Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Depois da guerra fria, guerra quente

MECHA NA BOMBARDA

Deonísio da Silva (*)

Dostoiévski não via diferença entre bombardear uma cidade e assassinar alguém a machadadas. Tolstói escreveu que a guerra é contrária à razão e à natureza humana. Clemenceau tornou célebre o dito de que a guerra era coisa grave demais para ser deixada com os militares.

Agora, os brasileiros. Mário Quintana: "se dependesse das mães/ não haveria guerra!". O poeta gaúcho repercutiu Horácio, seu colega romano (bella matribus detestata, as guerras são detestadas pelas mães), mas acrescentou um verso que nos faz pensar em outra direção: "mas as filhas preferem os soldados…" .

O padre Antonio Vieira: "nas guerras até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro". Carlos Drummond de Andrade ? que injustiça mundial não ter recebido o Prêmio Nobel! ? escreveu: "toda guerra é ganha pelos generais e perdida pelos soldados".

Mas outra guerra chegou. Estourou a dos EUA contra o Iraque, semana passada, depois de insistentemente anunciada.

O Iraque tem 24 milhões de habitantes e é menor do que o estado de Minas Gerais, cuja população é de 18 milhões. E quase um terço de sua população vive concentrada em apenas quatro cidades. A maior é Bagdá, a capital, com cerca de 5 milhões de habitantes. Seguem-se Mosul, com aproximadamente 700 mil; Irbil, com quase 500 mil; e Kirkuk e Basra, ambas com cerca de 400 mil habitantes.

A partir de quarta-feira (19/3), os EUA, disfarçados numa coligação com a Inglaterra e mais alguns penduricalhos que não fariam a menor diferença se estivessem ou não no conflito, atacaram duramente o pequeno país, bombardeando, sobretudo a capital, com um fogo intenso. Tudo sob a desculpa esfarrapada de derrubar o ditador que eles criaram para enfrentar o Irã, país que os EUA queriam enfraquecer por temerem a revolução que levou aos aiatolás ao poder.

Se o ideal dos EUA era a democracia, porque deram tanta sustentação ao ditador que há alguns anos não lhes está mais submisso? O preço da democracia americana tem sido pago em faturas contraditórias. A América do Sul, nosso país aí incluído, sabe que os EUA fomentaram dos anos 60 até meados dos 1980 as mais cruéis ditaduras. No Uruguai, na Argentina, no Chile, no Brasil.

Em todas essas nações ainda há marcas de sangue nas casas e cadáveres de filhos que ainda sequer foram encontrados. Tudo em nome dos interesses da democracia dos EUA. O povo americano é bom, generoso, inventivo, mas alheio ao resto do mundo. Quando um problema não o afeta diretamente, faz de conta que não tem nada com isso.

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi consultada por George Walker Bush. Mas o presidente do EUA somente concordaria com a ONU quando ela concordasse com ele. Como isso não aconteceu, o mandatário da maior potência do planeta ordenou o massacre que o mundo assiste pela televisão. Talvez os EUA consigam derrubar o ditador do Iraque. E quem sabe nas próximas eleições o povo americano nos livre de George Walker Bush.

Mosca varejeira

No momento, dois loucos estão em guerra e, como sempre, não haverá vencedor. Ou será que o Exército dos EUA teria coragem de comemorar uma vitória sobre o Iraque?

Os EUA estão arrasando o Iraque porque afirmam que é preciso afastar o perigo que ronda o mundo: Sadam Hussein tem armas de destruição em massa. O Iraque, não sabemos se tem. Mas os EUA temos certeza que sim. E os que conhecem um pouquinho de História apenas, sabem que os EUA e o Iraque integram o vergonhoso time que usou armas de destruição em massa. Os EUA, em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, o inimigo vencido na Segunda Guerra Mundial. Aquilo, sim, foi destruição em massa. E o Iraque, utilizou armas químicas sobre os curdos, etnia que combate sistematicamente.

Os EUA são hoje os donos do mundo. E desde a semana passada estão arrasando o Iraque, novo nome da antiga Mesopotâmia (meso, potamos), assim chamada pelos gregos por ser território situado entre rios, o Tigre e o Eufrates. Faz 5 mil anos que ali nasceram civilizações como as dos sumérios, acádios, babilônicos e assírios.

Bagdá é mais novinha. Foi fundada no ano 762. Ano passado os bagdalis comemoram os 1.240 anos de sua cidade. Um milênio, dois séculos e quarenta anos de existência! A vida de uma pessoa é muito curta. Até a de uma nação também é curta, pois novos interesses mudam fronteiras e denominações. Mas sabemos que o lugar é ali, seja o nome que tenha. E não há ninguém que duvide que Iraque é apenas outro nome daqueles célebres nomes.

Bush vai viver quantos anos? Será uma mosca varejeira na história do Iraque, por mais retumbante que seja essa sua "vitória".

Um fósforo

Para quem escreve, a principal ferramenta de trabalho é a palavra. Numa hora dessas, sabendo de todas as limitações, assinamos todos os manifestos contra a guerra, escrevemos artigos aqui e ali deixando bem claro de que lado estamos, sonhando com aquela velha metáfora de que o vendaval que acontece aqui tem a ver com o bater de asas de uma borboleta no outro lado do mundo. Ah, as borboletas! Tão breve a vida delas, dura muito menos que a nossa!

E esta semana vimos na televisão o presidente Lula fazer um comunicado sereno e firme declarando que o Brasil não apóia a guerra dos EUA contra o Iraque. Lula começa a dar passos que o tornam pelo menos mais independente do que José Maria Aznar, da Espanha, e outros pilantras que se submeteram de forma vergonhosa, contrariando o próprio povo que representam.

Quem pode tomar partido numa guerra de dois loucos? Um diz que Alá o ajudará a exterminar os inimigos. Ontem foi o Irã, foram os curdos, foi Israel. Hoje são os EUA e seus aliados. E amanhã, tanto para os EUA como para o Iraque, quem serão seus inimigos?

Nossos jornalistas estão escrevendo sobre a guerra. E há alguns artigos memoráveis. O de Dorrit Harazim, "Horrores da guerra sob as lentes" (O Globo, 23/3/03) é simples e pungente [leia o artigo na rubrica Entre Aspas desta edição OI] . A pretexto de resenhar um livro, a jornalista nos conduz por caminhos que suscitam algumas daquelas marcas que nos fazem humanos: pensar e sentir.

Erico Verissimo disse a um jornalista quando perguntado sobre a função do escritor: riscar o seu fósforo para diminuir a escuridão.