Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Denúncia e responsabilidade pública

BALANÇO 2001

Muniz Sodré (*)

Se há um denominador comum para um balanço possível da imprensa brasileira em 2001, a palavra "denúncia" é forte candidata. Das matérias sobre a cassação de senadores até as contas ilegais em paraísos fiscais, nada parece ter escapado ao crivo fino do jornalismo diário e semanal. Pela imprensa, ficamos sabendo que persistem métodos militares do tempo da ditadura, que deputados mineiros ganhavam 60 mil reais por mês, que bandidos oficiais e marginais estão à solta.

Esta seria, em princípio, a função básica da imprensa ? expor o que eticamente não deve permanecer oculto, tornar transparentes aos olhos da sociedade os atos e decisões que se cumprem nos desvãos do Poder.

Desde Kant e Milton, o Ocidente habituou-se a ouvir os ecos da proclamação do princípio de publicidade dos atos do "Príncipe", ou seja, da injunção a que se expusessem os arcana imperii ou segredos do poder. A imprensa, descaminhos à parte, desenvolveu-se e ganhou prestígio na trilha dessa movimentação histórica.

Pode-se enxergar aí a contrapartida ético-política das funções jurídicas do Ministério Público. Como fazem promotores e procuradores em sua instância própria, cabe à imprensa, além do provimento da informação essencial ao bom andamento da cidadania, denunciar os abusos de poder, quer partam do "Principe" (o Estado com seus aparatos coercitivos), quer provenham de seus desdobramentos políticos.

Hoje, sob o primado da mídia, o poder é também eletrônico, como argumenta o sociólogo Otávio Ianni, cunhando a expressão "príncipe eletrônico". Com a expansão do dispositivo televisivo e das novíssimas tecnologias digitais, a indústria da informação atingiu a condição de estrutura de poder, constituindo-se em verdadeira forma de vida paralela, fortemente vetorizada pelo mercado e portanto diretamente articulada com a moderna esfera do consumo.

Causa pública

Fortemente comprometido com o statu quo, o príncipe eletrônico isentou-se desde o início da função histórica de vigilância estreita do poder de Estado, mas esta permanece ideologicamente colada à imprensa escrita. Por isso é que, em seus melhores momentos, o jornalismo avizinha-se do Ministério Público. Mas é fundamental que se estabeleçam as diferenças: os métodos de investigação e de denúncia por parte do jornalista devem estar basicamente afinados com os imperativos éticos de sua função, mantendo a necessária distância do vezo coercitivo, às vezes opressivo, do Ministério Público.

Na atuação da imprensa brasileira em 2001, nem sempre foram muito claras as diferenças. Em alguns casos, a conivência com o grampeamento telefônico aproximou perigosamente a atividade jornalística dos procedimentos coercitivos típicos do Estado. Noutros, a exigência da denúncia beirou o vício do denuncismo. É verdade que os resultados finais parecem ter convergido sempre para o bom serviço da causa pública, mas permaneceu sem suficiente discussão, como uma espécie de resto obscuro, o limite da ação jornalística quanto à privacidade do cidadão. E isto num momento da História em que a multiplicação das técnicas eletrônicas de controle ameaça cada vez mais as garantias de reserva íntima do indivíduo.

A partir daí se levanta aos poucos uma questão que poderá vir a ser axial para o exercício da função jornalística, ou seja, o problema da proteção dos direitos civis contra o cerceamento advindo não apenas do Estado, mas do chamado príncipe eletrônico. Impõe-se a reformulação da identidade profissional do jornalista na direção de um publicismo capaz de investigar e promover o debate das grandes questões sociais com o espírito crítico e aberto às possibilidades de mudança social.

Um adequado primeiro passo será o de não deixar o acontecimento esgotar-se no ritmo cíclico da novidade jornalística, e empenhar-se no acompanhamento institucional dos fenômenos que sejam vitais para a sociedade como um todo. Um bom exemplo é o caso da greve dos professores das universidades federais. Pela primeira vez, a imprensa deu a atenção devida ao movimento, cujas razões de fundo terminaram evidenciando-se nos fatos vergonhosos que se seguiram, ligados às sanduicherias do ensino, tão estimuladas ao longo desses últimos sete anos pelo atual governo, em detrimento do ensino e da pesquisa de qualidade.

Será preciso agora acompanhar mais de perto o andamento real da educação, longe da publicidade paga e das caras assessorias oficiais. Em função da seriedade das causas públicas, o publicismo obriga-se a recusar o imperativo do entretenimento fácil em que recai sistematicamente o príncipe eletrônico.