Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Dênis de Moraes

MÍDIA & GLOBALIZAÇÃO

"O capital da mídia na lógica da globalização", copyright Rets (Revista do Terceiro Setor), 24/02/02

"As corporações de mídia e entretenimento exercem um duplo papel na contemporaneidade. O primeiro diz respeito à sua condição peculiar de agentes operacionais da globalização, do ponto de vista da enunciação discursiva. Elas não apenas vendem e legitimam o ideário global, como também o transformam no discurso social hegemônico, propagando visões de mundo e modos de vida que transferem para o mercado a regulação das demandas coletivas. A retórica da globalização intenta incutir a convicção de que a fonte primeira de expressão cultural se mede pelo nível de consumo dos indivíduos e coletividades. Como se somente o mercado pudesse aglutinar o que se convencionou chamar de organização societária.

A grande mídia assim opera tanto por adesão ideológica à globalização, quanto por deter a capacidade única de interconectar o planeta, através de malhas de satélites, cabos de fibra óptica e redes infoeletrônicas. Não creio existir outra esfera da vida cotidiana habilitada a interligar, em tempo real e on line, povos, países, sociedades, culturas e economias. A característica integradora é algo peculiar e intrínseco aos complexos de difusão. Eles concatenam, simbolicamente, as partes das totalidades, procurando unificá-las em torno de determinadas significações.

Ao mesmo tempo em que reverberam o que Pierre Bourdieu define como ?a doxa invasiva e insinuante do neoliberalismo? (1), os conglomerados de mídia atuam como agentes econômicos globais, contribuindo para revigorar o modo de produção capitalista. Segundo o banco de investimentos Veronis Suhler, as indústrias de informação e diversão foram o setor de crescimento mais rápido da economia norte-americana entre 1994 e 2000 – à frente dos mercados financeiro e de serviços. (2) Mesmo que o desempenho possa ser afetado pela retração das verbas publicitárias e pela desaceleração internacional, a consultoria UBS Warburg prevê que os investimentos em mídia continuarão a crescer a médio e a longo prazos.

Os grupos de comunicação buscam alcançar os parâmetros de lucratividade e rentabilidade que orientam as ações dos demais gigantes transnacionais. Os interesses estratégicos, modelos organizacionais e alvos mercadológicos assemelham-se. Não vejo distinção essencial entre filosofias, metas e estruturas operativas. Segue-se o figurino multissetorial da corporação-rede, isto é, exploram-se, simultaneamente, ramos correlatos ou conexos, promovendo sinergias capazes de racionalizar custos, conjugar know how e economizar na escala.

AOL-Time Warner, News Corp., Bertelsmann: nada difere os seus contornos corporativos dos de mastodontes como a General Motors, a McDonald?s e a IBM. As diferenças localizam-se nas áreas específicas de atuação – muito embora essa separação venha se reduzindo a olhos vistos, em função da convergência multimídia, dos investimentos plurissetoriais, da internacionalização de mercados, de alianças, fusões e participações cruzadas.

Em síntese, as corporações de mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da ordem global, e como agentes econômicos presentes nos hemisférios. Evidenciar esse duplo papel me parece fundamental para entendermos a sua forte incidência na atualidade.

Gostaria de mencionar três pontos que ajudam a fixar o perfil da mídia global. Primeiro: vivemos uma mudança de paradigma comunicacional. Do gabarito mediático evoluímos para o multimediático ou multimídia, sob o signo da digitalização. A linguagem digital única favorece a interconexão de redes e plataformas, viabilizando a base material para a hibridação das infra-estruturas indispensáveis à transmissão compartilhada de dados, imagens e sons, em proporções incalculáveis.

Em razão dessa confluência, dissipam-se as fronteiras tradicionais entre operadoras de TV a cabo, de telecomunicações, de radiodifusão e de informática. Os novos canais e suportes (internet, DVD, TV interativa de alta definição, celulares com Web móvel e os tantos que virão) multiplicam a geração de conteúdos informativos, financeiros, culturais e comerciais.

A junção dos prefixos dos setores convergentes (informática, telecomunicação e comunicação) em uma só palavra – infotelecomunicações – designa a conjunção de poderes estratégicos relacionados ao macrocampo multimídia. O paradigma infotelecomunicacional constitui vetor decisivo para a expansão dos complexos mediáticos, tendo por escopo a comercialização diversificada e sem limites geográficos.

Não espanta que a Telefónica de España tenha se transformado em estrela de primeira grandeza em mídia e Internet. Ou que Vivendi Universal, Sony e Yahoo se associem em promissores negócios de música on line. Ou ainda que a Disney migre para a telefonia celular em parceria com a operadora japonesa NTT DoCoMo. Uma aliança sedutora para os dois lados: a NTT disponibiliza conteúdos da Disney a seus usuários de Web móvel, enquanto os assinantes do colosso norte-americano acessam vídeos e clipes musicais através de celulares de terceira geração. O ponto nodal é agregar valor ao leque multimídia, com o menor custo possível.

Nessa esteira, os conglomerados tratam de otimizar as cadeias produtivas para lucrar em todas as pontas. ?Se pensarmos na música digital, na televisão interativa, nos serviços de banda larga e nas redes domiciliares, veremos que estamos no centro de tudo isso. Somos a blue chip do milênio?, acentua o CEO da AOL-Time Warner, Gerald Levin. (4)

Não será outro o pressuposto estratégico da Vivendi Universal, segundo maior conglomerado mundial de informação e entretenimento, explicitado pelo big boss Jean-Marie Messier: ?É essencial agregar conteúdos baseados em alta tecnologia, sobretudo os da Internet, aos nossos serviços e produtos. A combinação de conteúdos, de meios de difusão e de produtos afins nos dá uma vantagem considerável perante nossos concorrentes. Podemos ampliar as ofertas aos clientes, com redução de custos. Essa estratégia integrada é a que se adapta melhor à revolução das redes, permitindo alto incremento nas vendas.? (5)

O segundo ponto a realçar refere-se ao modelo organizacional das corporações de mídia. Durante o reinado neoliberal, ocorre um processo brutal de desregulamentação, de privatização, de depreciação do papel do Estado como esfera de representação pública e de esvaziamento proposital da sociedade civil e dos laços comunitários. A abertura desenfreada dos mercados de informação e entretenimento coloca por terra as salvaguardas nacionais porventura existentes. Os megagrupos de mídia – a maioria dos quais sediada nos Estados Unidos da América – passam a usufruir de um largo campo de manobras, desvencilhando-se de normas, regulamentos e obstáculos legais.

O padrão tecnoprodutivo apóia-se no mandamento de que as corporações devem gerir seus empreendimentos a partir de um centro estratégico – a holding -, incumbido de pensar e formular prioridades, diretrizes e planos de inovação, além estabelecer parâmetros de rentabilidade para subsidiárias e filiais. A holding é o pólo de inteligência e decisão ao qual se remetem as estratégias locais, nacionais e regionais. Ela organiza a instituição de cima a baixo, em fragmentos e nódulos de uma rede formada por eixos estratégicos comuns. Garante às empresas do grupo autonomia para cumprir as expectativas de produção e lucro, levando em conta certas particularidades socioculturais.

No decorrer da década de 1990, as indústrias de mídia ajustaram-se às linhas-mestras da corporação-rede. A partir de um planejamento mundializado, conferiram maior liberdade operacional às unidades regionais, preservando, contudo, os vínculos de dependência às diretivas da holding. O presidente da Sony, Nobuyuki Idei, confirma: ?Nós perseguimos um modelo de administração que seja ao mesmo tempo integrada e descentralizada. A empresa fornece as estratégias mais abrangentes, mas as divisões têm considerável autonomia. Como a Sony reúne diversas culturas de negócios, como equipamento eletrônicos, entretenimento e jogos, tentamos permitir que essas culturas se desenvolvam livremente e, ao mesmo tempo, queremos conectá-las de forma criativa e lucrativa.? (6)

Temos, portanto, uma concentração de poder sem centralização operacional. Todavia, não percamos de vista que a flexibilidade operacional é relativa, pois permanece no raio de alcance das pressões e eventuais reorientações da matriz.

AOL-Time Warner, Vivendi Universal, Disney, News, Bertelsmann e Viacom, as seis primeiras do ranking de mídia e entretenimento, têm idênticas pretensões de domínio: estar em toda parte, a qualquer tempo, para exercer hegemonia. A competição restringe-se a um número mínimo de corporações que dispõem de poderio financeiro, know how, parques industriais e extensas redes de comercialização para interligar bases de consumo dispersas pelos hemisférios. O resultado é uma concentração sem precedentes nas mãos de cerca de duas dezenas de conglomerados, com receitas entre US$ 5 bilhões e US$ 30 bilhões, que veiculam dois terços das informações e dos entretenimentos disponíveis no planeta.

Enfatizo que, na atual dinâmica tecnoprodutiva, ocupam lugares de destaque as alianças, parcerias e joint ventures. Ao optarem por estratégias de cooperação, as megafirmas visam ampliar os lucros, seja reduzindo e repartindo despesas e perdas, seja contornando fatores de risco com o somatório de competências. Aumentam as sinergias dentro das corporações, em particular aquelas possibilitadas por fusões de ativos e serviços. Ao efetuar promoções cruzadas entre suas 200 empresas, a AOL-Time Warner poderá economizar US$ 1 bilhão em 2002, conforme avaliação do banco de investimentos Morgan Stanley. (7)

Na mão oposta, estreita-se a margem de participação de empresas de menor porte, condenadas a se juntarem às líderes ou a explorarem nichos de mercado, se não quiserem fechar as portas. Ainda flagramos a emergência de outro fenômeno perturbador: as gigantes estão engolindo grandes empresas. Da noite para o dia, a Interpublic, número 1 da publicidade global, absorveu a True North, até então a oitava no ranking. A Vivendi incorporou, de uma só vez, a Universal Studios e a Universal Music, ambas situadas entre as maiorais de seus respectivos ramos. A Viacom fisgou a rede TV CBS. Quer dizer, não apenas as pequenas e médias firmas vêem seus horizontes se contraírem drasticamente; também as grandes já não resistem aos impérios.

Volto a afirmar que tal moldura oligopolística se consolida no vácuo aberto pela inexistência de marcos regulatórios e pela deliberada omissão dos poderes públicos e de organismos multilaterais. As disparidades tecnológicas e os frágeis mecanismos de regulação dos fluxos internacionais de dados, sons e imagens beneficiam as megacorporações, sobretudo as norte-americanas.

O caso da indústria cinematográfica dos EUA é eloqüente. Metade de suas receitas provém do exterior, o que representa salto expressivo, pois, em 1980, as praças internacionais contribuíam com 30%. Em 2000, o público de cinema no Brasil foi de 68 milhões de espectadores, sendo que quase 80% pagaram ingressos para assistir a filmes norte-americanos, cabendo à produção nacional irrisórios 10,3% das bilheterias. (8) As principais cadeias de distribuição e exibição em nosso país pertencem a um cartel formado por grupos norte-americanos – como de resto acontece em 3/4 dos mercados cinematográficos do planeta.

Os globalófilos poderiam argumentar que nunca a humanidade se deparou com tantas informações e imagens, tantos acessos à cultura e ao entretenimento. Caberia objetar: mas quem comanda e centraliza a veiculação dos bens simbólicos? quem agencia os acessos? quem define o que vai ser fabricado e como e onde difundido?

Considero alarmante o fato de convivermos com uma abundância de dados, sons e imagens que se originam, em grande parte, de fontes de enunciação e emissão controladas por um número mínimo de corporações – as mesmas que se movimentam livremente pela Terra, sem prestar contas a ninguém, exceto a seus acionistas. A industrialização dos bens simbólicos obedece, assim, às injunções mercadológicas e às conveniências políticas e econômicas dos titãs.

Se desejamos o livre fluxo de informações e conteúdos culturais, é hora de revitalizar a sociedade civil e articular forças comunitárias para a ingente tarefa de propor alternativas concretas à mercantilização generalizada. Insistamos, por exemplo, no estabelecimento de políticas públicas de comunicação, assentadas em mecanismos democraticamente instituídos de regulação, de concessão, de tributação e de fiscalização. Políticas debatidas por segmentos representativos da opinião pública e formuladas com equilíbrio e realismo. Políticas que não desconheçam as profundas transformações da era digital e seus efeitos socioculturais, e que não subestimem o poder de fogo dos gigantes (eles resistirão tenazmente a qualquer perda de espaço ou de mando).

Os obstáculos se sucederão, porque a organização da cidadania é lenta, sujeita a dilemas, tensões, avanços e recuos, ainda mais com a necessidade de concatenação em âmbito global. A despeito das dificuldades, penso ser essencial uma coordenação de esforços por parte de entidades e foros cívicos empenhados em mundializar as prerrogativas da cidadania e viabilizar sistemas de comunicação mais pluralistas e descentralizados.

No curso da integração transnacional, a reivindicação de prevalência pública sobre os interesses corporativos não pode limitar-se a contrafortes dentro de cada nação; tem que almejar formas supranacionais de mobilização, resistência e reivindicação. Os poderes efetivos são cada vez mais globalizados, enquanto os instrumentos sociais de controle, influência e pressão apenas esboçam transcender aos níveis locais e regionais. (9) Michael Löwy foi preciso ao sustentar que ?cada vez aparece mais a necessidade urgente de unir forças, intercambiar experi&eecirc;ncias, articular iniciativas, de modo a constitur um pólo alternativo, um contra-poder, uma Internacional da Resistência à globalização capitalista?. (10)

Torna-se, portanto, crucial conceber alianças e coalizões de forças de todos os quadrantes, como meio de tentar frear, em um duradouro e persistente processo de lutas, a neurose do lucro a qualquer preço que também se alastra pelo campo da comunicação.

1. Cibele Santos, ?Projeções para a indústria de comunicações dos EUA?, Meio e Mensagem, dezembro de 2000.

2. Pierre Bourdieu. Contre-feux 2. Paris: Raisons D?Agir, 2001, p. 89.

3. The Economist, 30 de outubro de 2001.

4. Gerald Levin, citado por Carol Matlack, ?É a nova ordem da velha economia?, Valor Econômico, 4 de julho de 2001.

5. Jean-Marie Messier. Communication: la stratégie de Vivendi Universal. Discurso pronunciado na assembléia anual dos acionistas da Vivendi Universal, em Cannes, 11 fevereiro de 2001. Disponível em http://www.vivendi.fr.

6. Nobuyuki Idei, citado por Carlos Rydle. ?O pai da invenção?, Veja, 23 de maio de 2001.

7. Financial Times, 26 de setembro de 2001.

8. Cláudio Renato, ?Novos planos para o cinema brasileiro?, Gazeta Mercantil, 7 de maio de 2001.

9. Ver Zygmunt Bauman. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 172.

10. Michael Löwy. A luta contra o capital global não tem fronteiras. Conferência pronunciada no Fórum Social Mundial, Porto Alegre, janeiro de 2001.

(Dênis de Moraes, doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense. Artigo transcrito da revista eletrônica La Insignia.)"