Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Democracia direta

 

Isak Bejzman (*)

Para Freud as relações democráticas entre o líder de um grupo e seus liderados podem ser assim esquematizadas: o líder informa regularmente os liderados do que anda acontecendo com o grupo; concede justo reconhecimento ao grupo; informa antecipadamente sobre as mudanças àqueles que serão por elas afetados, e discute-as; utiliza da maneira mais eficiente as aptidões de cada um; não se serve de um discurso ideologizado, antes pede e utiliza as sugestões do grupo; faz com que cada um, nas suas funções, pareça importante, de modo que todos se sintam satisfeitos; trata a todos com dignidade, respeito e cortesia; incentiva as iniciativas dos membros do grupo, dando oportunidade para que os problemas tenham suas soluções bem-encaminhadas; deve ser sincero e justo nos julgamentos sobre os participantes do grupo; o líder jamais exagera a importância de sua posição. Fundamentalmente, para ser um líder democrático, é preciso que ele seja uma pessoa despojada, isto é: permita a renovação da liderança e a participação dos demais das decisões.

Vivemos num universo globalizado; infelizmente ainda de tipo darwiniano, loteado em grandes núcleos urbanos onde o pluralismo é paradigma da sociedade atual, e os questionamentos dos sistemas políticos se fazem cada vez mais intensos. A consciência não é individual mas, sim, relacional, de tal maneira que por mais individualista que um ser humano possa ser só podemos entender a realidade social circundante numa contínua referência a terceiros.

O povo brasileiro goza de uma democracia linear na qual as idéias de progresso também são lineares, pois a participação do povo se faz através de um controle ultra-racional, o voto e nada mais. O povo brasileiro está começando a questionar esse sistema. Ele anseia em participar e atuar na construção de sua democracia.

O bolo para os mesmos

Ontem, era preciso fazer o bolo crescer para depois ser dividido. Hoje é a globalização. Enquanto negociantes de armas, drogas, prostituição e lavagem de dinheiro, assim como grandes corporações financeiras, ganharam e ganham muito, mas muito dinheiro mesmo, o povo brasileiro continua excluído: do bolo e do desenvolvimento.

O governo por partidos políticos – seja de um ou de vários – no momento histórico atual está começando a ser contestado. Democracia só será democracia se estiver baseada no desejo dos cidadãos como indivíduos. Chegou a hora de mudar. Para alcançar essa meta é preciso modificar os níveis de congruência ou de harmonia entre os sistemas sociais, econômicos e políticos.

A economia e a política interagem, e um sistema social só faz sentido se é capaz de gerar e manter um sistema político e econômico que transforme a sociedade numa sociedade desenvolvida (desenvolvimento sustentável). Infelizmente, o sistema de democracia representativa que vige no Brasil não conseguiu resolver os problemas e as mazelas que assolam nossa sociedade. O povo brasileiro precisa de um novo sistema político.

Três quedas, três exemplos

Três acontecimentos históricos: a queda do Império Romano no século 5, a abolição do feudalismo, na França, no século 18 e o colapso do império soviético ainda ontem são fatos similares. Cada um tem causas próprias que justificam a queda, porém os três reúnem um fato em comum: a degradação e a podridão de suas elites corruptas, principalmente a soviética.

No badalado “socialismo real”, o povo foi submetido a uma ditadura ferrenha (superestrutura) e a uma linha de produção planejada e dirigida (infra-estrutura) denominada pelos cientistas sociais ocidentais de “sistemas de mobilização”. Inicialmente, parecia ser o ovo de Colombo. Países da área comunista cresciam a 10% ao ano (aliás, esse fenômeno é uma característica das ditaduras – veja-se o Brasil 1964), enquanto os países capitalistas, a 2% ao ano.

Entretanto, a realidade, com o tempo, passou a ser outra. Depois de alcançar certo nível de crescimento, as economias comunistas pararam. Era preciso introduzir na infra-estrutura os critérios de produtividade, porém isto não se consegue por uma propaganda proselitista, mas pelo desenvolvimento do indivíduo. Foi preciso liberalizar um pouco a economia, o que fez com que surgissem as demandas de liberalização do sistema e a conseqüente perda de poder pelo partido. A infra-estrutura em conflito com a superestrutura mais a degradação das elites fez a União Soviética desmoronar.

Povo versus elites

O Império Romano levou séculos para mudar, o sistema feudal francês idem, mas o Império Soviético foi “vapt-vupt”. Os anseios por mudanças no sistema político brasileiro estão gerando um conflito entre o povo e as elites políticas, que temem perder seu poder clientelista.

O povo brasileiro anseia pela melhoria da distribuição da renda nacional para poder viver de uma maneira mais digna; ter boas condições de saúde, habitação, nutrição, educação, saneamento básico, emprego e lazer, pois ele continua um eterno frustrado, continua não sendo ouvido. A democracia representativa nos moldes atuais se mostra incapaz de realizar este anseio. Parece que ela se preocupa mais em resolver conflitos de interesse de grupos bem definidos. E não se deu conta de que a maior riqueza de um país é seu capital humano e social.

Cada vez mais os povos estão a se dar conta de que o comando da política de um país não deve mais ser entregue a um ou vários partidos políticos. A democracia só será verdadeira quando estiver baseada no desejo dos cidadãos como indivíduos.

No Sul, democracia direta

Economia e política andam juntas, abraçadas. Temos no estado do Rio Grande do Sul uma demonstração do que pode vir a ser a democracia direta. A elaboração do Orçamento Participativo (economia e política) que dentro de alguns dias será encaminhado pelo governador à apreciação da Assembléia Legislativa é resultado de um trabalho que abrangeu opiniões de todas as comunidades do estado, ao contrário do último projeto do governo federal, o chamado “Avança, Brasil”.

O projeto “Avança, Brasil” foi produzido por uma consultoria que custou ao Tesouro Nacional 15 milhões de dólares, e baseou-se na lógica de planejar o desenvolvimento do país de acordo com o que os planejadores chamam de eixos de desenvolvimento, ignorando totalmente os estados, suas populações e a cultura desses vários universos geográficos e humanos, assim como os “representantes eleitos” das oposições.

A educação no Brasil e as secas do Nordeste são exemplos gritantes e dolorosos dos passes de mágica, ou o tal de planejamento, que não passam de boas intenções que terminam por se esvair no nada com nada. O analfabetismo absoluto e funcional continua, e as secas do Nordeste parecem perenes.

Um modelo superado

Historicamente está demonstrado que a fase da democracia representativa no Brasil está superada. Existe uma solução de continuidade no tecido social, a tensão entre as elites dirigentes e o povo excluído está se aproximando de limites não desejados por ninguém; beira o colapso social. A velocidade desse processo político, social e econômico de degradação tem relação com a situação internacional, mas está assentada fundamentalmente na velocidade do desenvolvimento que o Brasil e seu povo possam alcançar.

Se as elites brasileiras continuarem ignorando que urge satisfazer as necessidades básicas da maioria do povo, de possibilitar melhor educação, de ampliar e democratizar a informação, se insistir em não abandonar as políticas clientelistas o Brasil seguirá estagnado. Baixos padrões de desenvolvimento estão conjugados a uma economia lenta. Essa conjugação é a dinâmica política de uma relação de poder baseada na violência, que sempre assume uma forma de submissão ou de escravismo disfarçado.

Numa sociedade capitalista é preciso que se estabeleça uma convergência de interesses entre empresário e trabalhador, ambos visando eficiência e rendimento máximo. A economia japonesa e o sistema político e social do Japão constituem um exemplo: um capitalismo de Estado combinado com seguridade social. Não há greves no Japão, e o emprego é assegurado. (É só um exemplo. Não estou dizendo que deve ser copiado. Cada um com a sua cultura.)

O papel das ONGs

De outro lado, o Estado deixou de ser o que era. Outros agentes entraram em cena – as chamadas ONGs –, e operam tanto no plano nacional como no internacional, e acabam funcionando como minipartidos: são elas que vão demandar do governo o preenchimento de certas necessidades do povo.

A degradação do meio ambiente provocada pelo uso inadequado dos recursos naturais (geração de doenças emergentes ou as chamadas novas doenças); a diversidade dos grupos humanos cada vez mais e mais heterogênea, que dificulta a associação dos indivíduos a partidos políticos como no passado; a urna eletrônica; e o desenvolvimento da comunicação, associada às técnicas de computação, possibilitam ao indivíduo participar diretamente da política.

Assim como a empresa deve buscar o caminho da convergência, o Estado terá de buscar caminho similar: harmonizar as diversas estruturas que o compõem para que cooperem entre si, evitando os prejuízos causados pelos conflitos. (Vejam o que está acontecendo na Iugoslávia)

A palavra “partido” vem do latim (pars, partis, que significa parte). O partido político é pois parte ou parcela da sociedade, contra outras partes dela.

No reino das oligarquias

A Inglaterra tinha por lema “dividir para reinar”. Os partidos políticos dividem e imperam em benefício das oligarquias partidárias, que dizem pretender promover o bem social do grupo, mas o que se viu até hoje no Brasil é que o país continua estancado em seu desenvolvimento social, apesar de ser a oitava economia do mundo. É óbvio que um regime democrático no qual o poder é mais diluído é superior a um regime fascista, nazista ou comunista; mas, apesar de vivermos num regime democrático, os recém-nascidos da miséria neste país continuam sendo nutridos com cachaça, e o povo permanece – democraticamente – impedido de resolver seus problemas e de melhorar sua qualidade de vida.

Um sistema político verdadeiramente democrático só pode ser assim entendido quando existir uma cooperação, a mais vasta possível, entre cidadãos e instituições-chave. Uma democracia direta só pode ser entendida como tal se os cidadãos participam de forma integral, e não só com um voto de 4 em 4 anos; isso não é participação, mas o caminho da alienação política.

O povo brasileiro e os políticos deste país precisam resolver se optam entre a centralização autoritária ou o caminho democrático da participação

Pobreza para 1,3 bilhão

A luta política entre partidos é a luta pelo poder, e para alcança-lo usam como justificativa o discurso do bem-estar do povo. De que adianta o deslumbrante desenvolvimento científico e tecnológico alcançado pela humanidade se 1,3 bilhão de habitantes da Terra vivem em pobreza absoluta, se 30% de toda mão-de-obra mundial está desempregada (e se ignora o número de pessoas subempregadas), os bandos de crianças de rua aumentam a cada dia e a exclusão social idem? Esse discurso precisa mudar.

Para que essa mudança ocorra o mais rápido possível é preciso que a mídia modifique sua conduta de falsa neutralidade. Se desgrude do poder do Estado. É preciso que os profissionais da imprensa se debrucem sobre o tema, o estudem em profundidade e se perguntem se essa neutralidade da imprensa frente à democracia direta ou participativa não poderá ser vista em futuro não muito distante como um processo de alienação.

Democracia direta ou participativa não significa excluir os representantes do povo, mas significa, sim, dar ao povo o direito à cidadania.

Mandamentos da democracia

– Toda eleição deve ser direta, podendo ter candidatos sem partido e de partidos.

– O cidadão eleitor tem direito a dar voto de desconfiança a candidato que não cumpre os compromissos assumidos em campanha.

– A mulher deve ter representação numérica igual à dos homens.

– Um candidato a um mandato eletivo poderá ser reeleito uma ou duas vezes, e não se perpetuar no cargo.

– Presidente, governadores e prefeitos, só por eleição direta, sempre. Sem prorrogações ou arranjos e sem reeleição.

– Que os problemas regionais sejam tratados a nível regional (poder ao município) e que as regiões se tornem novamente o lar natural dos seres humanos.

– Que seja dada prioridade a uma política de preservação global da natureza. Uma segunda expulsão das populações campesinas é intolerável.

– Que o referendo seja um instrumento utilizado sempre que os cidadãos o solicitarem.

– Os cidadãos devem participar da política econômica; da organização dos orçamentos.

Todos nós devemos estar seguros de que a Constituição dá a todos os cidadãos o direito – nem mais e nem menos – de gozar igualmente de todos os direitos forma igual para todos.

A Constituição não deve ser somente uma utopia. Deve ultrapassá-la para ser realidade. A melhor maneira de um povo alcançar essa realidade é a descentralização do poder, e não um poder engessado, institucionalizado.

(*) Médico psiquiatra e jornalista

 

Bibliografia

Kliksberg, Bernardo – “Repensando o Estado para o Desenvolvimento Social” – Unesco/Brasil

Relatório do Banco Mundial de 1995

Thurow, Lester – In Education Review e In The Washington Post, ambos de 1997

World Bank Participation Sourcebook – publicado pelo Banco Mundial

Libro de Consulta sobre participación – BID

O Paradigma do Desenvolvimento Sustentável – PNUD

Sustentable Human Development & Cost – Sharing – PNUD

Walter Truett Anderson — Postmodern Politics – In Context

Movement for Direct Democracy: The necessity of changes Congruence of social, economic and political systems.

Freud, S. — Psicologia das Massas (obras Completas – Bagestero)

 

 

Luiz Andrioli (*)

Depois de algumas palavras ditas meio a contragosto, meu interlocutor frisa, bem claro, ao telefone.

– Olha Luiz, estou te falando isto como amigo.

– E estou escutando como amigo também!

– Mas você está anotando tudo que eu falo! Eu sei.

O ruído das teclas sendo rapidamente batidas me denunciou. Tentei disfarçar ou ao menos dar um pequeno discurso ideológico. Embora soasse um pouco antiquado e panfletário, ainda insisto em acreditar em seu conteúdo:

– Olha, amigo: penso que é uma obrigação minha como um comunicador registrar os fatos interessantes que acontecem à minha volta.

– Sim, mas onde você vai publicar isto?

– Não sei… Talvez ninguém leia. Pretendo colar em alguns murais, enviar a alguns amigos… O que importa é registrar o fato, você entende?

– Luiz, não me leve a mal… Mas não quero que você cite o meu nome na sua reportagem. Numa boa, estou te pedindo como amigo e porque sei que ainda está anotando tudo o que estou dizendo. Este caso já foi ruim o suficiente para mim… Chega. Não quero mais me envolver com isso.

– Mas o que fizeram com você é um absurdo. Não dá para ficar quieto! – respondi empolgado, tentando animá-lo.

– Muita gente tentou me ajudar. Mas eu não quero. Por favor, não coloque o meu nome na sua reportagem. Amanhã estou indo para o meu país e quando conseguir regularizar meu passaporte, volto.

– Amanhã?

– É. A Polícia Federal me deu 48 horas para sair do país. O prazo vence amanhã. Sabe como é: ou eu saio ou “me saem”.

– Mas depois de toda esta confusão você ainda pretende voltar aqui para Curitiba?

– Luiz, eu sou estrangeiro. Não conheço as leis e o costume daqui. Nesta luta de poderes entre sindicato, polícia e governo, o único prejudicado fui eu. Mas tudo bem, não vou brigar com ninguém. O dia em que meus documentos atenderem às exigências daqui, eu volto.

Na sua voz, pairava uma calma Zen não muito típica da sua pátria Argentina.

– Então vou te perguntar só mais uma vez – arrisquei, já sabendo a resposta. – Não devo usar o seu nome na reportagem? Tem certeza?

– Tenho, Luiz. É isso mesmo. Penso que a minha arte deve existir e ser bela enquanto arte somente. Não quero que as pessoas venham ver meu espetáculo porque eu sofri, fui humilhado e tive problemas. Não penso na arte como fruto de um talk show. Arte é arte e deve existir para os homens de espírito.

Não insisti mais. Uma reportagem a menos, uma pequena lição de vida a mais. A trajetória do amigo, de quem não revelarei o nome, foi transtornada. Teve sua manifestação artística barrada, foi impedido de se apresentar ao público porque não estava com o visto regularizado como trabalhador.

Habitualmente, órgão grandes como a Polícia Federal não mostram muita preocupação com artistas estrangeiros em rápidas passagens pelo Brasil. Porém, o sindicato competente de Curitiba, na sua legal obrigação xenófoba, comunicou à PF que havia um artista estrangeiro na cidade. Sua primeira etapa de apresentações foi barrada e a segunda só aconteceu porque a renda da bilheteria foi repassada a uma instituição de caridade. Ainda deixaram o argentino sem grana.

Interessante a postura do amigo artista argentino. Ideólogos com tendências panfletárias certamente gritariam, esperneariam, pichariam muros contra este sistema insensível e “contra-artístico”. Difícil de entender ainda mais vindo de um argentino, que certamente lembra do longo período de ditadura que seu país atravessou.

Lembro de uma passagem Zen, onde o mestre fala ao discípulo: o som de duas mãos batendo palmas você conhece. E o som de uma palma apenas?

Este é um Koan, uma pergunta de aparente simples resposta que o Zen nos propõe. Talvez seja o silêncio. A voz do silêncio. Jornalisticamente, seria o direito de ficar em silêncio, perante um fato digno de notícia. Não deixa de ser um protesto, cujo alcance é restrito, geralmente reservado apenas a entrevistador e entrevistado. Mas que é um protesto verdadeiro, isto é!

Poucos dias depois desta conversa com o anônimo artista da terra do tango assisto à despedida do Mister M no Fantástico. O mascarado inimigo número 1 dos mágicos contou que teve problemas com o visto de permanência, por isso precisou partir. De imediato lembrei da conversa com o argentino:

– Não penso na arte como fruto de um talk show. Arte é arte e deve existir para os homens de espírito.

Sábio argentino!

(*) Estudante do 3º ano de Jornalismo