Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

César Felício

GOVERNO LULA

“Presidente é o mais refratário à imprensa dos democraticamente eleitos”, copyright Valor Econômico, 18/05/03

“O presidente Luiz Inácio Lula da Silva começa o seu governo adotando uma das estratégias de comunicação mais refratárias à imprensa já registrada história. Caso o presidente mantenha sua disposição de não conceder entrevistas, sejam individuais ou coletivas, até o fim de seu mandato, quebrará um hábito seguido por governos democráticos desde Juscelino Kubitschek. Entre os governos ditatoriais, só não deu nenhuma entrevista um antecessor completamente diferente de Lula: Emílio Médici, que governou entre 1969 e 1974 e só dirigiu a palavra a jornalistas para comentar sobre futebol.

O antecessor de Lula, Fernando Henrique Cardoso, deu uma entrevista coletiva formal para fazer um balanço de seu governo logo nos primeiros meses de sua administração, e ao longo de seus dois mandatos, concedeu várias entrevistas para grupos menores de jornalistas. O primeiro presidente democraticamente eleito depois do regime militar, Fernando Collor, deu quatro entrevistas coletivas nos primeiros seis meses de seu governo, fora as conversas que tinham com os jornalistas que conseguiam acompanhá-lo em suas corridas matinais com camisetas publicitárias. Seu antecessor, José Sarney, criou um sorteio: escolhia um jornalista credenciado na presidência para acompanhá-lo na cabine presidencial durante as viagens aéreas, concedendo entrevistas exclusivas.

A maior disposição dos antecessores de Lula em atender à imprensa não significou uma transparência maior no passado. Primeiro presidente a criar a figura de um assessor de comunicação (o escritor Autran Dourado), Juscelino Kubitschek atendia jornalistas conforme o posicionamento político dos meios de comunicação em relação a seu governo.

No livro ?Gaiola Aberta?, editado em 2000, em que rememora o período, Dourado conta como um ataque cardíaco sofrido pelo presidente foi escondido não só da imprensa como até mesmo de ministros de JK, como o ministro da Guerra, Teixeira Lott. Não foi o único caso: da mesma forma que Juscelino, João Goulart também ocultou do país os problemas cardíacos que teve em 1962, quando viajou aos Estados Unidos. A radicalização política da época prejudicava um diálogo aberto. Quando JK decidiu romper com o FMI, em 1959, promoveu um encontro no Palácio do Catete com os donos dos principais jornais do país, para conseguir apoio na mídia. Desta vez, foram os donos dos jornais de oposição que se recusaram a aceitar um convite explícito do presidente para conversar.

O sucessor de Juscelino, Jânio Quadros, cultivou sua imagem na mídia. ?Jânio teve estrondosa cobertura de imprensa como nunca outro presidente viria a ter (…) o Palácio do Planalto era o centro, o coração do Brasil?, relata seu secretário de imprensa, Carlos Castelo Branco, no livro ?A renúncia de Jânio?, editado postumamente em 1996, ao descrever o clima que cercava as entrevistas coletivas do presidente.

Mas Jânio chocou-se com Castelo Branco ao se recusar a receber uma equipe de reportagem da revista norte-americana ?Time?. Pela primeira vez a revista daria sua capa para um brasileiro, com um retrato de Jânio ao pintor Cândido Portinari, como ilustração. Jânio ignorou a atenção. ?O correspondente tentou em vão a entrevista (…) arranjou padrinhos (…) afinal, voltou a mim e disse que, pela primeira vez, ?Time? publicaria uma capa sem que seu representante tivesse uma conversa com o personagem?, relata Castelo Branco. Ao ouvir isto de seu assessor, Jânio exclamou: ? Se é a primeira vez, ótimo!?.

No regime militar, dois presidentes buscaram uma estratégia de aproximação com a imprensa, em uma tentativa de se popularizarem. Eleito indiretamente contra a vontade do antecessor, o Marechal Castello Branco, o marechal Arthur da Costa e Silva procurou a imprensa no processo sucessório para tornar a sua postulação um fato consumado. Virou o ?seu Arthur? e cultivou uma imagem de homem acessível até a oposição ao seu governo crescer exponencialmente entre 1967 e 1968 e culminar com a edição do AI-5. Quando o presidente sofreu o derrame e ficou incapacitado, os assessores diretos de Costa e Silva sofreram um verdadeiro cerco dentro do Palácio das Laranjeiras. Até entrevistas da primeira-dama Iolanda foram censuradas.

João Figueiredo (1979-1985) foi o outro militar que tentou ser popular. Elevou a área de imprensa para o status de ministério, nomeando Said Farhat como ministro e o jornalista Alexandre Garcia como seu porta-voz. Ainda como presidente indicado por Ernesto Geisel para sucedê-lo, deu uma longa entrevista à ?Folha de S. Paulo?, em que não permitiu gravações nem anotações em uma hora e meia de conversa. A entrevista, concedida a Getulio Bittencourt e Haroldo Cerqueira Lima, ganhou o Prêmio Esso de 1978. Expôs idéias confusas sobre seu projeto de abertura: ?Nós temos a laranja-lima, a laranja-pera, a laranja-bahia, que têm sabores diferentes, mas não deixam de ser laranjas. Assim, há democracias diferenciadas?, afirmou. O já complicado humor do presidente com a imprensa piorou à medida em que se agravou a crise econômica e acabou com a bomba do Riocentro. Voltou a dar uma grande entrevista no final de sua administração, quando disse que gostaria que o povo o esquecesse.”

“Lula tem medo de quê?”, copyright Folha de S. Paulo, 18/05/03

“O governo tomou posse, os juros subiram, as reformas foram apresentadas, discute-se a ?fase 2? da economia, e eu já estou tirando férias a partir de amanhã. Mas, até hoje, como registrou o jornal ?Valor? na sexta-feira, Lula não deu uma só entrevista para os jornais brasileiros -nem coletiva, nem exclusiva.

Depois de eleito, só falou com exclusividade à Globo (por que será, hein?) e para o ?Washington Post? (deve ser a política externa ?ativa?). E, depois da posse, fala pelos cotovelos, mas em solenidades públicas e sem direito a perguntas incômodas.

Vai ver ele quer evitar perguntas fúteis. Sobre a cópia escrita e acabada do governo FHC na economia. Irritante. Sobre o Fome Zero, que continua um amontoado de boas intenções. Chatice. A definição da política industrial. Maçante.

O silêncio de Lula, pois, é providencial. Não só para calar o presidente, mas para calar perguntas que não querem calar. Repórteres não entendem que tudo mudou e tentam tratar este como os demais governos: querendo saber umas coisas e tentando entender outras. Inconvenientes.

Afora ironias, falta a Lula, ao núcleo de poder político e à equipe de comunicação um entendimento elementar: os jornalistas perguntam o que milhares de pessoas querem saber. Em geral, não responder a perguntas deles é não responder às da sociedade.

Depois da eleição de outubro do ano passado, os neopoderosos empinaram o nariz e calaram. ?Ordem do chefe?, alegavam. Aconteceu o de sempre: com o tempo, passaram a tomar a iniciativa de telefonar para quem antes não atendiam.

Agora, falta Lula. Acha que lucra mais com discursos transmitidos pelas tevês do que tendo de responder a perguntas -ou prestar contas- para esses enxeridos da imprensa.

Lula impressiona favoravelmente, mas tem muito o que aprender. Por exemplo: perguntar não ofende, calar é que é ofensivo.”

“Romeu e Julieta, cismas e radicais”, copyright Jornal do Brasil, 17/05/03

“Todas as revoluções acabam em fragmentação. Assim foi com a Francesa no fim do século XVIII e com a Russa no início do século XX. Os movimentos revolucionários, porque intrinsecamente radicais, não admitem discordâncias, desvios ou pausas para reavaliações. Como se trata da conquista do poder e o poder tende à concentração, dificilmente pode-se encontrar ao longo da história um movimento revolucionário capaz de vencer a tentação de sufocar suas divergências. O perigo real são as rupturas internas e, não, a reação adversária.

Nas revoluções no campo do pensamento dá-se o contrário, dissensões são bem-vindas, o monolitismo é banido para enriquecer as proposições iniciais. O cisma (do latim schisma) perde sua conotação negativa: deixa de ser dissensão para significar reflexão. Cismador não é aquele que divide mas aquele que contempla. Cismar, no máximo, é insistir.

Diferentemente das crenças e idéias, religiões também são organismos políticos e, nesse caso, os cismas representam ameaças à unidade do poder, por isso severamente punidos. Convém não esquecer que a Inquisição começou no início do primeiro milênio para aniquilar as diferentes seitas cristãs que se rebelaram contra os abusos da Cúria.

Antes, quando da consolidação do islamismo (séculos VII-VIII), o conflito teológico-político a respeito da linha sucessória de Maomé fez da palavra shía (em árabe, facção) o nome de uma seita. Como toda seita é obviamente sectária, os shiítas (agora grafados como xiitas) converteram-se em símbolos modernos da intransigência. Injusto: os sunitas, seus oponentes, são igualmente intolerantes. Arrogam-se a condição de ?puros? e aos outros jogam a mácula de contaminados.

No PT, quem é efetivamente radical? O grupo composto pela senadora Heloísa Helena, os deputados Luciana Genro e Babá, que se insurge contra as novas leituras do programa do partido, ou o núcleo duro que não admite sequer os cismadores?

É preciso não esquecer que o PT nasceu como dissidência do antigo MDB, para gáudio do Maquiavel da época, o general Golbery, que – como o Juquinha – tinha uma idéia fixa: acabar com a influência do partidão, o velho PCB, nas hostes oposicionistas. Radical dos pés à cabeça, do fim dos anos 70 até o fim dos 90, o PT era revolucionário nos conceitos e, por isso, impermeável às transigências. Comprometido com a processo democrático, admitia alas e correntes.

Ma non troppo: o senador Eduardo Suplicy quase foi linchado quando pretendeu disputar com Lula a condição de candidato do partido nas últimas eleições. Imperioso admitir que ao trocar a antiga rigidez por uma política de composições (que resultou na escolha do vice liberal na sua chapa) o PT pavimentou o caminho para a espetacular vitória.

Instalado no poder e já admitindo a hipótese da reeleição, o PT volta a contrair-se e crispar-se seguindo a metáfora cardiológica de Golbery das sístoles e diástoles. Os chamados radicais estão sendo enquadrados e contra eles é acionada a força da velha radicalização. A proposta do abrandamento no trato dos rebeldes assinada por 36 deputados e oito senadores foi abafada com a ameaça de renúncia do presidente do partido, José Genoíno, e do líder no Senado, Tião Viana. A manobra só aumentou a dimensão do racha.

A síndrome que ameaça o PT não é a da pneumonia atípica, é a da onipotência clássica. O PT está arrogante: não é casual a constatação de ontem no jornal Valor de que Lula é o mais refratário à imprensa de todos os presidentes democraticamente eleitos. Fala pelos cotovelos, é verdade, mas nos palanques, sem questionamentos dos repórteres.

É preciso não esquecer que não foi a reforma da Previdência a causadora da primeira rebeldia da senadora Heloísa Helena: foi a insólita eleição para a presidência do Senado de um oligarca como José Sarney (v. abaixo). Se o PT e o governo sequer desenharam em termos definitivos o novo modelo previdenciário, como exigir dos militantes uma concordância prévia em matéria ainda informe? Se as palavras de ordem do governo são ?debate? e ?negociação?, esse cala-a-boca, além de inopinado, é perigoso para o próprio debate político.

Há dias, num de seus simpáticos rompantes, o presidente Lula declarou que a sua relação com o vice-presidente José de Alencar parecia como o caso de Romeu e Julieta. Esquecido de que aquela paixão resultou numa tragédia, devia preocupar-se com outra – a de Medéia, que matou os filhos.

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Na saudação ao novo colaborador, José Sarney, este JB disse que ele se afastou do jornal nos anos 50 para não misturar a carreira de jornalista com a do político. Sarney foi demitido por este articulista, então editor-chefe, em fevereiro de 1962, justamente porque misturou as duas atividades.”