Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Desnudando Darwin: ciência ou ideologia? ou A relação incestuosa da mídia brasileira com a Nomenklatura científica

Celso Galli Coimbra (*)

 

Desde 17 de setembro de 1997, a União e os Conselhos Federados de Medicina começaram a receber sucessivas interpelações judiciais, inicialmente com o intuito de oficializar a informação e a prática neurocientífica mais avançada, que desde 1996 vinha suscitando a invalidade dos dogmáticos critérios diagnósticos da morte encefálica em diversos centros médicos e científicos do mundo, inclusive do Brasil.

De imediato ficou evidente que não se aceitavam demonstrações científicas atuais do obsoletismo deste pretenso diagnóstico, pela simples razão de que sem ele a maior parte da milionária atividade transplantista ficaria inviabilizada, diante do fato de que transplante de órgão vital somente é possível se o paciente estiver com sua atividade cardiorrespiratória preservada.

Documentou-se a história da concepção dos critérios da morte encefálica pelo Comitê Ad Hoc da Harvard Medical School, completamente ausente de bibliografia referencial (comitê este composto estranhamente por transplantadores também), levada a efeito meses após o primeiro transplante cardíaco na cidade do Cabo, África do Sul, decorrente do imperativo de eximir, dentro dos países mais rigorosos na observação de suas leis penais, os médicos transplantadores de responsabilidades criminais.

Assim, as interpelações seguintes, além do aporte documental, bibliográfico e científico, já passaram a promover a prevenção de responsabilidades civis e criminais de pessoas jurídicas e físicas que continuaram a sustentar a indiscutibilidade do prognóstico homicida, uma vez tratado com se diagnóstico de morte efetivamente fosse.

O Conselho Federal de Medicina, subordinado ao autoritarismo dos interesses transplantadores, até o presente momento vem sistematicamente esquivando-se de enfrentar os argumentos neurocientíficos que estão há quase um ano no Informe Científico, Serviços ao Público do site da Unifesp, e que serviram também como principal fundamento neurológico destas ações judiciais.

Hoje, nomes dos mais expressivos da comunidade médico-científica mundial enviam declarações para uso público no Brasil, endereçadas ao autor daqueles textos, avalizando e solidarizando-se com a importância decisiva do trabalho científico ali veiculado para a revisão dos critérios “diagnósticos” da morte encefálica, absolutamente carentes de fundamentos providos da menor seriedade para com a vida humana.

A conduta autoritária e avessa a críticas quanto aos critérios para uma determinação imprecisa do momento da morte para fins de precipitada (e assim evidentemente desejável) declaração de óbito, consignados na Resolução CFM 1.480/97, em pouco estará sendo examinada sob a tipificação do Artigo 121 do Código Penal (“Matar alguém”), tanto do ponto de vista culposo como doloso.

Esta responsabilidade criminal já foi judicialmente prevenida.

Vital ser enfatizado que a revisão diagnóstica da morte encefálica decorre da possibilidade inédita e já concretizada de impedir a sua ocorrência e impedir o seqüelamento neurológico em qualquer nível, através da utilização da terapêutica hipotérmica. Gerson Brenner foi o primeiro beneficiado e privilegiado por esse atendimento, publicamente, no Brasil.

Enquanto isso, o Inamps, para os não-privilegiados, a pedido de transplantadores, paga mais por um leito de UTI utilizado por paciente com quadro de morte encefálica aguardando a retirada de órgãos, enquanto pacientes que ainda não fizeram esse quadro ficam nos corredores esperando vaga nesses mesmos leitos. Se morrerem antes, o que não é raro acontecer, o leito que lhes fora negado para privilegiar interesses estranhos aos dos pacientes presentes nos hospitais ser-lhes-á, então, priorizado.

É a institucionalização do efeito-dominó da morte encefálica. É a indústria do homicídio com o rendoso aproveitamento de entranhas, sob a retórica de salvar vidas de terceiros, destruindo com a exclusividade da relação médico-paciente para beneficiar estranhos a esse primeiro atendimento..

No discurso transplantista, a palavra doação vem sendo abusiva e generosamente usada. Com a pior das intenções para com o suposto “doador”. Mas o que efetivamente está sendo imposto ao cidadão futuro paciente absolutamente nada tem a ver com o que vem a ser doação.

Doa-se apenas aquilo que não compromete a vida ou a subsistência do indivíduo. Se compromete, estamos diante de uma exigência de sacrifício humano de vida. Doação não se pressupõe, é ato de liberalidade intervivos, não mortis causa. Essa hábil confusão consegue causar o efeito desejado sobre a boa fé de quem é instado a aceitar-se “doador”.

Finalmente, dentro desse contexto, o Cremesp legitimou a discussão pública ao comparecer oficialmente ao programa Opinião Nacional da TV Cultura de São Paulo, do dia 16 de janeiro de 1998, através de um seu conselheiro, o neurologista Célio Levyman, em longo debate, no qual o fato mais marcante e grave é que ele afirmou categoricamente em público que o teste da apnéia (desligar o respirador do paciente para comprovar que o mesmo está morto), determinado pela Resolução CFM 1.480/97, não durava dez minutos, mas sim dois ou três minutos, e que se durasse 10 minutos (como de fato é o tempo estipulado pela Resolução do CFM) seria um desastre para a vida do paciente.

Legitimou, mas não enfrentou.

E seu representante naquela oportunidade admitiu expressamente que 10 minutos de teste da apnéia é um desastre para a vida do paciente (do qual serão retirados os órgãos a seguir). Contudo, não disse a verdade quando reiterou que a resolução indicada determinava dois ou três minutos para este teste.

Isto tudo é muito grave e já tornou-se público.

Ainda assim, o CFM e os Conselhos de Medicina entendem que os médicos têm o poder de desligar os aparelhos (parecer do conselheiro Nei Moreira da Silva) e de decidir se alguém está com morte encefálica.

Enfrentem o assunto, porque principalmente deste “poder” também se presta contas.

(*) Advogado

 

José Antonio Palhano

 

Uma carona no (oportuníssimo) assunto levantado na edição anterior do nosso OI pelo repórter José Mitchell e pelo advogado Celso Galli Coimbra, ainda na repercussão do artigo de Victor Gentilli A grande pauta do JN que ninguém viu (O.I . n.? 57).

Indústria transplantista, na ótima expressão do colega, rima com sociedade consumista. Pena que seja rima franciscanamente miserável. Assim, se há muito não temos o menor apreço (ou caridade, no nosso estilo miserê de ser) por crianças inteiras que, abandonadas, vagueiam pelas ruas mercadejando seus corpinhos desproteinizados, é mera conseqüência que, mutiladas ou esquartejadas, sirvam ao florescente mercado de órgãos humanos.

Tal mercado é igual a qualquer outro. Oferta e procura ditam as regras e ponto final. Se alguém ainda se escandaliza com a possibilidade, que caia na real: volta e meia a imprensa européia levanta suspeitas sobre essa clandestina pauta da nossa balança comercial. Mais que louvar a acuidade jornalística do Velho Mundo, convém lembrar que lá, berço da civilização por excelência, se estabelece a matriz de uma das mais prósperas indústrias da modernidade. A pedofilia, costume próprio dos humanos evoluídos (e nutridos) cujas demandas exigiram-lhe a condição de multinacional. Tem filial pra todo lado, como está a provar contundente artigo de Mauro Malin na edição anterior deste O.I.

Como manipular sexualmente uma criança é o mesmo que retalhar sua alma – e isto não tem a menor importância, vide divulgações a respeito na Internet -, especular com suas vísceras tampouco demandaria em quaisquer espasmos de moralidade.

Voltando ao nosso badalado consumismo, não há a menor hipótese de estabelecermos a curto prazo padrões éticos confiáveis na questão dos transplantes. Área em que a ciência tem andado rápido demais num contexto onde o binômio criança/dinheiro ? ou adulto/dinheiro, mas sempre convém valorizar os pequeninos, sobretudo em vésperas natalinas – além de dizer fantasticamente bem destes tempos, compra também nossas consciências.

O missivista oferece um seu raro dedo digitador em troca de notícia que dê conta de eventuais dificuldades encontradas por um distinto paciente com saldo médio razoável para localizar um rim em ótimo estado de conservação, pouco rodado, original, com garantia e sem colesterol. A terminologia, longe de debochada, é compatível com o nível dos nossos classificados, onde por enquanto predominam ofertas de gentes inteiras, mas já com um tímido rim aqui, outro acolá. Ou não?

A alusão renal, aliás, não é gratuita. Procedimento chegado a um nível de evolução quase ótimo, ilustra a inapelável conexão dos transplantes à questão da bufunfa nacional, tão perversamente distribuída. Rim, hoje, é rigorosamente peça de reposição. O que seria uma beleza, não fosse um pequeno detalhe. Entre o progresso científico, infelizes renais crônicos e muita gente com rins em ponto de bala, imiscui-se, na maior cara de pau, o vil metal. E aí é um pulo chegar até às considerações anteriores, que tratavam das nossas crianças de rua. Um tremendo corta-barato para os coleguinhas transplantadores mais afoitos e mais devotos do tal rigor científico e das mortes cerebrais. E mais alienados. Aqui fora do mundinho branco e esterilizado tá cheio desses pivetinhos. Acrescentem-se a eles seus pais bêbados, suas mães diariamente surradas e suas irmãs prostituídas. Reserve. Receba um paciente particular no consultório, louquinho por um órgão qualquer. Se acaso o doutor não topar, o distinto vai topar tudo por dinheiro. E ousará procurar outro doutor que também o faça. Misture tudo sem dó. Pronto. É o Brasil, apesar da sua evoluidíssima lei de transplantes.

Se falamos em renda mal distribuída, a revista Veja (2/12, pág. 104) acaba de nos oferecer atual e tocante matéria na qual semelhante distribuição é didaticamente explicada segundo critérios zoológicos mais politicamente corretos que os que rezam sobre a pirralhada suja que infesta as ruas e mancha os vidros dos nossos carros. Uma foto enorme ilustra uma perua riquésima, feliz e faceira a segurar um cachorro. O quadrúpede ostenta no pescoço uma caríssima peça de ouro, à guisa de coleira. O texto, além de mui profissionalmente chamar a atenção para a grife do artigo veterinário (procedência européia, lógico), fala da bípede, seus valores e de uma outra perua sua amiga, também chegadinha em cachorros a ponto de se auto-intitular madrinha de um deles. A magnífica e edificante reportagem não se furta a informar os preços das bugigangas cachorrais.

Às perguntas, pois:

Madames capazes de enfeitar animais com ouro maciço e de ganhar uma página na Veja saberão discernir entre bucho de cachorro de colo e coração de criança de rua, se eventualmente forem perguntadas por uma revista mais séria sobre quem deve doar a quem, caso a ciência torne a operação viável?

O que pensará do Brasil, da sua imprensa e das suas crianças de rua (que pintam toda hora na TV francesa) o desgraçado do ourives que, lá de Paris, fatura em cima de madame?

Caso pense algo e necessite de um rim para sua filhinha, será que sondará discretamente madame sobre a possibilidade da remessa de unzinho só daquela barrigudinha escura que freqüenta uma certa praia de Fortaleza? Vale uma semana em Paris para a coitadinha e sua mãezinha querida, que será regiamente recompensada com uma pulseirinha banhada a ouro. Nada como a coleira (colar, perdão) do cachorrinho, evidentemente. Mas o que vale é a intenção, n?est-ce pas?

Feliz Natal.

(*) Médico e cronista

xxx

J. A. P.

 

Quem viu com certeza se chocou. Na semana que passou a imprensa – jornais e TV – deu conta de um idoso que, raptado, teve os olhos arrancados e roubados, sendo em seguida devolvido à vida. A ação, segundo parecer de um médico em entrevista, foi coisa de profissionais, realizada à luz de conhecimentos cirúrgicos. Em outras palavras, alguém emboscou aquele pobre senhor para destinar seus olhos a um receptor. Assim, pois, o transplante, um símbolo da inesgotável capacidade do Homo sapiens em sua busca incessante de novos limites, tecnologia médica de ponta, passa cruamente, de agora em diante, a instrumentalizar a barbárie.

Alguém andava a precisar de um par de córneas; há, como se sabe, uma fila enorme de pessoas na mesma situação aguardando pacientemente sua vez para voltar a enxergar. Este mesmo alguém resolveu fazer as coisas a seu modo. Considerou sua vítima a pessoa ideal para resolver seu problema: pobre, já com uma certa idade, portanto algo assim como um ente descartável. Contratou uma equipe especializada, acertou o preço – ou honorários – e pronto. Serviço feito. Se não foi assim, aquele par de olhos foi roubado para experiências mais sofisticadas, ainda não postas em prática. Ou ainda , serviram como sacrifício de alguma seita fanática, destas que volta e meia surgem por aí.

Desconsidere-se esta última hipótese, quando menos pela já citada precisão cirúrgica do ocorrido. Consequentemente, e à guisa de um corolário ruim, quanto mais evolui cientificamente a dita civilização, mais e mais se vê refém da denominada maldade humana. “Isto é uma desumanidade!”, clamaria um indignado. “Que coisa mais medieval!”, observaria outro.

Como criticar a obsessão pelo conforto material é diversão de muitos, registre-se aqui , oportunamente, ser esta uma premissa incompleta. A expressão desumanidade, por exemplo, emana um conforto moral exuberante. Atos desumanos seriam próprios dos não humanos, naquela que seria, seguramente, a mais abrangente e espetacular das absolvições desde Adão e Eva. A culpa, então, seria dos bichos. O humano (racional, bonito e bom), lastimavelmente herda todas as maldades do seu parente mais próximo, o símio (irracional, feio e mau). É, por isto, dado a sair por aí a praticar malvadezas, as chamadas desumanidades.

Da mesma forma, medieval, magistral recurso da temporalidade, que deixa para trás um passado remotíssimo, repleto de crueldades inomináveis que, com certeza, não eram coisa de gente. Beleza pura, não fosse a incômoda constatação de que os bruxos e os esculápios da época não dominavam a tecnologia de transplantes e afins, atributo da modernidade pretensamente boa e altruísta. Sem dizer da culpabilidade zoológica, já que não se tem notícia de víboras que, evoluídas, estejam a inocular sua peçonha nos incautos equipadas com canhões de raios laser. Ao contrário, desde os tempos em que ofereciam maçãs a bípedes sabidos, permanecem os mesmos répteis cuja picada é tão somente mecanismo de defesa contra pisadas tanto de bípedes quanto de quadrúpedes. Puro instinto.

Já os racionais, pródigos em romper barreiras nas conquistas científicas, persistem, através dos séculos, intrínseca e umbilicalmente ligados à violência que, tal um versátil vírus, trata de se reciclar com novas roupagens para os novos tempos. Não faltam tentativas, inclusive, da regulamentação desta mesma violência. O Estado de Hitler seria um exemplo clássico. Ali, não faltaram experiências em deficientes físicos, crianças e judeus, sob o sólido pretexto da depuração racial.

Hitler se foi, mas o nazismo teima em continuar vivo, por enquanto contido em bolsões radicais, predominantemente no Primeiro Mundo, definido como desenvolvido. Por aqui, recentemente o próprio Hitler foi elogiado publicamente por um galã famoso. Meio século depois, o repúdio à sua insanidade bate de frente com um incipiente e ameaçador mercado negro de órgãos humanos. Nada mais hitleriano. Que não se diga que o episódio do roubo dos olhos é lá muito isolado. Classificados de jornais com órgãos à venda são um fato. Rumores de crianças raptadas para o posterior aproveitamento de seus órgãos são mais e mais freqüentes.

Em se falando em crianças, aí está o Brasil inteiro engajado, governo à frente, numa campanha para livrá-las da exploração sexual, altamente profissionalizada. Não deixa de ser um comércio de órgãos, com a vantagem de não se precisar extraí-los. Simplesmente, prostitui-se, suas famílias inclusive.

Enfim, se a violência acompanhará a evolução científica até o fim dos tempos, que se torça por esta última. Se não faltará, no futuro, quem arranque olhos de velhos indefesos, certamente não faltará quem saiba repô-los, sem precisar deixar ninguém cego. Ou assim se pensa, ou se faz como o poeta e se diz, simplesmente, que a vida não vale a pena.

 

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