Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cultura segundo a lógica liberal

MÍDIA E POBREZA

Hugo R. C. Souza (*)

Correspondente de O Globo em Londres, Cassia Maria Rodrigues envia matéria intitulada "Mendigos ocupam área dos teatros londrinos", publicada na edição de domingo do diário fluminense. Já no lead, Carla ironiza (ou adverte, enquanto lamenta?): a esmola já está se tornando "um concorrente de peso para as bilheterias".

Mais adiante, temos a informação de que "a prefeitura e alguns multimilionários da noite", num esforço conjunto, pretendem "lançar um projeto para revigorar a indústria teatral", e ficamos sabendo que o prefeito londrino "ainda não decidiu é justamente o que fazer com os mendigos que proliferam na região".

Como não poderia deixar de ser, a pobreza é relacionada a suas tradicionais justificativas implícitas, e a matéria ressalta que "Madonna, Glenn Close e Gwyneth Paltrow quase foram agredidas por bêbados e viciados em drogas". E a correspondente correu a arranjar uma turista australiana que ratificasse o insinuado: "Por que um rapaz tão jovem está nas ruas? Aposto que é viciado em drogas", sentencia.

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Segue o seguinte flagrante-parágrafo: "Christopher Whelan tira um cigarro do bolso". No parágrafo seguinte, o rapaz se adianta à repórter, e quase reclama, quase critica: "Já sei que você vai perguntar se sou viciado em drogas."

A matéria é sobre os teatros do West End, não sobre mendigos. Aqui não se fazem matérias sobre meninos esfarrapados a cheirar cola, mas sobre Copacabana. Problemas de lá e de cá. Problemas para a classe média daqui que quer ir pra lá. Ou curioso para quem lá já esteve e pode comentar com os amigos, num domingo de Sol: "Nossa! Aquilo lá não era assim!"

A matéria é sobre, para, segundo e a serviço da lógica liberal, da qual a imprensa é descendente direta e parte integrante. Segundo a lógica liberal, é preciso criminalizar a pobreza. É preciso fazer algo em nome da bilheteria. E se alguém levantar a voz pra dizer que antes de revitalizar o West End (remover o que não presta, os mendigos), seria preciso avaliar as diretrizes da política trabalhista do? Partido Trabalhista, logo ouvirá: "Menos turistas, menos platéia, menos emprego."

Algo semelhante ouvirá um repórter que se aventure a oferecer ao editor uma verdadeira matéria sobre os esfarrapados cheirando cola, e não sobre Copacabana?

Por sinal, assinantes de jornal sempre têm descontos em teatros.

(*) Estudante de jornalismo da UFF