Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Crítica marxista, linear e banal

AS ILUSÕES ARMADAS

Geraldo Luiz Matos (*)

No artigo "A historiografia envergonhada", publicado na edição anterior Observatório [remissão abaixo], os autores traçam um comentário muito pertinente sobre a obra do jornalista Elio Gaspari, mas erram grosseiramente ao deixarem implícita sua visão marxista da história como a única interpretação historiográfica possível.

Trata-se de um absurdo. A historiografia marxista é apenas uma das visões possíveis do processo histórico e, hoje, à luz dos avanços da ciência nos campos da teoria do caos e da física quântica, sequer é levada muito a sério uma vez que está profundamente impregnada pelo mecanicismo de Isaac Newton (Marx era um contemporâneo de Newton, no sentido em que a visão de mundo newtoniana dominou todos os campos de pensamento por séculos, até ser derrubada, no século 20, pela relatividade de Einstein, e de forma definitiva pela complexa visão do mundo quântico, permeada de probabilidades e incertezas, de meados dos anos 50).

Contrapondo-se à visão mecânica, linear e banal dos marxistas a compreensão moderna (ainda que esteja na sua infância) dos sistemas caóticos (ou seja, qualquer sistema que é composto de inúmeras e inter-relacionadas variáveis, seja a economia, um campo de batalha, a galáxia ou mesmo o processo histórico), já permite deixar claro que tal visão marxista é uma fantasia, bem como todo o núcleo central da teoria marxista (como bem apontou o filosofo Karl Poper ao expor a ausência de "falseabilidade" nos argumentos marxistas, que insistiam em apresentar suas teses como ciência da mais alta qualidade. Não é ciência aquilo que não traz em si mesmo a possibilidade de ser testado, comprovado ou simplesmente não se expuser à averiguação de sua falseabilidade ou não.

Quando um cientista diz que dado fenômeno é causado por outro e expõe a relação matemática entre as variáveis está expondo sua tese à falseabilidade ou não. Karl Poper desafiou os marxistas a fazerem o mesmo com sua "ciência historiográfica", e eles obviamente fracassaram. Com o conhecimento que diziam ter das "relações de produção" e das "relações sociais", da "infra-estrutura" e da "superestrutura", como eles dizem, enfim, com o conhecimento do "motor da história") deveriam ser capazes de fazer algo melhor. Caíram no ridículo. Mas, ao que parece, não no Brasil.

Basta ler os artigos acadêmicos produzidos pelos economistas após o fim dos anos 60, por exemplo, para constatar que estes (ao contrário dos colegas "historiadores-dinossauros") já não falam mais em certezas e relações imutáveis nas variáveis econômicas, mas cada vez mais em "probabilidades matemáticas de um dado evento ocorrer" ou nas "expectativas dos agentes e nos possíveis resultados dessas expectativas". Isso é fruto do abandono das certezas newtonianas do século 18-19 que contaminaram pensadores como Smith, Marx, Ricardo, Malthus e outros, em detrimento de abordagens mais avançadas e coerentes como a de John Nash, cuja teoria dos jogos enxerga a economia como um "jogo estratégico dinâmico de informações imperfeitas".

Estratégico porque as decisões de um agente são influenciadas pelas ações (ou pelas expectativas deste com relação às ações) dos outros agentes, dinâmico e não estático, porque os agentes atuam ao mesmo tempo e informações imperfeitas por razões óbvias. De tal forma que a realidade econômica concreta é muitas vezes irrelevante no processo de tomada de decisões quando comparada à percepção (ou expectativa) dos agentes.

Conjecturas sobre conjecturas

Os autores afirmam categoricamente: "A Revolução Francesa dissolveu a visão da ação providencial do homem na história ao explicitar a trama social e o comportamento humano como produtos de forças sociais profundas das quais os protagonistas têm apenas consciência parcial. Desvelar e explicar esses nexos subterrâneos tornou-se função perspícua da historiografia científica." Errado, absurdamente errado, mas oportuno por expor por que a historiografia brasileira é muito ruim. Alguns historiadores brasileiros estão congelados no século 19 no que diz respeito à sua compreensão dos avanços da ciência e as implicações daí decorrentes na forma como o homem percebe e compreende o universo que o cerca.

Lastimável, mas isso é fruto direto, na minha opinião, da falta de educação científica, particularmente a matemática. Se é verdade esse papo sobre a "historiografia cientifica" e a insignificância do homem na história, então fica aqui a provocação: o que teria acontecido se o atentado contra a vida de Adolf Hitler fosse bem-sucedido? O que teria acontecido se Hitler não tivesse cancelado o programa alemão de obtenção da bomba atômica? O que teria acontecido se Hitler não tivesse alterado os planos de invasão da Rússia (contrariando seus generais), prolongando e mudando os objetivos iniciais da invasão alemã? O que teria acontecido em 1962 se, em meio ao bloqueio a Cuba, algum comandante de um navio de guerra americano ou soviético tivesse uma atitude estúpida e impensada, provocando resposta imediata de outros (o que hoje sabemos pelos registros da Casa Branca era, talvez, a maior preocupação do presidente JFK e seu gabinete)? Mais recentemente, o que teria acontecido se Israel não tivesse feito um ataque preventivo à usina nuclear iraquiana em 1982?

Não há resposta possível para essas perguntas, pelo simples fato de que elas não aconteceram assim. Apenas conjecturas e "probabilidades matemáticas inerentes a cada evento daí decorrente". Mas fica claro que a atuação do individuo poderia ter mudado profundamente o curso da historia em cada um desses eventos e em inúmeros outros, o que está claramente de acordo com a moderna visão de mundo da ciência real: "Minúsculas alterações sofridas por qualquer das variáveis de um sistema caótico (complexo) pode levar a resultados totalmente diferentes daquele esperado, de tal forma que tudo o que se tem é um mar infinito de probabilidades matemáticas e nenhuma certeza absoluta quanto ao resultado final, inclusive quanto à própria existência de um resultado final." (em Chaos and Nonlinear Dynamics: An Introduction for Scientists and Engineers, Robert C. Hilborn, Oxford university Press)

(*) Matemático e economista, Belo Horizonte

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