Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cultura e RTP na frente

IMAGEM & INFORMAÇÃO

Afonso Caramano (*)

Quem acompanhava, pela TV Cultura, as informações do início da ação armada dos Estados Unidos contra o Iraque por volta das 23h35 de quarta-feira pôde assistir às transmissões da RTP, a Rádio e Televisão Portuguesa, primeira a mostrar o bombardeio a Bagdá. Pôde também assistir, creio que não sem perplexidade, às imagens impagáveis dos preparativos do pronunciamento do presidente George W. Bush, anunciando o ataque americano.

Enquanto outras redes de TV (CNN, Reuters) perdiam a conexão e n&atildeatilde;o retransmitiam ao mundo suas imagens, o canal português, com sinal da BBC, entrou no ar da Casa Branca, minutos antes do pronunciamento oficial do presidente. E o que vimos foi um pouco do show business americano: o cowboy petrolífero Bush entregue aos cuidados de auxiliares: uma cabeleireira, em disputa com um renitente fio de cabelo presidencial e uma maquiadora dando os últimos retoques. Entrementes, Bush sussurrava, lendo o teleprompter, o discurso que deveria fazer dali a instantes.

O repórter português parecia não acreditar no que via ? imagens contrastantes num contexto esdrúxulo, num momento de extrema expectativa e conseqüências imprevisíveis para o mundo. Os comentaristas da TV Cultura, retransmissora do sinal, também observaram o fato raro, quase sem acreditar no acaso. Mas ativeram-se aos comentários principais ? tão logo o presidente fez o pronunciamento oficial. Diga-se: um discurso permeado de hipocrisia e leviandade, num tom sério (como convém a um líder mundial, ou seria a um pequeno ditador?).

Se, por um lado a TV Cultura, com as imagens da RTP, saiu à frente das outras emissoras; de outro deixou-se arrastar pela superficialidade da notícia (e das imagens), não aprofundando os comentários acerca do teor do discurso de Bush nem analisando as possíveis conseqüências do desrespeito dos Estados Unidos com a ONU (e os países que a compõem). Esse ataque abre precedentes para outras arbitrariedades americanas em nome da liberdade, da democracia, do desarmamento ou seja lá o que for. E não se trata de defender um regime como o imposto pelo ditador iraquiano. Trata-se de defender a paz de modo racional e equilibrado ? não pela força bélica. O radicalismo de Bush e aliados infunde no próprio povo americano o recrudescimento de radicalismos diversos, de patriotismo maniqueísta e fobias. O fascismo à americana toma forma, personificado pelo seu líder máximo George W. Bush, revelando indícios dos interesses escusos dessa ação beligerante: a incessante necessidade de expansão de mercados, as fontes de energia e matérias-primas, a experimentação de novas tecnologias e armamentos, enfim, necessidades dominadoras de mercado e interesses políticos imanentes (reeleição, cobiça, etc.). O presidente não está sozinho nesse negócio.

O show já começou. Agora é esperar e assistir aos desmandos, à manipulação de informações e à espetacularização da guerra. Mas não deixa de ser marcante e repleta de simbolismo a imagem fabricada do pequeno grande líder americano se preparando para o discurso (um dos mais importantes de sua carreira desde o 11 de setembro), nos primeiros minutos da noite de quinta-feira, aqui no Brasil.

Muitas outras vítimas sucumbirão nesta guerra, além da verdade, a primeira de todas. A mídia também corre risco ? dependerá de seu comportamento e atitudes, melhor, de sua atuação (ainda que limitada pela censura militar ou autocensura). E a responsabilidade não é só da imprensa estrangeira, mas de toda a mídia mundial. Basta não perder as oportunidades que o acaso oferece ? e fornecer informações mais consistentes e profundas aos cidadãos.

(*) Funcionário público municipal