pelo menos sido citada
a fonte da informação, os leitores mais curiosos teriam
acesso mais fácil à opinião do procurador federal
Ramos, que foi convenientemente deixada de lado na nota oficial.

Embarcando na desinformação, e apesar de demonstrarem
em seus comentários que desconhecem os termos da sentença
de primeira instância e também os da Ação
Civil Pública que a originou, vários jornalistas,
inclusive ocupantes cargos de chefia, atacaram a decisão
da 16? Vara Cível Federal de São Paulo com diversos
adjetivos ("esdrúxula", "tresloucada",
"ridícula", "absurda" etc.). Uma simples
leitura de pelo menos um dos dois documentos não divulgados
mostraria que na esfera jurídica a repulsa à obrigatoriedade
do diploma não é novidade nem coisa de aventureiros.
Tanto a sentença judicial como a petição do
Ministério Público Federal mostram que, ao contrário
do que muitos jornalistas e professores de jornalismo têm
procurado impor como verdade, juristas consagrados também
como mestres já se manifestaram contrariamente a essa exigência
que foi estabelecida pelo Decreto-Lei 972, baixado em 17 de outubro
de 1969. Por não ter sido nunca contestada em seu mérito,
repito a afirmação que já fiz em outros artigos
["Uma exigência contra o jornalismo", Folha de
S.Paulo
, 14/08/2003, seção Tendências/Debates,
pág. A-3], de que a sentença se baseia em pareceres
e estudos de José Afonso da Silva, Sampaio Dória,
Carlos Maximiliano cita, por exemplo,Geraldo Ataliba, que foi professor
titular da Faculdade de Direito da USP:


"? o Brasil é um Estado de Direito democrático,
com responsabilidades definidas e proteção a valores
sociais e individuais fundamentais, como se dá em todos
os países civilizados, que adotam princípios semelhantes,
e que jamais cogitaram de ? como o fez, para nossa vergonha,
a Junta Militar ? exigir diploma para exercício da profissão
de jornalista".


Para esses juristas, o Decreto-Lei 972/69 é um desrespeito
ao direito à liberdade de comunicação e expressão
consagrado não só pela Constituição
Federal, mas também pela Convenção Americana
de Direitos Humanos e pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos e do Cidadão. Foi em atenção
a esse princípio que se deu a condenação por
unanimidade em 1985, na Corte Interamericana de Direitos Humanos,
da Lei Orgânica do Colégio de Jornalistas da Costa
Rica, também de 1969, que exigia diploma para o exercício
da profissão [To License a Journalist? ? A landmark decision
in the Schmidt Case. The opinion of the Inter-American Court of
Human Rights
. New York: Freedom House, 1986].

Opiniões domesticadas

O caso da Costa Rica, que eu já havia comentado aqui neste
Observatório ["Oitenta anos de solidão",
05/03/2003, em <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/
artigos/da050320031.htm
>], mostra que não é
só de desinformações sobre a esfera jurídica
que vive o curral de opiniões domesticadas do jornalismo
brasileiro. Apesar de terem passado pelos bancos acadêmicos
para obter a graduação superior específica
obrigatória para serem jornalistas, muitos dos que são
favoráveis a essa exigência demonstram que não
aprenderam ou que suas faculdades não lhes ensinaram muita
coisa sobre a regulamentação da profissão em
outros países.

Vale observar que pouco mais de um mês após a liminar
da juíza Carla Abrantkoski Rister, o Centro Internacional
de Jornalistas (ICJ), a entidade Repórteres Sem Fronteiras
(RSF) e outras organizações não-governamentais
criticaram no início de dezembro de 2001 a aprovação
pelo legislativo guatemalteco, em 30 de novembro daquele ano, de
projeto de lei que tornaria obrigatória a exigência
de diploma de jornalismo para o exercício da profissão,
alegando que ela fere o artigo 19 da declaração Universal
dos Direitos Humanos, o artigo 13 da Convenção Americana
de Direitos Humanos e o próprio artigo 35 da Constituição
da Guatemala. O presidente Alfonso Portillo comunicou em seguida
seu veto à lei ["Vetarán ley de colegiación
de periodistas en Guatemala", La Prensa in the Web,
06/12/2003, em <http://www.laprensahn.com/
caarc/0112/c06004.htm
>].

Com a repercussão da notícia sobre a nova decisão
judicial, correram soltos os eternos e provincianos comentários
do tipo: "Já que não é preciso diploma
para ser jornalista, quero ser juiz, médico ou engenheiro".
Declarações como essa são inconcebíveis
em diversos países, como nos Estados Unidos e em vários
da Europa, onde a profissão é concebida como algo
que pertence à sociedade e não a uma corporação.
Justamente por isso, nesses países, procura-se ao máximo
evitar as restrições ao acesso ao jornalismo. No entanto,
esse tipo de argumento é proferido sem o menor pudor pelos
defensores brazucas do decreto-lei baixado com o Congresso Nacional
fechado, sem fazer remissão a nenhuma constituição
ou lei que mereça esse nome, mas somente a dois dispositivos
já sepultados, o AI-5 e o AI-16.

Nas raras ocasiões em que é abordado por defensores
da obrigatoriedade do diploma, o tema da regulamentação
da profissão costuma ter as informações descaradamente
manipuladas. Ao apresentar os resultados de uma pesquisa feita por
meio de correspondência com embaixadas, Vitor Ribeiro, diretor
do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São
Paulo (SJPSP), distorceu o significado dos dados obtidos [Vitor
Ribeiro, "O exercício profissional do jornalismo no
mundo", em <http://www.ojornalista.com.br/pesquisa.asp>].
Disse Ribeiro:


"O curso superior em jornalismo existe nos quatro cantos
do planeta e a sua obrigatoriedade para o exercício da
profissão é uma exigência legal verificada
em muitos países. Mas, mesmo nos locais onde não
existem leis específicas exigindo o diploma, os formados
acabam levando vantagem na disputa por uma vaga no mercado de
trabalho. Onde o diploma não é uma exigência
legal, acaba sendo uma grande preferência ou mesmo uma
exigência do mercado de trabalho".


No entanto, com base em informações fornecidas por
46 embaixadas, Ribeiro constatou que não existe a exigência
de diploma de nenhuma área para o exercício da profissão
em 31 países ? ou seja, 67,4% do total considerado ?, enquanto
o contrário se dá em 15 países ? isto é,
32,6%. Curiosamente, antes de fazer esse levantamento, ele afirmou
que sua intenção era justamente mostrar o modo como
é regulamentado o exercício da profissão no
mundo todo, para acabar com os "achismos" que existem
nas discussões sobre esse assunto. Vale lembrar que segundo
reportagem do Comunique-se, alguns de seus colegas da diretoria
do sindicato foram contrários à idéia de fazer
uma pesquisa como essa. "Algumas pessoas me disseram que não
importa como são as coisas lá fora", disse o
jornalista na ocasião [Míriam Abreu, "Jornalista
faz pesquisa sobre a profissão", Comunique-se,
25/02/2003, em <http://www.comunique-
se.com.br/conteudo/newsshow.asp?op2=1&op3=1&editoria=8
&idnot=8015
>].

É lamentável e altamente suspeito que profissionais
formados em faculdades de jornalismo afirmem desconhecer que não
existe a obrigatoriedade de formação superior específica
em países como Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria,
Bélgica, Canadá, Chile, China, Colômbia, Dinamarca,
Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grã-Bretanha,
Grécia, Guatemala, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália,
Japão, Kuwait, Luxemburgo, Polônia, Portugal, Suécia
e Suíça, mas que prevalece em outros, como Arábia
Saudita, Brasil, Costa do Marfim, Equador, Honduras, Indonésia,
República do Congo, Síria, Sri Lanka e Tunísia
[dados obtidos por mim pelo cruzamento de informações
do livro Les Journalistes (de Michel Mathien, Presses Universitaires
de France, Paris, 1995, págs. 22-23) com os dados do levantamento
do jornalista Vitor Ribeiro (ver nota anterior)].

Não é à toa que documentos como a Declaração
de Chapultepec, de 1994, condenem as restrições ao
livre acesso ao jornalismo [Declaración de Chapultepec. México,
DF, 11/03/1994, artigo 5?: "La censura previa, las restricciones
a la circulación de los medios o a la divulgación
de sus mensajes, la imposición arbitraria de información,
la creación de obstáculos al libre flujo informativo
y las limitaciones al libre ejercicio y movilización de los
periodistas, se oponen directamente a la libertad de prensa"].
O mesmo acontece com a Carta pela Imprensa Livre, do Comitê
Mundial pela Liberdade de Imprensa (WFPC), firmado em 1987 em Londres
por representantes de entidades jornalísticas de 34 países,
cujo artigo 9? afirma explicitamente: "Devem ser eliminadas
as restrições por meio de regulamentação
ou de outros procedimentos de certificação ao livre
acesso ao campo do jornalismo ou sobre sua prática"
["Charter for a Free Press", World Press Freedom Comitee,
Londres. Principle 5: "Restrictions on the free entry to the
field of journalism or over its practice, through licensing or other
certification procedures, must be eliminated"].

Para se contrapor a esses posicionamentos de entidades internacionais,
poucos foram os argumentos respeitáveis a favor do diploma.
Estes consistem principalmente em observar que os pressupostos liberais
da falta de exigências para o exercício da profissão
de jornalista surgiram em condições históricas
totalmente diferentes das atuais, em que a complexidade da informação
atingiu níveis que antes eram impensáveis; mudou o
mundo e mudou também a esfera das comunicações,
exigindo capacitação específica para os seus
profissionais. Em outras palavras, seriam anacrônicos, por
exemplo, argumentos como os de Jean Rivero em Las Libertés
Publiques
:


"É necessário sublinhar que a profissão
de jornalista é uma das raras profissões a cujo
acesso não se exige diploma algum, nenhuma formação
anterior, nenhuma qualificação particular"
[Jean Rivero, Les libertés publiques, Paris, Presses
Universitaires de France, 1997, tome 2, pág. 233.].


No entanto, o princípio do acesso livre e desembaraçado
à profissão não é fruto de uma visão
anacrônica, como mostrou o resultado da famosa iniciativa
de um grupo de 25 editores reunidos em Harvard em junho de 1997,
que deram origem ao Commitee of Concerned Journalists, organizando
21 fóruns de debates com cerca de 3.000 convidados, dos quais
300 jornalistas. O resultado desses debates foi publicado de forma
sintética no livro Os Elementos do Jornalismo, de
Bill Kovach e Tom Rosenstiel. No capítulo em que tratam da
necessidade da independência do jornalista ? e não
da sua "neutralidade" ou "isenção"
?, os autores afirmam: "A pergunta que as pessoas deviam fazer
não é por que alguém se diz jornalista. O ponto
importante é se esse alguém está de fato fazendo
jornalismo". Mais que isso, eles ressaltam: "o significado
de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa é
que eles pertencem a todos. Mas comunicação e jornalismo
não são termos mutáveis. Qualquer um pode ser
jornalista, mas nem todos o são. O fator decisivo não
é que tenham um passe para entrar e sair dos lugares; o importante
está na natureza do trabalho" [Bill Kovach e Tom Rosenstiel
, Os Elementos do Jornalismo: O que os jornalistas devem saber
e o público exigir
, São Paulo, Geração
Editorial, 2003, pág. 151].

Falácias e maus exemplos

Como era de se esperar nesse novo capítulo da polêmica
em torno do diploma, de ambos os lados dela não faltaram
frases de efeito nem argumentos falaciosos. No que se refere à
estrutura lógica da argumentação, o modelo
preferido foi uma variação daquele que é conhecido
pelos lógicos como falácia do argumento contra a pessoa
(Argumentum ad hominem), que consiste em tentar desqualificar
uma afirmação por meio da desqualificação
de quem a fez. Ele pode ser expandido contra grupos de pessoas ou
até contra entidades. Por exemplo, para muitos dos defensores
do diploma, o processo na Justiça pelo fim dessa exigência
é inaceitável porque teria sido movido por um sindicato
de patrões ? o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão
do Estado de São Paulo (Sertesp), que na verdade é
assistente do autor da ação, o Ministério Público
Federal. As próprias entidades Sociedade Interamericana de
Imprensa (SIP), ICJ e WFPC são simplesmente tachadas como
associações com representação de patrões.
Por outro lado, para os inimigos dessa obrigatoriedade, é
suficiente desqualificá-la apenas com a afirmação
de que ela foi estabelecida pela ditadura.

De ambos os lados usou-se e abusou-se também de outra deturpação
dedutiva, a falácia do Argumentum ad populum, que
consiste em fazer apelo emocional para tentar obter a concordância
da platéia. No caso dos favoráveis ao diploma, não
faltaram alegações de que o mercado de trabalho já
está mais do que saturado para ser prejudicado ainda mais
pela desregulamentação ? ignorando que os jornalistas
não regulamentados são raridade na maior parte das
redações. No bloco contrário, foram constantes
os ataques à qualidade dos cursos de jornalismo e de seus
formandos ? mas se isso fosse suficiente para invalidar a obrigatoriedade
do diploma, seria melhor aperfeiçoar os cursos existentes
do que mudar a regulamentação.

O grande exemplo de grosseria combinada de uma só vez com
o Argumentum ad hominem e com o Argumentum ad populum
ficou por conta do SJPSP, com sua nota oficial do dia 11. Assinado
pela "Diretoria Executiva", o documento refere-se ao Sertesp
como favorável "à vitória da ignorância
sobre o conhecimento", como se os cursos de jornalismo fossem
o único caminho para adquirir formação. Além
disso, a nota oficial sugere aos jornalistas não-diplomados
"que vão para a escola. Afinal, estudar não arranca
pedaço de ninguém e não há nada na lei
que proíba que as pessoas estudem para exercer uma profissão"
["Jornalista precário: nota oficial do sindicato de
SP", Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São
Paulo, 11/12/2003, em <http://www.sjsp.org.br/11_
12_2003%20precario.htm
>].

Apesar desses tristes exemplos de desrespeito ao debate, nem tudo
o que veio de dirigentes sindicalistas foi negativo. Em um texto
publicado no Comunique-se, Boanerges Lopes, diretor-suplente
do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Município do
Rio de Janeiro, trouxe dados importantes para a reflexão
sobre a regulamentação profissional. Baseado em dados
obtidos por Vitor Ribeiro junto ao MEC, em seu artigo "A ficha
tem que cair", Lopes afirma que "torna-se obrigatório
questionar o fato do Brasil ter neste momento mais faculdades de
jornalismo do que de odontologia". Segundo o levantamento,
existem em todo o país 256 cursos superiores de jornalismo,
contra 169 de odontologia [Boanerges Lopes, "A ficha tem que
cair", Comunique-se, 12/12/2003, em <http://www.comunique-se.com.br/index.asp?
p=Conteudo/NewsShow.asp&p2=idnot%3D13689%26
Editoria%3D237%26Op2%3D1%26Op3%3D0%26pid%
3D3361448484%26fnt%3Dfntnl
>].

"A proliferação de cursos é uma realidade
que infelizmente tem contribuído para levar o jornalismo
brasileiro ao empobrecimento", afirma Lopes. "A verdadeira
?selva acadêmica? despeja em média quatro mil alunos
por ano no mercado." Para fins comparativos, informo que na
Itália, cuja população corresponde a um terço
da brasileira e os níveis de analfabetismo são menores,
existem somente 12 cursos de jornalismo, segundo a Ordine dei Giornalisti,
cuja homepage até algumas semanas atrás indicava serem
apenas dez <http://www.odg.it/barra/scuole/scuole.htm>.
São três cursos em Milão, três em Roma
e as cidades com uma faculdade cada são Bologna, Nápolis,
Palermo, Perugia, Sassari e Urbino. Se a população
da Itália fosse três vezes maior, igualando-se à
nossa, e o número de seus cursos de jornalismo também
fosse triplicado, ainda assim o número de faculdades brasileiras
seria sete vezes maior do que o das italianas.

A obrigatoriedade da formação superior em jornalismo
não é o único tema importante sobre a profissão.
Mas não deve ser deixado de lado, nem sabotado como tem sido.
A discussão sobre esse assunto patina na Internet convenientemente
para os defensores da exigência do diploma, enquanto o número
de cursos de jornalismo no país cresce e o anteprojeto de
lei da Fenaj de criação do Conselho Federal de Jornalismo
(CFJ) já está no Executivo. Os argumentos sobre esses
assuntos e vários outros ligados à regulamentação
profissional de devem ser confrontados com honestidade intelectual
e respeito à ética, e não em uma batalha do
bem contra o mal em uma guerra de desinformação, como
descreveu Phillip Knightley em seu livro A Primeira Vítima
[vide nota 1].

(*) Jornalista