Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dib Carneiro Neto

A HOLYWOOD BRASILEIRA
"O maior ?noveleiro? do Brasil", copyright
O Estado de S. Paulo, 10/11/02
"Na sinopse de Renascer, que Benedito Ruy Barbosa
entregou à Rede Globo, em 1993, o trecho final dizia: ?Quanto
ao final, vamos esperar para ver que rumo tomar, sem ofender a família
brasileira.? Essa parceria com o telespectador é hoje fundamental
no complexo processo de se produzir uma novela no Brasil. É
impensável fazer novela sem levar em conta as reações
da audiência. O fenômeno está analisado no livro
A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, de Mauro
Alencar (Editora Senac Rio, 176 págs., R$ 52, incluindo um
CD com 18 temas de novelas). O autor é fanático pelo
gênero. Tem 7 mil fitas com gravações em vídeo
e 700 discos com trilhas, sem contar fotos, recortes de jornal,
álbuns e todo tipo de produto lançado como merchandising
pela TV. Há dez anos é consultor do programa Videoshow,
da Globo, e assina uma coluna de TV no jornal Diário de São
Paulo. Seu livro foi lançado esta semana em festa fechada
no Rio, no Planetário da Gávea, e terá sessão
de autógrafos no dia 12 (na Livraria da Travessa, em Ipanema).

Estado – Qual foi a época em que as novelas eram mais criativas?

Mauro Alencar – A extinta TV Tupi, em sua época áurea,
forçava uma concorrência acirrada com a Globo. Eram
duas grandes. uma querendo superar a outra. A Tupi entrava com modernização
temática e de linguagem, como, por exemplo, introduzir o
personagem urbano em Beto Rockfeller, o espiritualismo de A Viagem,
o humor juvenil de A Barba Azul. As Gaivotas se passava em plena
São Bernardo das greves! Enquanto isso, a Globo introduzia
a excelência visual, o aparato tecnológico e a industrialização
do modo de produção do gênero telenovela. Foi
um período espetacular e fértil. A Tupi acabou em
1980 e até agora nenhuma ocupou seu lugar. O SBT tenta formar
um sistema de novelas, mas ainda não se consolidou.
Estado – Você acha que hoje os autores inovam pouco?
Alencar – Olha, está mais complicado inovar, porque há
toda uma estrutura mercadológica dando as regras. O Beijo
do Vampiro é atualmente a mais criativa. E Sabor da Paixão
cumpre bem os requisitos do horário das seis.
Estado – A realidade do País aparece bem retratada nas novelas?

Alencar – A cara do Brasil está nas novelas, sim. Isso, aliás,
é que faz esse nosso produto, a telenovela, ser imbatível
e único no mundo. Ninguém consegue chegar perto do
nosso jeitão característico de fazer novela. A sociedade
inspira a novela, que devolve esse real na forma artística.
A função social da novela se consolidou na época
da ditadura militar, porque os autores não conseguiam falar
do que queriam no teatro e passaram a usar a TV. Dias Gomes, por
exemplo, teve sua peça A Invasão censurada no início
dos anos 70 e a transformou no grande sucesso que foi Bandeira 2,
no horário das 10, com o tema dos bicheiros no Rio.
Estado – Você acha que há abuso nas temáticas
comportamentais e nas cenas de sexo?
Alencar – Se um autor sente que há algo novo, alguma atitude,
algum lance comportamental, ele inclui isso na novela. Não
há nada que a telenovela mostre que já não
exista de alguma forma na vida real.
Estado – Na sua opinião, qual telenovela mais chocou o público
até hoje?
Alencar – Brasileiros e Brasileiras, no SBT, em 1990, mostrou, como
nenhuma outra, o lado realmente miserável do ser humano.
O autor, Carlos Alberto Soffredini, centrou seu texto na camada
paupérrima da população brasileira e acabou
por chocar e afugentar o espectador.
Estado – Janete Clair ainda é o modelo mais adequado a ser
seguido pelos autores?
Alencar – Justiça seja sempre feita: ela estruturou toda
a filosofia e a técnica de se escrever telenovela e criou
o psicologismo dos personagens.
Estado – O que você acha das novelas que fazem campanhas no
meio da trama?
Alencar – Acho admirável e muito útil. Novela pode
fazer mais do que só entreter. Por que não? Janete
Clair também fez campanhas com os personagens, mas na época
dela houve mais patrulha. Em Duas Vidas (1977), ela foi muito criticada
por retratar o desconforto dos moradores do Rio que viam suas casas
desapropriadas para a instalação do metrô.
Estado – Desde o primeiro beijo, entre Vida Alves e Walter Forster,
qual o casal romântico que mais marcou a TV até hoje?

Alencar – Na minha avaliação, Simone e Cristiano,
vividos por Regina Duarte e Francisco Cuoco, na primeira versão
de Selva de Pedra, em 1972, são o exemplo mais perfeito e
acabado do casal que perseguia conquistas pessoais, profissionais,
amorosas. O público sofreu com eles e se identificou como
nunca. Janete Clair escreveu com garra e talento.
Estado – Você também é fanático por trilhas.
Quais as suas preferidas?
Alencar – O tema de abertura de O Bem Amado, de Toquinho e Vinícius
(bem como toda a trilha da novela), era inspiradíssimo. O
disco de Gabriela é espetacular. Mas uma canção
ficou para sempre no inconsciente do brasileiro e até hoje
é lembrada para representar o esforço dos trabalhadores:
Retirantes, que abria Escrava Isaura com aquelas gravuras de Debret.
Quando alguém quer dizer que está se sentindo escravizado,
começa a cantarolar aquele ?lerê-lerê?…
Fantasia e realidade
?Novela, o próprio nome já define: um novelo que vai
se desenrolando aos poucos.? (Janete Clair)
?A telenovela é o espelho mágico dos brasileiros:
às vezes, ela acaricia; às vezes, aliena; muitas vezes,
é contundente, agride. Mas, de qualquer forma, reflete a
nossa realidade.? (Lauro César Muniz)
?A telenovela é a única chance que o escritor tem
de realizar um trabalho com a co-autoria dos atores, dos diretores
– de toda a equipe – e do público, porque é com a
resposta a cada capítulo que a nossa imaginação
vai sendo estimulada a continuar aquela história.? (Gilberto
Braga)
?A novela tem o poder de fazer com que o país inteiro discuta
determinado assunto. Nós, como novelistas, podemos contribuir
para um Brasil melhor.? (Glória Perez)
?A novela pode falar, como tem falado, de nossa realidade, mostrando
para o mundo um pouco da nossa história, do nosso povo e
dos problemas que este País atravessa.? (Benedito Ruy Barbosa)

?A telenovela já adquiriu uma linguagem tão própria,
que hoje não deve mais nada culturalmente: nem ao cinema
nem ao teatro brasileiros. E é sem favor nenhum o melhor
produto de entretenimento que se produz no País.? (Sílvio
de Abreu)
?A novela tem a mesma importância que Hollywood para a sociedade
americana, porque ela nos mostra quem somos, ela nos revela a nós
mesmos.? (Euclydes Marinho)
?A novela é um gênero que realmente arrebata os telespectadores
de todas as classes sociais.? (Aguinaldo Silva)
?As novelas refletem a realidade e isso tem muito resultado, porque
elas pegam o telespectador pela emoção. É muito
mais efetivo que um slogan político ou publicitário.
Você mobiliza o corpo e a alma das pessoas.? (Maria Adelaide
Amaral)"

 

A GUERRA
"A visão que atravessa a história",
copyright O Estado de S. Paulo, 10/11/02
"Os modos de observar o mundo têm variado
ao longo do tempo. Com os avanços da pesquisa científica
foi perdendo prestígio a idéia de que, em busca de
conhecimento, o olhar tem de se limitar a seguir as pegadas dos
fatos. Reconhece-se cada vez mais que mesmo a mais trivial observação
é feita à luz de um ponto de vista. A diferença
entre um relato insípido e uma explicação luminosa
é determinada pela ótica adotada e não pela
escravização aos dados. Isto não significa
que nada possa ser visto como realmente é, que o fato é
sempre contaminado por preferências subjetivas ou posicionamentos
ideológicos, e sim que abordagens se distinguem pela variada
competência com que extraem e interpretam informações
no garimpo da História. O mundo que se oferece à observação
não é igual para todos os olhares. As lentes usadas
podem ter o poder de desnudar o microscópico ou de embaçar
o óbvio. A maioria das interpretações, por
carecer de criatividade interrogativa, é insossa. A passividade
diante de uma massa dispersa de informações impede
que se busquem ?determinações ocultas? por trás
do estonteante espetáculo das aparências. A boa pesquisa
mostra que os fatos não falam por si mesmos. Clamam, no fundo,
por interpretações que os respeitem e os transcendam
ao mesmo tempo.
Conjunto é formado por quase mil páginas de texto,
ilustrações, índices e estudos escritos por
especialistas sobre a obra, o autor e seu tema
Os Boletins Semanais de Julio Mesquita sobre a Primeira Guerra Mundial
exemplificam de modo emblemático o diálogo da interpretação
com as informações. É motivo de júbilo
para a cultura nacional estarem agora Os Boletins sendo publicados
sob a forma de livro. Trata-se, aliás, de edição
impecável em quatro volumes com o título singelo A
Guerra (O Estado de S. Paulo/ Editora Terceiro Nome, 902 págs.,
R$ 200). Além de ter sido responsável, como bem assinala
Jorge Caldeira, ?pela implantação do jornalismo moderno
no Brasil?, Julio Mesquita exibe uma poderosa capacidade de reflexão
em suas crônicas sobre a guerra publicadas em O Estado de
S. Paulo de 1914 a 1918. Os textos reunidos não encerram
apenas grande importância jornalística. Neles sobressai
o poder de interpretação de fatos históricos
dos quais Julio Mesquita foi contemporâneo. Por isso o livro
A Guerra representa o resgate de um rico material intelectual. Sua
leitura torna patente que o autor tinha a consciência, pioneira
no plano da realidade cultural brasileira, de que entre as principais
funções do jornalismo destacam-se a de informar com
fidedignidade e a de interpretar o que está acontecendo.
E que procurar compreender ?o que se passa? exige um tipo de acuidade
analítica que pode ser conciliada com o endosso a determinados
valores. A explicação, quando embasada e elucidativa,
não é incompatível com o firme posicionamento
diante dos acontecimentos.
Julio Mesquita sabia que o jornalismo não pode, para ser
bom, se limitar a registrar fatos. Precisa ousar dar sentido às
várias constelações de eventos que movimentam
a vida das sociedades. O ser humano faz a história e é
por ela moldado. Quem tem consciência disso sabe das enormes
dificuldades enfrentadas pelos estudos que procuram, evitando simplificações
e esquematismos, entender as ações humanas como combinação
de livres escolhas e condicionantes sistêmicos. Essa a razão
pela qual o analista não pode se deixar levar pelo olhar
circunstancial que vai atrás dos fatos sem se mostrar capaz
de capturar as causas que os articulam, conferindo-lhes uma ?lógica?,
e de detectar as razões e os motivos que levam os homens
a empreender determinados cursos de ação. Nos Boletins
Julio Mesquita se propôs a informar sem abrir mão de
analisar as notícias, muitas vezes vagas e desencontradas,
que lhe chegavam da Europa, da América e da Ásia.
Por fazer uma leitura criativa e repleta de insights do material
que recebia, seus textos se destacam pela capacidade de reflexão.
Por não ter se limitado a parafrasear os informes, fez observações
acuradas que se mostram valiosas até para o especialista
no assunto. Sua abordagem sistêmica o levou a ver a guerra
em suas conexões com a diplomacia, a cultura e a história
dos povos envolvidos no conflito. Merece destaque também
o fato de ter se posicionado francamente contra o espírito
belicista da época e de ter adotado uma postura humanista
de repúdio às barbaridades perpetradas nos campos
de batalha.
Desdobramentos – Julio Mesquita tinha clara noção
de que, em vista das dimensões que o conflito assumira, seus
desdobramentos se fariam sentir nas décadas seguintes. Os
Boletins deixam transparecer sua preocupação com os
novos e assustadores desafios que o mundo tinha diante de si. Percebia,
como bem assinalou Barbara Tuchman em The Proud Tower (1966), que
o homem ingressou no século 19 contando basicamente com os
mesmos poderes de que dispunha desde o início da Era Cristã.
Mas que no século 20 ocorreram profundas mudanças
que se traduziram no extraordinário aumento da capacidade
de transporte, comunicação, produção,
manufatura e destrutividade dos armamentos. E que tudo isso se tornou
possível pela substituição da força
animal pela energia das máquinas. Com isso, o poder de exterminação
passa a ser ditado pelos avanços tecnológicos da indústria
bélica. Ao humanismo atento não poderia deixar de
causar espanto a constatação de que ao homem estavam
sendo concedidos novos e desmesurados poderes para dar curso aos
mesmos e velhos instintos de agressividade tanatológica.
A ferocidade podia ser a mesma de outros tempos só que os
meios de lhe dar vazão e expressão passam a ser muito
mais eficazes e devastadores. Em alguns dos escritos de Julio Mesquita
há a clara percepção do perigo representado
pelo avanço das ?tecnologias do mal?. Em outros vislumbra,
por meio da intuição, que o mundo tende a se tornar
cada vez mais unificado. E que os novos processos, no que têm
de bom ou mau, tendem a gerar desdobramentos em escala planetária.
É essa capacidade de dissecar fatos, atentando para seu impacto
sobre a existência humana, que dá a seus textos – elegantes,
simples, despojados e concisos – não só inestimável
valor intelectual como também o caráter de consciência
crítica de uma época cujos trágicos acontecimentos
respingariam sobre as décadas seguintes.
Articulista divide-se entre o historiador e o filósofo da
história, de acordo com Gilles Lapouge, escritor e repórter
do ?Estado? em Paris
A verdade é que só quem tem o dom de decifrar a interação
oculta entre o que está acontecendo e o que está sendo
gestado no ventre do desconhecido pode oferecer algo mais que simples
relato. A notícia pode-se resumir a ser a simples e objetiva
narração do fato. Mas o comentário de qualidade
é aquele que capta o diálogo sotto voce entre os eventos
próximos e os distantes, entre os protagonistas e os coadjuvantes
da cena histórica. Não há como perceber como
o atual desenrolar dos acontecimentos pode ser a causa originadora
de muito do que se esconde atrás de cada curva do porvir
sem ousar ir além do imediatamente dado, sem correr o risco
de estar trocando o chão dos fatos que, bem ou mal são
informativos, pelas nuvens das conjecturas. O que mais se destaca
na obra de Julio Mesquita é exatamente esse descortino que
lhe permite, respeitando os fatos, deles extrair o que escondem
debaixo do tecido epitelial. Com base nos recursos de que dispunha,
forjar abrangentes painéis descritivos já teria sido
trabalho altamente meritório. Só que a isso não
se limitou. Com acuidade interpretativa buscou entender o que se
passava na conflagração mundial e identificar suas
conseqüências no tempo. E nada disso faria se não
acreditasse que o olhar é o holofote por meio do qual a inteligência
vai separando o essencial do acessório, o substantivo do
acidental. Caldeira observa que, ?embora claramente posicionado
ao lado da causa aliada, em nenhum momento (Julio Mesquita) empregou
esta crença para torcer os fatos dos campos de batalha?.

O posicionamento que respeita os fatos não é pernicioso
e contribui para o entendimento da situação, ao passo
que o posicionamento que os desconsidera é uma simples tomada
de partido.
Os que acreditam que os eventos da história humana têm
neles mesmos um sentido supõem que basta observá-los
para compreendê-los. Acabam ficando passivos diante de seu
intrigante espetáculo. Os que assumem atitude intelectual
ativa, como faz Julio Mesquita, têm consciência de que
participam do processo de construção de sentidos para
a História.
Interpretações sem fatos são vazias assim como
fatos sem interpretações são cegos. Por ter-se
dado conta de que o conflito mundial representava uma disputa entre
democracia e militarismo, Julio Mesquita não hesitou em se
apegar aos valores que promovem a defesa da Sociedade Livre. Desse
modo, deixa a Guerra de ter para ele o simples significado de conflito
para se transformar numa luta pela afirmação inequívoca
de certos valores. Isso não o impediu de buscar a versão
mais isenta possível dos acontecimentos da Primeira Guerra
Mundial, coletando informações oriundas de várias
fontes, sem abrir mão de apresentar uma linha editorial firmemente
definida e defendida. Nasce assim o modelo de jornalismo que procura
estabelecer fecunda convivência entre a isenção
do noticiário e o posicionamento valorativo veiculado no
espaço dedicado aos editoriais.
O que chama a atenção no livro A Guerra é o
cuidado com que os acontecimentos são acompanhados e a inteligência
com que são articulados.
Não basta relatar que 65 milhões foram mobilizados,
que 8 milhões morreram e que 21 milhões ficaram mutilados.
Só uma grande sensibilidade premonitória poderia ter
levado Julio Mesquita a se dar conta de que estava diante apenas
de um capítulo de uma tragédia, recheada de fúria
militar e racionalização ideológica, que se
arrastaria pelo século 20. Quando observa, por exemplo, que
?este conflito não termina agora? Julio Mesquita mostra uma
especial capacidade de ver a história como um processo no
interior do qual há cadeias de acontecimentos que se fecham,
como ponto final de uma etapa, e há cursos de eventos que
geram outros que precipitam outros e cujo desfecho pode se dar muito
tempo depois sem que as pessoas tenham percebido que o atual está
conectado ao longínquo. Como parte das águas de um
período histórico transborda imperceptivelmente para
o leito de outras épocas, o observador circunstancial não
percebe como o antes condiciona o depois. A despeito das profundas
e dramáticas mudanças que ocorrem de tempos em tempos,
a história é uma espécie de eterno presente
que condensa tudo que já foi. Julio Mesquita conseguiu, pela
força da análise e da intuição, captar
essa dimensão processual da História. Por isso, dá
a entender que a Guerra terá continuidade com velhos e novos
dramatis personae.
É a capacidade de ler nas entranhas do presente um pouco
do que será o futuro que transforma o observador em analista.
Os fatos só passam a constituir uma história quando
se apreende o encadeamento entre eles. Do contrário, constituem
uma seqüência de ocorrências sem direção
ou sentido. A história como tal não existe. O homem
começou a inventá-la a partir do momento que passou
a dar sentido ao curso dos acontecimentos, vendo-o como aproximação
ou afastamento de algum ideal. Para muitos, a história ganha
sentido quando vista como reconquista de um Paraíso Perdido,
para outros quando é a realização de uma Utopia
que encarna todas as perfeições. Para o analista percuciente
não é o ideal que explica o real, e sim a grandiosa
marcha, com o tanto de bem e mal produzidos, dos acontecimentos
com suas interdependências e seus nexos causais. Julio Mesquita
mostra ter a ciência, ao menos intuitiva disso, quando escreve
sobre o que lhe é contemporâneo com os olhos voltados
para os desdobramentos no amanhã. Essa idéia de que
a história é um processo simultaneamente aberto, porque
não há inevitabilidades, e fechado, porque determinadas
ações parecem tornar obrigatórias determinadas
reações, fazia parte do esquema mental de Julio de
Mesquita. E isso evidencia a qualidade e a atualidade de seus textos.

Intuição – Os gregos poderiam ter sido derrotados
pelos persas na batalha de Maratona e possivelmente a história
do Ocidente teria sido outra. Vale sempre a pena imaginar como teria
ficado o mundo se determinadas coisas tivessem acontecido e outras
tivessem deixado de sobrevir. A forma como a Alemanha foi derrotada
na Primeira Guerra e como depois foi colocada de joelhos permitia
ao analista sagaz inferir que o segundo tempo da conflagração
estava a caminho. O que merece destaque na leitura da obra A Guerra
é que Julio Mesquita observa os fatos com a consciência
de que, longe de se esgotarem neles mesmos, são partes de
um Todo histórico-planetário chamado século
20. Na verdade, a Primeira Grande Guerra só terminaria em
1989 com a queda do Muro de Berlim. É evidente que Julio
não tinha como antever isso. Mas a análise que o leva
a profetizar a eclosão da Revolução Bolchevique
mostra como foi capaz de intuitivamente pegar o fio da meada dos
fatos. Os conflitos só deixaram de se dar entre grandes potências
com a derrocada da União Soviética. Não por
acaso, hoje a luta é travada entre a única grande
potência sobrevivente e os grupos e Estados terroristas sem
nenhuma expressão política, econômica e militar.
Não deixa de ser irônico que o conflito entre nações
poderosas tenha desaparecido para dar lugar a uma luta sem causa
de grupos terroristas que formam ?estados ambulantes? que não
desafiam mais governos, mas sociedades.
Se Julio Mesquita estivesse ainda entre nós por certo nos
ajudaria a entender um mundo que fica cada dia mais complexo porque
aponta para um futuro desconhecido sem ter deixado de ser refém
de acontecimentos que ainda não foram completamente fechados,
que ainda geram efeitos desgarrados. Na história, quando
termina um grande incêndio, um outro se prepara para acontecer.
Hoje são muitos os focos. Alguns certamente resultam de um
rescaldo mal feito do fogo que começou a arder na Primeira
Grande Guerra. A Julio Mesquita as homenagens por ter escrito sobre
sua época de olho em nosso futuro. (Alberto Oliva é
professor de Filosofia da UFRJ)"