Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

De jornalistas e marceneiros

CASO PIMENTA NEVES

José Antonio Palhano (*)

"Nada contra o que já foi escrito, mas não entendi bem por que todo jornalista com espaço assinado se sente obrigado a comentar o caso Pimenta Neves. Se ele fosse um marceneiro, todos os marceneiros teriam que fazer um pé de mesa a respeito? Foi uma tragédia para duas famílias, não acho que haja muito mais a dizer." [Luis Fernando Veríssimo, O Globo, 5/9/00]

Não. Se ele fosse marceneiro, seus colegas de profissão lhe prestariam apenas um discreto e muito previsível apoio moral. Fossem partir para providências mais concretas, optariam – até em nome da sua reconhecida habilidade – em vez do pé de mesa por uma solução mais prática e útil para as agruras inerentes à temporada na cadeia. Quem sabe um conjunto de mesa e banquinho? Pronto. Aí o homem já se sentiria algo mais motivado a escrever suas memórias do cárcere, vez que se livraria da incômoda perspectiva de fazê-lo com o laptop sobre as pernas. Categoria de modos discretos e recatados, cuja rotina evolui em remotos galpões, é improvável que os marceneiros se desabalassem de lá a fim de se dar a iniciativas que extrapolassem das instâncias policiais do episódio em que desgraçadamente se metera o desatinado colega. Difícil que se sentissem moralmente obrigados a se solidarizar com a família da vítima. Considerada tão improvável hipótese, o máximo que poderiam fazer seria o caixão. O mínimo, despachar uma coroa de flores.

Já a nós, jornalistas, cabem pautas bem outras. Não podemos nos dar o luxo de um "não tenho nada com isso, problema é dele e da polícia". O que para muita gente boa, incluída aí a silenciosa classe dos marceneiros, seria recurso válido (ou compreensível), para nós não passaria de detestável e alienada tiradinha. Não que homicídios duplamente qualificados praticados por colegas badalados produzam um terrível, virulento e específico efeito colateral nas entranhas das redações, capaz de nos impelir até a delegacia mais próxima e implorar ao delegado de plantão que imprima nossas impressões digitais. Ou que nos condenem a remoer bíblicos remorsos até o fim dos nossos dias.

É que, até por dever de ofício, passamos o expediente todo – e também fora dele, hora-extra para nós é redundância – a bisbilhotar, falar e escrever sobre as pessoas. Mais que isso, julgando-as. Não importa quem sejam, o que façam ou o que pensam da vida. Basta que se aventurem a virar notícia, lá estamos, pronto a cuidá-las com todo o capricho. Não raro, com a competência de um bom legista, com a sutil diferença de que nem esperamos que elas morram. Tão longe foi o nosso poder que se firmou a crença segundo a qual ocupamos o quarto lugar no ranking, logo atrás de Executivo, Legislativo e Judiciário (se bem que ultimamente o Ministério Público vem atropelando forte).

Nem maldição nem castigo

Tal mito, em nação na qual outro ranking, aquele da distribuição de renda, é uma vergonha planetária, nos fez personagens especialíssimos, cheios de bossa e de estilo. Para usar a expressão do colega famoso, o andar de baixo nos tem na conta de criaturas encantadas que emanam charme, glamour e sex appeal. Passamos o tempo todo, especialmente as madrugadas, metidos em restaurantes de luxo e entretidos em longuíssimas e sapientes conversas arrematadas por puros cubanos e licores franceses.

Vai daí que não tem jeito. Quando um de nós, tido e havido como craque do time, capaz de chegar lá e comandar uma das quatro maiores redações do país, dá dois tiros pelas costas na ex-namorada, acaba sobrando pra gente. E de maneira que extrapola em muito a obrigação da cobertura jornalística. "Como, meu Deus, um homem tão famoso e realizado, bonito, importante, foi capaz de uma coisas dessas?", haverá de estar perguntando alguém lá no tal andar de baixo. O mínimo que nós aqui em cima podemos fazer numa hora dessas é tentar responder. Afinal de contas, as editorias de polícia andam tão banalizadas, com suas incontáveis histórias chinfrins de negros favelados e miseráveis, ou de crianças drogadas e prostituídas, que já não nos interessam mais, a bem da verdade, que um deles dê um tiro, ou dois, na cabeça da mãe ou de quem estiver mais perto. Ninguém dá bola mesmo. Nem os personagens desse mundo cão, silenciados por um estoicismo mal explicado segundo o qual trata-se de um preço a pagar sabe-se lá por quê.

Com jornalista assassino é diferente. Acostumados que estamos a flutuar acima do bem e do mal, urge que expliquemos, ou pelo menos tentemos, essa bagunça que se estabeleceu na ordem vigente, segundo a qual isso que ele fez é-coisa-de-nego-safado-corno-e-ladrão. Em nome de algum resquício de decência, é muito bom que andemos a escrever e a assinar sobre o colega que tirou a vida de Sandra. Quando menos, na intenção de resgatar nem que seja um pouquinho só da auto-estima das pessoas a quem olhamos de cima. Quem sabe assim as fazemos entender que tirar a vida de um semelhante de maneira tão covarde não é atributo exclusivo delas, nem maldição, nem castigo.

Falar e escrever sobre o feito do colega Pimenta Neves é, assim, dramaticamente necessário. A confusão entre responsabilidades e pecados, nessa nossa mixórdia de nação, deságua em impunidade, outra nossa vergonha com marca registrada. Mais que isso, e bem mais ainda que uma tragédia para as duas famílias, é em meio a silêncios supostamente elegantes e reveladores de enfadonho que advogados espertos e regiamente pagos acabam por emplacar descontos e perdões. Decididamente, a nós jornalistas, só cabe fazer todo o barulho do mundo. Sob pena de, constrangedoramente calados, induzirmos as galeras a concluir que assassinatos cometidos no nosso mundinho têm direito a uma certa complacência. Tão velha e atávica quanto as capitanias hereditárias.

(*) Médico, editorialista e colunista político da Folha do Povo, em Campo Grande, MS

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