Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Desaforos contra a língua

TEXTO JORNALÍSTICO

Deonísio da Silva (*)

A bagunça dos neologismos já levou um deputado federal a tentar disciplinar seu uso em nossa língua. A questão é controversa, como se sabe. Mas se vigorasse um código semelhante ao do trânsito, prescrevendo multas específicas para todas as infrações, provavelmente o governo poderia substituir a CPMF, cuja renovação está ameaçada depois do "racha" do PFL. A arrecadação seria abundante e começaria nos próprios aparelhos de Estado, contumazes transgressores do patrimônio público pelo qual deveriam zelar.

Ademais, entre os que criticaram o projeto do deputado estavam professores universitários que fazem "colocações em congressos" (o galináceo as faria com mais eficiência), enfeiam suas dissertações e teses com "a nível de" e "pré-requisitos" e acham que no uso da língua a botânica deve substituir a jardinagem. É de se supor, então, que não ornamentem os ambientes de convívio com flores, mas com um punhadinho de sementes nos vasos. Ora, lugar de semente é no canteiro, no laboratório etc, mas jamais no vaso, se o intuito é embelezar o ambiente e torná-lo mais agradável.

Afora isso, prestemos atenção às sutis complexidades de algumas inovações e à rudeza pura e simples de outras. Há dois anos alguns jornalistas modernosos tentaram substituir as finais do futebol por play off. Felizmente a bobagem não pegou. E semana passada, ao noticiarem atentados do PCC em dois foros da cidade, o plural escolhido foi "fóruns". Não há regra? Cada um grafa como melhor lhe parece? Privatizaram também a língua?

Com efeito, o inglês adotou o latim media, plural de medium, meio, para designar o conjunto dos meios de comunicação social. Como, porém, adaptamos à nossa escrita a pronúncia inglesa, macaqueamos o neologismo deles e grafamos mídia.

Fórum veio do latim forum, praça, lugar onde se tratavam assuntos de interesse público ou particular e ao redor do qual ficavam os templos e tribunais. Conflitos podiam ser resolvidos ali, antes ainda de serem formalizados os processos, mas quando o ato era muito violento, seu praticante ficava privado de foro, daí o ?des, que em português indica negação. Aliás, o escritor gaúcho Sergio Faraco (58) organizou o Livro dos Desaforos (Editora L&PM), em que reúne poemas de célebres poetas que não levaram desaforos para casa. Antes os imortalizaram em poemas.

Curriculite aguda

E os leitores? O que farão diante dos desaforos cometidos
contra a língua pelos profissionais da escrita, aqueles que
mais deveriam zelar por ela? Como disse Mário Quintana, "um
erro em bronze é um erro eterno". Chutatis chutandis,
um erro na escrita não é efêmero. Fica lá
para sempre. A fala, não. A fala é corrigida permanentemente
em saudável cooperação dos interlocutores envolvidos
no diálogo. Na escrita, porém, dá-se coisa
diferente. Freqüentemente, um erro não é acolhido,
a não ser muito tempo depois, já fora de contexto,
num "erramos" que será ignorado: quando alguém
pesquisar o artigo ou, na pressa comum ao fechamento das matérias
recorrer à consulta, transcreverá outra vez o mesmo
erro.

Os dicionários recomendam foro em vez de fórum. Por conseguinte, o plural recomendado é "foros". Também aqui há controvérsias. O debate deve ser ampliado. Pois, como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. A CPMF não designou na origem uma contribuição provisória sobre a movimentação financeira? O que é mesmo que o PFL rachou? Mas PFL não significa Partido da Frente Liberal? Que liberais são esses que "racham" a base de sustentação do governo porque querem impedir a aplicação de sua doutrina política, que, segundo as definições em curso, "visa a estabelecer a liberdade política do indivíduo em relação ao Estado e preconiza oportunidades iguais para todos"?

Como se vê, há várias maneiras de estourar os foros. Com bombas e com desaforos são duas delas. O PCC escolheu a primeira. O PFL, a segunda. Se a Justiça pode trabalhar contra todos, menos contra os políticos, é preciso reformular nossas leis. Se a língua não é de todos, se alguns poucos podem mudá-la sempre que quiserem, precisamos tipificar os crimes de lesa-língua.

Seminários que não se propusessem à apresentação de papers para agravar a curriculite que afeta alguns intelectuais que depois, em vez de imprimir suas "colocações", preferem "printá-las", poderiam aprofundar a discussão de certas questões lingüísticas que afetam a todos.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos; seus livros mais recentes são De onde vêm as palavras e o romance Os guerreiros do campo