Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Dez reflexões sobre uma perversa contradição

Lira Neto (*)

 

A

gente conhece uns vigias que pastoram a gente de noite” (Cid, 12 anos, vendedor de jornais).

1. Cid mora no Conjunto Palmeiras e tem 12 anos. Todo dia é a mesma coisa: acorda cedo, antes das cinco da manhã, quando a cidade inteira ainda está dormindo. Dia escuro, o garoto já espera o caminhão que, daqui a pouco, vai levá-lo para o trabalho. No Brasil, o trabalho de crianças é ilegal, proibido por lei. Mas, mesmo assim, Cid é um dos quase mil garotos que podem ser vistos, pilhas de jornais debaixo do braço, nos cruzamentos das principais ruas de Fortaleza. Cid, é claro, parou de estudar. Essa vida de vender jornal atrapalhou a escola. Ganha 30 centavos por cada exemplar que consegue vender.

2. Sábado é o pior dia para Cid. O jornal de domingo é editado mais cedo. Cid então sai para o trabalho no começo da tarde e só volta para casa no final da manhã de domingo. Nesses dias, quase sempre vira a noite na rua.

Dorme as noites de sábado ao relento, fazendo os jornais de travesseiro. Ou mata o tempo em algum boteco, olhando o movimento, esperando a manhã seguinte para ir de novo à luta. Muito provavelmente, caro leitor, o jornal que você lê todos os dias chega às suas mãos através do trabalho (ilegal) de uma criança. Uma criança que vive a mesma rotina perversa do pequeno Cid.

3. Segundo a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) a maioria absoluta dos jornais brasileiros utiliza a mão-de-obra infantil. Há poucas exceções: alguns dos maiores jornais do país – a Folha de S. Paulo, por exemplo – não possuem gazeteiros. Preferem terceirizar a distribuição. Mesmo assim não fogem à regra: a Andi informa que algumas empresas que distribuem esses grandes jornais exploram também o trabalho de crianças. Fazem o jogo
sujo por eles.

4. Ás vezes, há um abismo entre o que pregam os jornais e o modo como eles agem. Nesse caso, vale o chavão do “faça o que eu digo mas não faça o que faço”. Você, caro leitor, já deve ter lido, nos jornais, dezenas de matérias que denunciam a exploração do trabalho de crianças e adolescentes: meninos quebrando pedra, infâncias perdidas nos canaviais e carvoarias, crianças catando lixo no Jangurussu. Contraditoriamente, os jornais só esquecem de dizer que não fazem a mínima questão de dar o bom exemplo.

5. Na sexta-feira passada, O Povo publicou um editorial indignado. O editorial, todos sabem, é a voz oficial de um jornal. Pois o editorial do O Povo, naquele dia, fazia um veemente protesto contra o trabalho de crianças no Brasil. Citava dados do IBGE: existem hoje cerca de 4,2 milhões de crianças trabalhando no País. “Trata-se de uma situação alarmante e vergonhosa”, definia o editorial do O Povo. Para ler tal frase, os leitores podem justamente ter comprado o jornal, ali na esquina, de um gazeteiro. De uma criança.

6. Em setembro do ano passado, O Povo iniciou um projeto para mudar o perfil de seus gazeteiros. Passou a contratar jovens com mais de 16 anos, deu-lhes treinamento, fardamento completo e garantiu-lhes o direito à carteira assinada. Com isso, esses gazeteiros passaram a ter acesso a férias, 13o salário, FGTS: todos os direitos trabalhistas previstos pela CLT. Já é, sem
dúvida, um grande avanço. Um exemplo concreto de que é possível aos jornais dar um basta naquela contradição entre discurso e prática.

7. Mas o projeto citado acima está apenas no início. E, infelizmente, andando mais lento do que o planejado. Mais da metade dos gazeteiros do O Povo ainda não têm qualquer direito trabalhista. Boa parte deles são crianças. “Não há prazos previstos para que a mudança atinja 100% de nossos gazeteiros”, reconhece José Raimundo Cruz, gerente de Circulação do O Povo,
um dos idealizadores do projeto.

8. A exploração da mão-de-obra infantil é, de fato, um assunto complexo. Lugar de criança, realmente, é na escola. As crianças que estão fora dela, trabalhando, não estão desperdiçando suas infâncias por acaso. Elas são filhas dos milhões de brasileiros que estão desempregados ou que vivem de bicos e subempregos. Assim, os gazeteiros são parte de uma realidade terrível. E, contra tal realidade, nem sempre basta a boa vontade. A solução definitiva para o problema pode esbarrar em questões estruturais. Para vencê-las é necessário, por exemplo, repensar a urgência de uma política econômica de redistribuição de renda e de um redimensionamento da escola pública. “Toda criança na escola” precisa ser mais de que uma ficção política. Mais do que um bom slogan em ano eleitoral.

9. Enquanto isso, os jornais podem começar a fazer a sua parte. A Andi tem uma primeira sugestão: em vez de crianças, as empresas de comunicação poderiam empregar os pais ou os irmãos mais velhos dos atuais gazeteiros. As famílias deles não seriam prejudicadas e os jornais deixariam de explorar a mão-de-obra infantil. É uma possibilidade. Os jornais precisam pensar outras assim, simples e criativas. O que não podem é passar atestado de cinismo: noticiar com destaque os preparativos para a Marcha Contra o Trabalho Infantil – que será realizada em junho, na Suíça, durante a Conferência da Organização Internacional do Trabalho – enquanto insistem, eles próprios, em manter exércitos de crianças trabalhando.

10. Aquele projeto iniciado em setembro pelo O Povo não pode ser esquecido. Enquanto a mudança no perfil dos gazeteiros não atingir 100% da mão-de-obra empregada, os leitores terão razão de cobrar coerência do jornal em relação ao editorial de quinta-feira. Certamente, o exemplo pode pressionar os jornais concorrentes – até aqui insensíveis à questão – a fazer o mesmo. Até agora, nenhum jornal brasileiro mereceu o selo de “Empresa Amiga da
Criança”. O selo é concedido pela Abrinq (Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos) às empresas que não exploram a mão-de-obra infantil. O Ombudsman torce, sinceramente, para que O Povo seja o primeiro a fazê-lo.

PS: A história de Cid, o gazeteiro cearense, está contada no livro Crianças de Fibra, de Iolanda Huzak e Azevedo, publicado pela Paz e Terra.

(*) Ombudsman de O Povo, de Fortaleza.