Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

De intenções e compromissos: a reforma das universidades públicas

OFJOR CIÊNCIA 98

Carlos Vogt

 

Na edição anterior do Ofjor Ciência, aqui neste Observatório da Imprensa (n? 48 de 5 de julho de 1998), terminava meu artigo “Marajó, o marajá de Mossoró”, sobre a crise nas universidades públicas federais, conclamando a imprensa a não abandonar o tema das universidades e da discussão de suas necessárias reformas, uma vez terminada a greve e seus transes de excepcionalidade e de espetáculo de mídia, às vezes.

Li, com felicidade, na revista Veja (edição 1.555, ano 31, n? 28, de 15 de julho de 1998), logo na sua “Carta ao Leitor” à página 9, o seguinte compromisso: “Os professores universitários, que mantiveram uma greve de três meses por melhores salários, estão começando a volta às aulas. Para muitos veículos de comunicação, o fim da greve encerra também o interesse pela cobertura da questão universitária. No caso de Veja, abre-se apenas um novo capítulo. A greve expôs de forma dramática as debilidades da universidade pública brasileira. Tratamos agora de apresentá-las e de apontar soluções nesse terreno, com base no trabalho de nove jornalistas em sete Estados. O resultado dessa investigação está na reportagem que começa na página 38.”

Aí vamos à referida página e na medida em que lemos a reportagem, a felicidade anunciada vai escurecendo, escurecendo, até desmilingüir chocha e decepcionada ao final de um esforço que congregou tanta gente e resultou em tão pouco como novidade, análise e informação.

A disposição em continuar tratando o tema das universidades brasileiras, mesmo sem o “homem ter mordido o cachorro” é louvável e pode ser exemplar, se, de fato, a revista Veja passar da intenção explicitada à explicitação da prática efetiva das reportagens sistemáticas e dos artigos reflexivos. A revista Veja reúne todas as condições para fazê-lo e se o fizer estará dando um parâmetro de bom e confiável jornalismo sobre o tema da educação superior no país.

Mas o início dessa prática não é, como disse, muito promissor e o que vai aqui dito é feito com o intuito de contribuir com algumas anotações, que, quem sabe, possam tocar em aspectos da questão que mereceriam ser tratados e ainda não o foram.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a matéria “À Espera da Reforma” é igual a si mesma e igual a todas as outras reportagens “analíticas” que a própria Veja tem publicado sobre o assunto. Os mesmos dados, os mesmos números, os mesmos depoimentos, as mesmas personalidades acadêmicas dizendo as mesmas coisas que têm sempre dito, as mesmas comparações e a mesma lengalenga de fundo como panacéia aos problemas do ensino superior público no país: cobrar anuidades e, se possível ? grande sonho ? privatizá-lo, na lógica do já-que-tudo-se-privatiza-por-que-não-o-ensino?

Nessa linha e na linha da reportagem que a Veja publicou há algum tempo atrás sobre “a fuga de cérebros da universidade pública”, aparece aqui mais uma vez a indefectível Universidade de Mogi das Cruzes, particular, para onde foi ser reitor o professor Roberto Lobo, ex-reitor da USP, levando consigo alguns professores de excelente curriculum e que juntos tem procurado desenvolver na instituição um verdadeiro programa acadêmico para cujo desenho tive, aliás, a oportunidade de contribuir como coordenador da comissão externa que o propôs, em suas linhas gerais.

Mas, meu Deus, esse é um caso e certamente haverá alguns outros poucos, interessantes e importantes, mas insuficientes para contrapô-los como tendência efetiva de qualidade acadêmica ao papel que desempenhou e continua desempenhando o sistema público de ensino superior, apesar da necessidade urgente, urgentíssima, das reformas estruturais para sua atualização e adequação a formas mais dinâmicas nd sua produção didática, científica e cultural.

Sobre o ensino privado no país, além de tudo o que se vem dizendo de verdade e de mistificação, é preciso acrescentar, em alto e bom som, uma asserção deôntica inadiável: se se quiser que esse sistema desempenhe efetivamente um papel de qualidade na formação superior de nossos jovens e no desenvolvimento cultural, científico e tecnológico do país, é preciso que se promova, no nível da legislação brasileira, uma mudança radical no quadro jurídico-institucional de seu funcionamento. É preciso, desde logo, torná-lo fundacional sem finalidades lucrativas, no sentido da produção e distribuição de dividendos; é preciso que o lucro dessas instituições seja de natureza institucional, e mais nada: o que a instituição produzir, como lucro, volta para ela, nela permanece e nela é aplicado para proveito dos alunos e da qualidade acadêmica dos cursos oferecidos, da pesquisa e dos serviços realizados. Chega de falar dos Estados Unidos, sem tocar nas questões de fundo que diferenciam a realidade jurídico-institucional do ensino superior nos dois países.

Vamos tratar dessa questão e, sem dúvida, os resultados da discussão do papel do ensino superior privado no país muito contribuirão para as reformas globais que é preciso fazer nesse terreno. Sem isso, a conversa é capenga e se arrasta inevitavelmente para a mesmice da constatações de mantras negativos ou ilusionistas,

Dou outro exemplo da tendência da reportagem da revista Veja à ladainha das panacéias.

O Ministério da Educação, desde o início do atual governo, encaminhou ao congresso um projeto de emenda constitucional de autonomia administrativa das universidades federais. Decorridos quase quatro anos, a proposta continua empacada, ao que se alega, por obstrução das áreas econômicas dentro do próprio governo. Na verdade, há também resistências e desacordos de fundo e/ou pontuais entre os reitores das universidades.

Parece inegável que essa proposta tenha, entre outras, a motivação do Ministro Paulo Renato de Souza tirada de sua experiência paulista como reitor da Universidade de Campinas, a Unicamp, época em que, no ano de 1989, fevereiro, deu-se, por parte do governo estadual, a promulgação do decreto de autonomia de gestão financeira das três universidades públicas do Estado de São Paulo, a USP e a Unesp, além da já citada Unicamp.

Eu era, na ocasião, vice-reitor da universidade e, na seqüência, no mandato de abril de 1990 a abril de 1994, reitor, podendo, assim, acompanhar de perto a implantação e efetivação do sistema nas três universidades, juntamente com meus colegas reitores de então.

O que a revista Veja diz sobre a autonomia administrativa das universidades, com destaque num quadro que resume “Os Problemas e as Soluções” é verdadeiro como princípio, ou, se se quiser, como condição necessária mas ainda insuficiente para a efetiva solução dos tais problemas discutidos ou não na reportagem.

A autonomia é necessária, mas não suficiente e isso é uma constatação que se deve fazer analisando a experiência de quase dez anos do sistema público estadual paulista de ensino superior. Muito se pode aprender e muito se pode entender no que diz respeito ao seu funcionamento, qualidades, avanços, defeitos e medidas complementares a serem adotadas para sua constante otimização.

O fato é que a autonomia não basta.

Veja-se mais de perto o caso da USP, da Unesp e da Unicamp.

O decreto da autonomia, quando foi assinado, consagrava 8.4% do ICMS do Estado para as três universidades. Em outubro de 1991, passou para 9% e hoje está em 9.57%, sendo que à USP toca 5.0295%, à Unesp, 2.3447% e à Unicamp 2.1958%. Nos termos desses percentuais, o orçamento dessas instituições projetado para 1998 é, respectiva e aproximadamente, 980 milhões, 440 milhões e 400 milhões de reais. Nesse último caso, o da Unicamp, só para se ter um dado de comparação, nos anos em que fui reitor da universidade, o seu orçamento médio esteve em torno de 240 milhões.

Houve, portanto, aumento dos recursos públicos, em termos absolutos, mas nem por isso o comprometimento com a folha de pagamento diminuiu. Ao contrário, cresceu: hoje, para as três universidades, o comprometimento médio acumulado, de janeiro a julho deste ano está em 93% do orçamento, sendo USP cerca de 91%, Unesp, 95% e Unicamp, 93%.

O que tem acontecido nas universidades paulistas, quais as causas estruturais e conjunturais desses altos níveis de comprometimento dos recursos com pessoal, quais o procedimentos sistemáticos de avaliação e desempenho implantados por essas instituições para o acompanhamento crítico do exercício efetivo e responsável da autonomia de gestão financeira, quais os erros a serem evitados e os acertos a serem seguidos na adoção do modelo por outras instituições públicas, quais as adequações e modificações necessárias do modelo para cada caso de universidade, quais os instrumentos contratuais entre governo, sociedade e universidade para a obrigação do cumprimento de metas de gestão, de qualidade e de produtividade no quadro jurídico-institucional dos direitos e deveres das partes contratantes da autonomia administrativa das universidades públicas?

Um outro mantra jornalístico que se repete em relação ao sistema universitário público no Brasil é o do custo-aluno. Todos os jornais e revistas repetem os mesmos números e a reportagem da Veja não foge a regra.

É claro que há no ar mais de um número, dependendo do lado do balcão: o governo tem uns, as associações de docentes tem outros e os reitores, outros ainda. Os que aparecem o fazem, dependendo da ótica de quem enuncia e dos interesses argumentativos de quem escreve ou expõe.

Vou, pois, colocar mais um dado na mesa, com o intuito único de procurar fazer ver que é importante promover na imprensa a preocupação com a metodologia e com as fontes de onde brotam esses números, para não correr o “risco sarin”, a história do uso do gás letal pelos Estados Unidos para liquidar desertores americanos na guerra do Vietnã que a CNN/Time montaram e que a imprensa brasileira, Veja e Isto É, inclusive reproduziram pelo simples argumento de autoridade dos autores, tendo depois de se desculpar acanhadas pelo erro dos outros e pela afoiteza da devoção corporativa.

Em 1992, solicitei ao então responsável pela Assessoria de Planejamento da Unicamp, o economista Nelson A. P. Camacho, que realizasse um estudo sobre o custo-aluno da universidade, com o objetivo de dispormos de dados confiáveis nesse particular e de lançar uma discussão sobre a questão metodológica de fundo no cálculo desses valores.

O estudo foi feito, com dados de 1990 e foi publicado em 1993 pela editora da universidade, com o título O Custo do Aluno Universitário – Subsídios para uma Sistemática de Avaliação na Unicamp e nele, tomando como dado nuclear a matrícula por disciplina, o autor chega ao custo médio por aluno de U$ 3.922,73. (*)

Este estudo deveria ter sido atualizado e refinado. Não foi não sei se por desinteresse administrativo ou se por julgamento desacertado de que o processo de avaliação institucional que havíamos realizado não tinha tanta importância e não merecia ser continuado. Espero que ele seja retomado e continuamente aperfeiçoado nesta e nas futuras administrações,

O fato é que, como se vê, há muita discrepância de números e valores, quando se trata de custo-aluno e essa é uma questão que precisa ser esclarecida, com parâmetros conceituais, metodológicos e operacionais estáveis o suficiente para constituírem referência de confiabilidade ao seu uso demonstrativo e argumentativo

Essas e outras tantas questões de fundo e de forma precisam ser pensadas, debatidas, analisadas para que a imprensa contribua, como de fato pode e deve fazer, ao esclarecimento e ao traçado de rotas que nos levem construtivamente à eficiência e eficácia do sistema de ensino superior no país, público e/ou privado, pouco importa.

(*) Na reportagem da Veja aparecem dois números: um indicando que a despesa do governo por aluno, no ano passado, foi de 9.500 dólares anuais; segundo outro cálculo, contabilizados os gastos com inativos e com os hospitais universitários, o custo médio do aluno de universidade federal seria de 17.100 dólares por ano.