Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Diploma e liberdade de expressão

DIPLOMA EM XEQUE

Josenildo Luiz Guerra (*)

O que mais impressiona na decisão da Justiça Federal de São Paulo para abolir a exigência do diploma em jornalismo é a originalidade do principal argumento: o diploma impede a liberdade de expressão. Sob dois aspectos, pelo menos, este argumento carece de boa consistência. Primeiro, várias pessoas ? juristas, economistas, políticos, cientistas, etc ? publicam diariamente seus pontos de vistas em diversos jornais, como qualquer leitor de fim de semana pode constatar. Segundo, a liberdade de expressão é uma prerrogativa para o exercício do jornalismo, mas não a prática em si. Este segundo aspecto é fundamental para discutir então o outro argumento que fundamenta a decisão, de que o profissional não requer habilidades específicas indispensáveis à coletividade ou que possa pôr em risco a vida de pessoas.

Os jornais estão cheios de pessoas publicando artigos a todo momento sobre os mais diversos temas, exercendo o seu direito de expressão consagrado não apenas na Constituição brasileira, mas em qualquer documento sobre direitos fundamentais do homem. Se o espaço não é acessível a todos que o desejem, é por força de motivos mais restritivos do que a falta do diploma, como o espaço físico limitado que qualquer veículo possui (exceto os que têm o suporte digital para disponibilizar conteúdo via internet) ou a capacidade financeira de pagar seus colaboradores. Essas restrições atingem a todos, inclusive os beneficiados com a decisão judicial. Se hoje, por exemplo, um jornal criado por várias pessoas sem diploma fosse lançado, também teria em seus quadros um número restrito de pessoas trabalhando, excluindo outras. Seria então a capacidade física ou financeira de um veículo aspectos restritivos da liberdade de expressão? Não vale considerar o espaço destinado ao leitor, duas ou três linhas, e que mesmo assim não contempla a totalidade de manifestações enviadas…

O segundo aspecto é sem dúvida muito mais interessante considerar. Toma por pressuposto que o jornalismo se esgota na liberdade de expressão, como manifestação de um pensamento individual a ser submetido à apreciação pública. A imprensa, como suporte tecnológico de um veículo, o jornal, foi importante em diversos momentos da história, seja mundial seja deste nosso país, como instrumento de publicação de idéias e ideais de diferentes atores políticos. Com o parlamento, forma os dois grandes fóruns das sociedades democráticas modernas para o debate de questões de interesse público. Mas, em benefício da própria sociedade, a imprensa evolui, "transformou-se" em jornalismo: uma prática voltada não apenas para ser o instrumento da livre expressão de seus colaboradores, mas para garantir e disponibilizar as informações necessárias ao público, a fim de que se inteire do que acontece na sociedade e os cidadãos possam formar seus próprios juízos.

Envolvimento exagerado

Essa "transformação" configura um novo papel para o jornalista: o de mediador. Ele se abstém de expressar suas convicções, para abrir-se à pluralidade. Ele se abstém do exercício de sua liberdade de expressão, em sentido estrito, para garantir às suas fontes uma mediação imparcial (sim, imparcial, por mais criticado que seja este adjetivo, pois sem ele perde-se toda e qualquer possibilidade de arbitragem em conflitos de interesse). No entanto, ele não prescinde da liberdade de expressão para que o seu trabalho possa circular livremente junto ao público. Assim, o jornalista deixa de ser um publicista, defensor aguerrido de seus ideais políticos, para tornar-se um profissional "da mediação": apura os fatos e leva informações sobre eles ao público, medeia a exposição dos interesses e de visões nas situações de conflito.

Compreendendo o jornalismo dessa forma, então, é possível entrar no segundo argumento, o de que o jornalismo não requer habilidades específicas indispensáveis à coletividade ou que possa pôr em risco a vida de pessoas. Nesse argumento, duas questões estão postas: a exigência mínima para o exercício do jornalismo e a relevância social da atividade.

Até a decisão da Justiça Federal de São Paulo, a exigência mínima era o diploma, fruto de uma dedicação de quatro anos de estudo num curso superior. Se essa formação tem sido satisfatória, se precisa melhorar, se podem haver outras formas de ingresso na profissão, além dessa exigência, todas são questões passíveis de serem consideradas. Mas, considerar que o "hábito da leitura" e o "próprio exercício da prática profissional" sejam suficientes, conforme o argumento da juíza, para formar um jornalista, significa enxergar o ofício com alguma estreiteza.

Primeiro, porque acha que o bom jornalista é aquele que acumula conhecimentos diversos ? seja o especialista em generalidades, seja o economista, perfil "mais adequado" para ser o editor de economia; segundo porque a prática seria suficiente para prover as habilidades requeridas.

O jornalista não é uma enciclopédia ambulante, que extrai de seus próprios conhecimentos, obtidos seja na faculdade seja em qualquer outro lugar, o objeto de sua matéria. O jornalista é o profissional da pergunta, suas respostas normalmente não estão já contidas em sua mente, por mais brilhante que seja. Ele usa o seu brilhantismo para saber buscar a informação e trabalhar os dados que obtém. Para isso, claro, precisa ter uma base de conhecimentos que lhe permita um mínimo de rigor na investigação dos fatos, de conhecimentos da área que cobre, de ética para ter sempre em conta as implicações de seu trabalho na vida do p&uacutuacute;blico, das fontes e dos envolvidos em sua cobertura.

Nada garante, em conseqüência, que um economista possa ser melhor editor ou repórter de economia do que um jornalista. Quanto maior a especialidade, mais fechado é o foco. Pode não ser regra, mas um economista-repórter pode cair na tentação dos ministros da área e ver o mundo apenas sob o ponto de vista econômico. Aliás, talvez nisto esteja sua virtude enquanto economista, ter a competência para aplicar seus conhecimentos e obter êxito na sua área, mesmo que sacrifique outras. Afinal, a vida é feita de escolhas. Mas, será isso que se espera de um jornalista? Hoje, o jornalismo já sofre do envolvimento exagerado de seus profissionais com o meio que cobrem ? mesmo sendo jornalistas ? como acontece com a cobertura política, restrita aos corredores do Palácio da Alvorada e do Congresso Nacional.

"Selo de qualidade"

A formação do jornalista a cargo da própria experiência, pelo menos em três aspectos, se mostra problemática. Primeiro, o tempo de adaptação e treinamento dentro do jornal se tornaria maior, o que para os próprios jornais seria desvantajoso. Se hoje muitos executam programas de treinamento para focas, já com quatro de anos de universidade, imagine-se com pessoas sem nenhuma familiaridade com a área? Segundo, o jornal corre o risco, formando seus próprios profissionais, de estagnação e "envelhecimento", uma vez que suas rotinas, práticas, técnicas, vão sendo repetidas de geração em geração, comprometendo sua própria renovação de idéias e projetos. Terceiro, a oferta de uma mão de obra já iniciada, como a que sai das faculdades, passou por um processo no qual lhe foram antecipados problemas próprios da atividade, o que lhes dá melhores condições de exercer a profissão. E, dentro do jornal e do jornalismo, esse "sangue novo" pode causar impactos benéficos contra os vícios da profissão.

O perfil do profissional reflete a preocupação com o exercício da atividade. Muito mais do que a satisfação elitista da posse de um documento formal, o diploma representava a preocupação com a qualidade da produção jornalística oferecida ao público. Mas, por que a prática jornalística suscita preocupações? Porque é fundamental para a formação da opinião pública. Se não põe em risco a vida, em sentido biológico, de ninguém, pode pôr em risco a honra, os sonhos, a dignidade e outros valores que costumam dar sentido à vida das pessoas. As vítimas do mau jornalismo infelizmente são esquecidas tão rapidamente quanto de uma hora para outra tornam-se expostas à humilhação pública. Sem falar na falta que informações de qualidade fazem à democracia.

A discussão da exigência do diploma passa fundamentalmente pela discussão dos critérios mínimos a serem exigidos daqueles que querem ser jornalistas. Pessoas, profissionais, a quem a sociedade confia a satisfação de um direito fundamental na democracia, o direito à informação. Essa discussão se torna ainda mais fundamental no presente momento, quando a mera disponibilização de informações torna-se cada vez mais fácil, graças à internet. Mas, em se tratando de jornalismo, que presume credibilidade de quem informa e a confiança de quem é informado, é preciso ter garantias mínimas sobre a veracidade do que está sendo dito. Sem o diploma, a marca da credibilidade seria exclusivamente das empresas que dizem fazer jornalismo.

Com o diploma, tal marca exige um reforço adicional. A sociedade ganha com isso. Duas partes, pelo menos, empresa e profissional, têm de estar de acordo sobre a natureza do trabalho realizado na redação. Esse "acordo", cuja situação já é tensa hoje em empresas controladas pelo poder político e agravado pelo mercado de trabalho restrito, só tende a ficar mais delicado. O diploma funciona como um "selo de qualidade" do profissional que se habilita à atividade. Não deve ser o único, não é 100% eficiente, mas é um instrumento, até que se possam desenvolver outros mecanismos que o substituam ou o complementem.

(*) Jornalista, professor da Universidade Federal de Sergipe, doutorando Facom/UFBA.

    
    
                     

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