Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Do glamour ao realismo concreto

FORMAÇÃO DO JORNALISTA

João Batista Lago (*)

O ensino superior rondoniense está se ampliando muito rapidamente. Novos cursos estão sendo implementados já a partir deste ano e outros tantos estão sendo projetados. Equipamentos universitários que eram impedidos de criarem novos cursos passam à condição de centro acadêmico, o que possibilitará alguma mobilidade na criação dessas novas faculdades.

Vale lembrar que, conforme estudo quantitativo por amostragem, realizado entre 16 e 21 de julho de 2001 pelo Instituto Rondoniense de Pesquisa de Opinião Pública (Irpop), nos 52 municípios de Rondônia, onde foram aplicados 973 questionários a pessoas de 16 anos ou mais, identificou-se que apenas 3% dos rondonienses têm curso superior.

Isso significa que, se considerarmos a população estadual, que é de aproximadamente 1 milhão e 200 mil habitantes, temos aí por volta de 36 mil pessoas privilegiadas. Muito embora seja esta uma distorção gritante, e que mereceria uma análise, ainda que empírico-teórica, não será este o tema deste artigo, posto que aqui nos interessa discorrer sobre a implantação de cursos de Comunicação Social e suas conseqüências culturais, políticas, sociais e econômicas, genericamente, e principalmente sobre o curso de Jornalismo, na especificidade. É meu objetivo, também, tentar desconstruir um discurso glamouroso que se faz em torno do curso de Jornalismo, da carreira de jornalista e da profissão propriamente dita.

Breve história

Entendo que, para o meu propósito, é desnecessário apresentar aqui uma história academicista, redondinha, formal, relatando a mesmice dos fatos cronológicos, pura e simplesmente, apesar de sua importância específica. Entretanto, não se pode esquecer que fatos, dos mais variados naipes, enobreceram ou difamaram a imprensa. E eles foram muitos. Mas, pretendo contrastar essa história de curso imutável para, por meio de uma terceira via, contar-lhes diminutos trechos daquilo que considero, realmente, a história do jornalismo brasileiro, aqui personificada na figura do jornalista Edmar Morel, a quem presto homenagem, e a tantos outros que, como ele, foram verdadeiros inspiradores desse escriba que traça estas linhas ingênuas. Tomo, por empréstimo, mas para abrilhantar este artigo, um texto do jornalista Nelson Werneck Sodré [Fonte: Prefácio ao livro Histórias de um repórter, Rio de Janeiro, Record, 1999 (obra póstuma)], intitulado "O lugar de Edmar Morel na história da imprensa":


"Conheci Edmar Morel, já com a sua posição de grande repórter reconhecido por todos, em Última Hora, quando o vespertino de Samuel Wainer era como a Verdun da imprensa brasileira, ultrapassada a batalha que quase a destruíra, montada por um conluio pútrido entre os interesses antinacionais contrariados e a ciumada dos competidores incapazes de acompanhar o ritmo ali mantido e as largas iniciativas que colocaram aquele jornal na vanguarda da imprensa brasileira. Morel era uma das figuras destacadas de uma grande redação, que reunia o que o jornalismo possuía de melhor. Fizera o seu nome, antes, particularmente nos Diários Associados, com reportagens de enorme repercussão; passara por quase todos os grandes jornais cariocas e neles se destacara sempre como personagem singular. Em Última Hora, recrutado pela argúcia que Samuel Wainer possuía de escolher o melhor, exercia, na função específica que o distinguiria, uma influência muito grande, porque a reportagem, e à reportagem realmente importante é que me refiro, é o centro de gravidade do jornal: em torno dela gira o resto, do noticiário ao editorial, quando o acontecimento que ela coloca em evidência é daqueles que merecem, sem dúvida, a atenção geral. Esse é o tipo de reportagem que Edmar Morel fazia.

Claro está que a imprensa brasileira, desde que a reportagem nela apareceu como gênero destacado ? e Paulo Barreto teve nisso um papel importante ? conheceu alguns bons especialistas, mesmo nos tempos em que Edmar Morel nela ingressou e trabalhou. Nenhum reuniu, como ele, entretanto, qualidades excepcionais de coragem, audácia, faro para o acontecimento insólito, capaz de atrair as atenções e prendê-las a ponto de absorver o interesse do público por dias-e-dias. Morel sabia extrair da ganga bruta do noticiário do dia aquilo que deveria merecer tratamento especial, aquilo que deveria ser objeto de reportagem. E partia para realizá-la, quaisquer fossem os obstáculos, enfrentando qualquer perigo, desafiando os impedimentos mais variados e incríveis.

Ele narra aqui, sem se demorar em cada uma e sem reproduzir os textos antigos, alguns desses feitos, que marcaram época e que os conhecedores não esquecem. Narra com simplicidade, com aquela fluência que sempre foi uma de suas marcas, com o realismo que sempre o distinguiu. Morel, além de tudo, tornou-se, com o passar dos tempos, uma figura lendária e assinalou uma época do desenvolvimento do jornalismo no Brasil, uma época que não voltará, ao que parece e infelizmente. Trata-se, portanto, de uma figura histórica. E figura que, pela sua inteireza, pela sua bravura, pelo seu comportamento honrado e lúcido, fixou um tipo.

Convivi com Morel, novamente, nas lides da imprensa, quando ele se incorporou à galeria extraordinária que Oswaldo Costa reuniu, em O Semanário, um dos instantes mais altos do desenvolvimento da imprensa brasileira. Ali, sob a batuta daquele que foi um dos nossos maiores jornalistas, Morel se destacou novamente, e como sempre. Recordo-me que, quando da crise resultante da renúncia de Jânio Quadros, no momento em que foi ensaiado, mais uma vez, o golpe que seria operado em 1964, foi Morel que, com Oswaldo Costa em Brasília, responsabilizou-se pela saída do jornal, que não faltou ao seu dever de lutar para que o golpe militar fracassasse, mantendo-o nas bancas e acusando, sem receio, os que imaginavam levar a coisa no grito. Fico honrado em estar, outra vez, junto ao meu velho companheiro de lutas, aquele que, honrando a sua atividade de repórter, foi, também, o cidadão exemplar que todos respeitam ? como ele merece."


Episódios contados no livro póstumo de Edmar Morel Histórias de um repórter (Rio de Janeiro, Record, 1999)


Roberto Marinho deu tabefes no censor

"O Globo muito sofreu depois que a censura passou a ser exercida pelos fascistas brasileiros, com gente recrutada no que havia de pior na sociedade. Roberto Marinho, um dia, perdeu a paciência e deu uns tabefes no infeliz censor, botando-o para fora da redação. Foi um Deus nos acuda. Chegou a correr o boato de que o jornal seria fechado e seu proprietário se exilara numa embaixada. À tarde, Roberto Marinho foi localizado jogando bilhar no salão ao lado da redação. Os tabefes tiveram efeito positivo. Mandaram novo censor e o jornal parou de atrasar. Anos mais tarde, fazendo uma reportagem sobre o tráfico de tóxicos na Lapa, encontrei aquele censor atirado numa sarjeta, um farrapo humano." (Rio de Janeiro, Estado Novo ? 1938)

Chateaubriand e Churchill

"Certo dia cruzei com Assis Chateaubriand andando a pé pela avenida Rio Branco. Deu-me o braço, hábito muito seu, e saímos passeando. Ao chegar na rua do Ouvidor, parou e disse:

? Você já pensou quando eu mandar buscar o Churchill para desfilar aqui pela avenida, em carro aberto, sob uma chuva de pétalas de rosa?

Ele usava a expressão "mandar buscar Churchill" como quem mandava chamar um artista de rádio.

? Dr. Assis, soube que o senhor comprou um quadro de Churchill para o Museu de Arte de São Paulo. Que tal?

? Meu filho, uma merda!"

Chateaubriand e o cacique tupiniquim

Levando seu filho Mario, com 3 anos de idade, Edmar Morel acompanhou Assis Chateaubriand para o batismo do avião "Duque de Caxias", no Iate Clube Fluminense, durante a Campanha Nacional da Aviação. O dono dos Diários Associados pôs-se a servir champanha aos convidados numa bandeja. Como fossem muitos a atender, quis entregar ao repórter outra bandeja cheia de taças.

? Venha servir também, meu filho.

? Desculpe, doutor Assis. Mas eu não sirvo. Não nasci com vocação para garçom. Além disso, não daria a meu filho um exemplo de servilismo, desculpe!

Não se contendo no seu súbito acesso de cólera, Chateaubriand atirou ao chão, cheia de taças, a bandeja que ia lhe entregando. Um escândalo. Morel saiu dali considerando-se demitido. À noite, Chateaubriand mandou chamá-lo:

? Seu gesto, meu filho, foi de um autêntico cacique tupiniquim. Infelizmente essa burguesia desfibrada não compreende gestos como esse. Falta-lhe nobreza para isso. Vamos trabalhar, meu filho!

A partir desta data, Edmar Morel passou a ter um tratamento mais cordial e mais respeitoso da parte de Chateaubriand.

Wainer e Vargas

Três meses antes do suicídio de Getulio Vargas, Edmar Morel deu um "furo" jornalístico, desvendando na Última Hora, de Samuel Wainer, o assassinato do jornalista Nestor Moreira por um policial, caso de grande repercussão que influenciaria no fim trágico do presidente da República. Visitando na ocasião os xadrezes policiais, Morel ficou impressionado com a superlotação: homens e mulheres em condições desumanas pareciam presos de campos de concentração. Tancredo Neves, ministro da Justiça, deu ao repórter autorização por escrito para visitar todas as prisões. O resultado foi que &UacutUacute;ltima Hora, que naqueles dias sombrios tinha a tiragem reduzida a 15 mil exemplares, pulou com a denúncia para 330 mil. Isto foi no dia 20 de maio de 1954. Todo o material foi apresentado de maneira sensacional. Wainer foi chamado ao Palácio do Catete e ouviu de Getúlio Vargas:

? A oposição não teria feito melhor?

Samuel Wainer, a despeito das pressões e da insinuação de Getulio, não demitiu Edmar Morel.

Lacerda e o jogo do bicho

"Carlos Lacerda, eleito primeiro governador da Guanabara em 1960, realizou uma viagem de volta ao mundo antes da posse. Fazia parte da pequena comitiva o bicheiro Raul Barulho, que recebeu as mesmas homenagens que Carlos, como hospedagens, recepções, encontros com autoridades, etc. Este detalhe mostra que a presença dos bicheiros em campanhas eleitorais, no Rio de Janeiro, é um processo antigo.

? Conheci Raul Barulho no seu quartel-general, uma fortaleza do jogo-do-bicho na avenida Calógeras, Centro do Rio. Era um tipo desaforado, desbocado, que vangloriava-se de ter as costas quentes. Perguntei-lhe o motivo de sua presença na comitiva de Lacerda e ele respondeu-me:

? Sou um homem rico, tenho prestígio político e não dou satisfação de minha vida a quem quer que seja. Tenho entrada franca no Palácio Guanabara, onde sou considerado persona grata.

Este episódio o Carlos não publicou em seu livro de memórias. Não narrou a viagem e muito menos falou de seu amigo, o contraventor Raul Barulho."


Histórias como as acima há aos milhares. Se descartada a preguiça estudantil (condição quase que cultural no estudante brasileiro, uma decorrência (também) da metodologia do ensino, que pasteuriza, em geral, dentro da sala de aula toda a pesquisa do conhecimento, construindo assim um estudante medíocre e sem consciência do devir e do dever-ser), muito se aprenderá sobre a história real da imprensa brasileira. Espero que o texto de Werneck, e outros aos quais me referirei, contribuam para aqueles que já estão cursando Jornalismo e com os que pretendem ingressar.

O curso, o jornalista, a carreira

O exercício da profissão de jornalista, hoje muito mais que dantes, desperta entusiasmo. Há, de certa forma, um conceito glamouroso em relação à carreira de jornalista. E esse glamour não se estabelece apenas nos (1) estudantes [O termo estudante deve ser entendido ou compreendido, aqui, como cliente ou consumidor, strictu sensu capitalista] Ele se enquadra perfeitamente em um projeto neoliberal, na (2) classe econômica [Da mesma forma deve ser entendido e compreendido o termo classe econômica].


1)Teoricamente, hoje, o que se percebe é que os estudantes que almejam o 3? Grau, em especial aqueles que escolhem o curso de Jornalismo, são levados a escolher esse curso em decorrência da "telinha" [Gíria entre estudantes que designa televisão]. Não raro, no Brasil, somos consumidores de um produto (o jornalismo) planejado, elaborado, executado e comercializado [Quer gostemos ou não, sejamos favoráveis ou não, o jornalismo é um produto de massa, principalmente o jornalismo praticado na televisão brasileira] a partir da ideologia cultural imperialista do Centro-Sul, ou mais especificamente, de São Paulo e Rio de Janeiro, com um braço em Brasília, onde está instalada a capital federal.

O jornalismo regional, estadual ou mesmo o municipal é muito pouco incentivado, levando-nos a uma crença conceptual cognoscitiva de que somos ou seríamos incapazes de produzir um jornalismo de qualidade. É, pois, esse aspecto, essa característica singular, empiricamente falando, que produz no imaginário coletivo das pessoas um determinado e possível mundo futuro, onde o repórter passa a ser visto como se artista de novela fora.

É preciso entender que, de fato, a realidade é bem diferente. Poucos são os repórteres que são escolhidos para fazer a cobertura de um grande evento, entrevistar um presidente da República, um primeiro-ministro, um rei ou rainha, ou ainda, alguma personalidade de expressão no campo da cultura nacional ou internacional, por exemplo, um jogador fenomenal como Ronaldo Macário ou um ex-jogador extraordinário como Pelé, enfim, em geral, os escolhidos são pouquíssimos repórteres que se destacam em função de outras situações. É preciso entender que raríssimos são os repórteres que conseguem ser guindados ao nível de correspondentes em outros países ou a fazer reportagens especiais mundo afora.

São essas pouquíssimas e singulares características que povoam as cabeças novelescas daqueles que se imaginam atuando no jornalismo da televisão brasileira, que insiste, ideologicamente, em transformar o profissional em mero ator pasteurizado a partir da notícia em si mesma, produzida mecanicamente e sem qualquer enunciado de investigação científica; é preciso entender que essa glamourizaçao acaba quando somos levados a ter consciência de uma vivenciação sob pressão absoluta e total, que defino como "a ditadura da notícia do dia seguinte" que se concretiza a cada nova reportagem; é preciso entender que o jornalista tem uma tarefa singular: ser curioso, estar e ser atento 24 horas, informar-se sobre o seu mundo (trabalho) em particular e sobre o mundo das pessoas e das instituições, no geral, ser cumpridor de prazos apertadíssimos, e principalmente ser um estudioso (compulsivo até, se necessário), para poder compreender as diversas realidades locais, regionais, municipais, estaduais, nacional e internacional.

Mas, por outro lado, a carreira de jornalista pode também ser desenvolvida extra-redaçao dos media. Outros ambientes [presume-se que, na atualidade, esses novos ambientes sejam os que mais oferecem oportunidade de emprego e renda] como assessorias de imprensa de grandes conglomerados empresariais, de sindicatos, de partidos políticos, de parlamentares, de casas legislativas, de organizações financeiras, de governos (municipais, estaduais e nacional), de igrejas, de Organizações Não-Governamentais (ONGs), de casas noturnas, de restaurantes, entre outras, têm se constituído em uma grande demanda de mão-de-obra de jornalistas [Nas assessorias de imprensa, o jornalista exerce uma série de funções. "Escrevemos discursos, colocamos a imprensa em contato com os diretores e produzimos um jornal", diz Francisco Ruiloba, assessor de imprensa da Apeoesp, o sindicato oficial de São Paulo. Como ocorre em outras áreas, há cada vez mais profissionais sem carteira assinada, trabalhando como prestadores de serviços (free lance), exercendo seu ofício em escritório próprio ou em casa, usando computador e fax].

2)A classe econômica, isto é, os proprietários de estabelecimentos de ensino de 3? Grau, por sua vez, e de certa forma (e aqui também faço uma alusão empírica), exercem uma determinada função, e papel, de enunciadores dessa glamourização dos cursos de Jornalismo, ao emitirem sinais indicativos de que todo e qualquer jornalista, potencialmente, tem condição de alcançar postos tais quais são ocupados, na atualidade, por jornalistas como Boris Casoy, José Luiz Datena, Rodolfo Gamberini, Paulo Amorim (Rede Record), William Bonner e Fátima Bernardes (Rede Globo), Gilberto Dimenstein (Folha de S. Paulo), Ricardo Kotscho (assessor de imprensa da Presidência da República), Mário Frias (O Estado de S. Paulo), Dora Kramer (Jornal do Brasil) [A citação desses nomes revela o grau da cultura imperialista no jornalismo brasileiro, onde se copia literalmente o modelo imperialista político das grandes potências], apenas para citar alguns poucos iniciados.

Em geral, esse segmento (os empresários do ensino universitário), ao emitir tais sinais enunciadores, está de fato pensando no quanto pode ganhar com a implantação desses cursos de comunicação social, e suas ramificações: Jornalismo, Relações Públicas, Propaganda e Publicidade e Marketing, posto que, continua sendo um mercado promissor no espectro da economia de ensino ou da educação privada no Brasil.

Mas é preciso inferir, por outro lado, que, nesse mercado, há sinais evidentes de perturbação: o Congresso Nacional aprovara recentemente uma norma legal que permite a entrada de capital estrangeiro em empresas de comunicação de massa. Esse é um tema que mereceria uma divagação mais acurada por parte de analistas ou sociólogos ou antropólogos, entre outros, o que não é o nosso caso, aqui. Retomando nossa linha de raciocínio, e, ainda, para comprovar que existe no meio acadêmico jornalístico um determinado desconforto com o aprovado pelo Congresso Nacional, transcrevo abaixo, na íntegra, texto produzido pelo Fórum dos Cursos de Jornalismo, realizado nos dias 29, 30 e 31 de março de 2002, na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, em São Paulo, intitulado "Para agir na formação e na prática jornalística":

Fórum dos cursos de Jornalismo

"Para agir na formação e na prática jornalística"

Documento Final do Fórum dos Cursos de Jornalismo, São Paulo, 31/3/2002

Reunidos no Fórum dos Cursos de Jornalismo, realizado na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, em São Paulo, dias 29, 30 e 31 de março de 2002, jornalistas, estudantes e professores de jornalismo analisaram e debateram as principais questões que envolvem a formação acadêmica e o exercício profissional do jornalismo no Brasil, organizadas nos seguintes grupos de trabalho: 1. Capital estrangeiro e oligopolização da mídia; 2. Valores e princípios da prática jornalística; 3. Democratização das comunicações; 4. Formação do jornalista e regulamentação da profissão; 5. Sistemas de avaliação dos cursos de jornalismo.

O debate aprofundado dessas questões ? após a palestra do professor Octávio Ianni, sobre "Globalização e Mídia" ? proporcionou aos participantes a identificação mais precisa dos inúmeros problemas que impedem o desenvolvimento do jornalismo como instrumento do conjunto do povo brasileiro para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e que promova a igualdade e o bem-estar de todos. Nesse sentido, queremos afirmar o seguinte:

**A entrada do capital estrangeiro na propriedade dos meios de comunicação de massa representa uma grande ameaça à nossa cultura, às raízes culturais da Nação e à nossa identidade, além de favorecer uma concentração ainda maior dos veículos e dos conteúdos nas mãos de alguns poucos grupos políticos e econômicos.

**A oligopolização da imprensa torna a concorrência desleal de tal forma a absorver as empresas locais, com a constante eliminação de postos de trabalho e a geração de desemprego estrutural.

**A concentração da mídia representa uma ameaça direta à incipiente democracia brasileira e à limitada liberdade de expressão, na medida em que tende a eliminar ainda mais os espaços de manifestação de importantes segmentos da sociedade brasileira.

**O exercício pleno do jornalismo só pode se dar numa sociedade que assegure o direito de todos à informação, consignado na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

**A padronização e a pasteurização impostas pela comunicação de massas elimina as diferenças culturais e regionais, empobrece a riqueza da diversidade e violenta o pensamento e a criatividade divergentes.

**É preciso resgatar os valores e princípios que sempre foram a razão de ser do jornalista. &EacuteEacute; preciso reapropriar-se da nossa profissão, e sobretudo resgatar o aspecto humanista daquilo que fazemos, seu caráter ético e questionador, sua responsabilidade social, sua indignação, seus laços com a verdade e a cidadania, a preocupação com os direitos humanos, com as minorias e os marginalizados, sua criatividade e autenticidade.

**É preciso combater as censuras políticas e econômicas que atuam de forma disfarçada nos meios de comunicação e a autocensura estimulada desde os cursos de jornalismo e largamente praticada dentro das empresas jornalísticas.

**É preciso fortalecer todos os espaços e meios alternativos de comunicação, especialmente os veículos comunitários e que expressam os movimentos sociais excluídos e marginalizados pelos grupos de comunicação, mas, ao mesmo tempo, é preciso lutar para a construção de um sistema de comunicação que expresse realmente os interesses de todos os segmentos e classes sociais.

**A democratização da mídia passa necessariamente pelo acesso de todos ao ensino público e gratuito, pelo aumento da escolaridade e por uma formação superior comprometida com as populações marginalizadas, com o desenvolvimento social e com a formação do senso crítico em todas as áreas do conhecimento, e especialmente no jornalismo.

**A exigência de diploma para o exercício do jornalismo não apenas legitima a categoria no reconhecimento social e legal, confere dignidade para a profissão, mas, sobretudo assegura maior controle social da prática jornalística e reduz o campo de manobra dos interesses econômicos na área.

**O exercício da profissão não é redutível a um adestramento técnico oferecido pelas empresas jornalísticas, pois só o ambiente universitário proporciona a possibilidade de reflexão e uma formação sólida que articula teoria e prática. E o papel da universidade não se reduz à capacitação profissional: estende-se a formar cidadãos críticos, agentes de transformação social, não podendo, portanto, ficar à mercê da lógica do mercado.

**A avaliação dos cursos de jornalismo deve ser permanente e necessária e não se esgota nos instrumentos oficiais; deve ser discutida pelos segmentos de cada curso, de forma a não se tornar um mero atendimento de exigências administrativas, mas que assegurem a variedade de percepções que a formação graduada em jornalismo possa ter.

**Os participantes do Fórum dos Cursos de Jornalismo sugerem a criação de uma comissão que estude a viabilidade de uma avaliação articulada entre escolas de jornalismo.

Esses pontos ? um resumo das discussões realizadas no Fórum ? sintetizam as nossas preocupações com o quadro atual do jornalismo brasileiro, mas também o estabelecimento de referências importantes para uma atuação coletiva concreta tanto na formação como na prática jornalística. A consolidação dessas referências já está em marcha; o primeiro passo foi dado, agora compete a todos nós assumirmos o compromisso de que a luta não termina aqui ? ela está apenas começando.


Esse documento é revelador de uma realidade insofismável e nega e desconstrói, portanto, o discurso glamourizado em torno dos cursos de Jornalismo, da profissão de jornalista e da carreira em si, que estão sendo orientados a partir de uma cultura televisiva, que não é nem a mais importante no mix da imprensa, tampouco a única. E essa cultura televisiva, da qual me refiro, tem transformado o principal sujeito da imprensa ? o jornalista ? numa espécie de garoto-propaganda da notícia, obedecendo aos conceitos elaborados pelo marketing comercial, sem qualquer preocupação gnosiológica [Parte da Filosófica, também chamada teoria do conhecimento e epistemologia, que estuda os limites da faculdade humana de conhecimento e os critérios da validade de nossos conhecimentos. (Dicionário Brasileiro Globo)]. (Minha intenção não é desmerecer ou favorecer o veículo televisão. Meu propósito é desmistificar, e mesmo, desconstruir esse discurso glamouroso da profissão de jornalista, para, em seguida, chamar a atenção de todos para o realismo concreto sobre essa temática.)

É prudente lembrar, aqui e agora, que vários são os pensadores contemporâneos que têm estudado, cientificamente, empiricamente ou teoricamente, o veículo televisão ou a mídia ou a imprensa e suas conseqüências em todos os campos da atividade humana. Alguns deles são críticos ferrenhos. Outros elaboram conceitos favoráveis. Entendo que o importante mesmo é navegar profundamente por todas essas correntes de pensamento para que se possa ter consciência plena a respeito da telinha ou da mídia ou da imprensa. Chego, inclusive, a imaginar (perdoem-me o preciosismo ingênuo) que, mesmo antes do vestibular para o curso de Jornalismo, pais, estudantes, professores, empresários do ensino e todos que tenham qualquer relação com o jornalismo ou com a imprensa deveriam ter um mínimo de conhecimento sobre o ofício de jornalista, sobre o jornalismo e sobre a carreira. Apesar do preciosismo e da ingenuidade acredito que se isso viesse a acontecer estaríamos dando um salto de qualidade no ensino e na prática do jornalismo brasileiro. Mas voltemos ao que se nos interessa mais especificamente: os pensadores.

O conceito de indústria cultural, por exemplo, elaborado a partir do Instituto de Pesquisas Sociais da Escola de Frankfurt, implicou abordagem da lógica de produção capitalista. Mais recentemente temos convivido com o conceito de cultura da mídia, termo cunhado no título do livro de Douglas Kellner [Professor de Filosofia da Universidade do Texas]. Por sua vez, o jornalista e cientista político Giovanni Sartori, em seu livro Homo videns, televisão e pós-pensamento, introduziu o conceito de cultura da escrita, contrastando a cultura televisiva que, numa análise superficial, enfraqueceria a democracia, e complementando, dessa forma, o pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que analisaremos abaixo ["in" Cristina Brandão ? Ficção, crítica, história e teatro na TV].

No livro Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão, Dominique Wolton preconiza o conceito de emancipação cultural. Segundo este autor a televisão funcionaria como uma máquina geradora de acesso aos meios de comunicação de massa, e da informação, o que levaria obrigatoriamente a um processo de socialização dos vários modelos de democracia (democracia política, democracia econômica, democracia social etc.).

Poder-se-á dizer que, entre os pensadores até agora citados, e a partir de seus livros, existe uma determinada gradação: para Sartori, a televisão constrói um campo negativo nas relações democráticas, contrastando, assim, o pensamento de Wolton, para quem a televisão é um instrumento de realização democrática, e Kellner que, por sua vez, infere de forma polissêmica "o reconhecimento da convivência de empecilhos à democracia, mas com sinalizações de que é possível que a cultura de mídia venha a contribuir para o aprofundamento democrático".

Conteúdo ou cultura fútil?

Mas há um outro crítico que penso ser, entre todos, o mais singular e significativo, o mais crítico dos críticos dos últimos tempos: o sociólogo francês Pierre Bourdieu (falecido recentemente). Para Bourdieu, o conteúdo fútil da televisão, formado pelo telejornalismo, pelos talk shows, por programas de debates, que defino como mix besteirol, conspiram contra a democracia porque transformam tudo em futilidade. O sociólogo francês nos ensina que a tirania das notícias do estilo "variedades" favorece os "fatos-ônibus", que despertam a atenção de todos, mas não revelam a verdade concreta de fatos e de decisões que efetivamente implicam a organização da sociedade. Bourdieu argumenta que essas "notícias de variedade têm por efeito produzir o vazio político, despolitizar e reduzir a vida do mundo à anedota e ao mexerico".

A crítica de Bourdieu se faz mais importante porque ele a produziu no próprio teatro da televisão. Foram televisionadas duas aulas, no Collège de France, após o francês autorizar a transmissão. Vejam sua afirmativa: "O meu tempo não é limitado e ninguém está ali, como nos programas comuns, para me chamar à ordem, em nome do ?público-que-não-compreenderá?." Decodificando as palavras do ex-professor de Sociologia, verificamos a azeda crítica que ele tece à pasteurização hegemônica da televisão, principalmente do telejornalismo.

Para ele, todos os canais estão ficando iguais, a partir de uma lógica capitalista: a concorrência que nivela (por baixo) todas as emissoras a partir das "futilidades" como, no caso brasileiro, os programas policiais sensacionalistas (Cidade Alerta), os programas de variedades (Mais Você, Note e Anote, Programa do Ratinho, João Kleber), programas de igrejas evangélicas, entre tantas outras bobagens televisivas.

Ao garantir a transmissão total das aulas, Bourdieu assegurou, também, o não-enquadramento que o sistema de televisão impõe, de forma ditatorial, a todas as pessoas ? físicas e jurídicas, públicas e privadas ? inclusive aos telespectadores comuns. No caso brasileiro, esse enquadramento é feito a partir de um conceito ? creio, já hegemônico ? tido e havido como padrão global de qualidade.

A crítica de Bourdieu fica mais azeda quando ele diz que parte da culpa seria dos próprios jornalistas que, para ele, "nem sempre sendo muito cultos surpreendem-se com coisas não muito surpreendentes e não se surpreendem com coisas espantosas". Apesar disso Bourdieu compreende que nem mesmo as maiores expressões do jornalismo e mesmo parte dos diretores que se encarregam de mandar nos profissionais têm controle total do que vai ao ar.

Se tomarmos isso como verdade chegaremos à triste conclusão de que temos um código de ética da profissão, que regula e normatiza a vida da profissão e dos profissionais, e um código de ética a partir de uma determinada lógica do mercado ou do capitalismo selvagem, dependente e excludente, que desregula e desnormatiza a vida da profissão e dos profissionais, a partir de um conceito de concorrência, medida e mediada por uma audiência fundamentada numa possível opinião pública (este é um outro tema que mereceria um outro ensaio).

Muito embora não esteja explícito em seu livro Sobre a Televisão, entendo e acredito que Bourdieu traçara um perfil crítico na construção do texto do telejornalismo, que é genérico, inócuo, sem conteúdo, fútil e acultural, mas que, infelizmente, é transposto a outros veículos, pontuando aí a condição de uma ditadura hegemônica do texto televisivo. E, nessa transposição literal, o jornalismo impresso é o que mais vem sendo afetado pela cultura televisiva.

No caso brasileiro, em particular, o que tenho percebido é que, a partir do advento da televisão, não soubemos nos desgarrar dessa teia cultural televisiva, e pior, a importamos para o jornalismo impresso. Antes da cultura hegemônica televisiva, em geral, mas não necessariamente, os textos (e antes que me acusem de saudosista, pura e simplesmente, saliento que o que reclamo é da falta de conteúdo, e não necessariamente do tamanho do texto ou da reportagem) eram elaborados a partir de um conhecimento empírico do realismo concreto. Havia, no mínimo, uma construção teórica, contrastando com a mecânica e o mecanicismo da construção do texto atual, que tem em sua origem uma orientação da cultura televisiva: um texto curto (pequeno), ágil, fútil, acultural, miscelânico e desregrado de qualquer orientação científica [O veículo rádio sofreu menos por razões que lhe são próprias: ao locutor é permitido decodificar notícias e, até mesmo, em algumas emissoras, pode produzir excelentes editoriais. Ainda assim, a cultura televisiva implicou, também, a estruturação de textos noticiosos].

É muito comum, na atualidade das redações brasileiras, encontrarmos editores que defendem um texto à la televisão. E o pior: justificam esse status quo massificando uma ideologia orientada a partir de determinado modernismo cuja origem nem mesmo eles (os editores) sabem. O pior, ainda, é que tais ensinamentos passam para o corpo redacional, mais precisamente, para os repórteres que, em decorrência da ditadura da notícia seguinte, ficam a ver navios ou são levados à condição narcísica do texto fútil e acultural.

Mas há uma outra arbitrariedade também cometida a partir desse dogma televisivo. Ela reside em outra ideologia que, esta sim, implica uma falsa consciência: a opinião pública (entenda-se audiência) deseja um texto curto, raso, ágil, de fácil entendimento. Mas que opinião pública é essa? Quem é o sujeito dessa opinião pública? Qual é a função e o papel que essa opinião pública exerce nos grupos ou subgrupos de referência? Propositadamente não procurarei dar respostas a quaisquer destas perguntas. Há uma razão para essa atitude: provocar respostas cognoscentes ou cognoscitivas em cada um dos leitores que deste texto tomar conhecimento.

O pensamento brasileiro

Antes de encerrar não poderia deixar de me referir ao pensamento crítico brasileiro. Vários pensadores nacionais têm-se debruçado sobre essa temática midiática. Há uma produção vastíssima, seja contrária ou favorável à hegemonia do veículo televisão e suas conseqüências, inclusive à glamourização. Vale lembrar que mesmo aqueles que se posicionam de forma favorável aos novos paradigmas da mídia são contrários ao processo de glamour que se criou a partir da cultura televisiva.

Um dos pensadores brasileiros, que considero dos mais consistentes é o jornalista Zuenir Ventura [colunista de O Globo], que segue a mesma linha dos pensadores Giovanni Sartori e Pierre Bourdieu, muito embora sua crítica esteja velada no texto ao qual me referirei ["Mídia e Violência" ? (Comunicação&Política, n.s., V.1, n? 2, pp. 74-78)]. Ventura insiste em que o jornalismo brasileiro estaria vivendo uma crise de credibilidade, uma crise de confiança gravíssima. Entre as razões que explicariam a crise o autor destaca "a síndrome da má notícia".

Neste texto, Zuenir Ventura não vai ao âmago da questão, isto é, não explicita que a má notícia estaria (co)relacionada ou, no mínimo, impactada por uma determinada cultura televisiva ou, no dizer de Sartori, por uma cultura da escrita altamente danosa e impeditiva do estabelecimento de uma democracia plena. E o interessante é que o professor da UFRJ, após descartar reação corporativa, faz acentuado mea-culpa ao declarar sem medo e do alto de sua autoridade e sapiência:


"Não nos interessamos pela normalidade, pelo habitual, pelo corriqueiro, pelo natural. Essas coisas não são notícias, dizemos cheios de presunção. Gostamos mesmo, até como leitores, do mórbido, do monstruoso, do insólito, das catástrofes, dos escândalos, das discórdias, dos conflitos, das paixões assassinas. Gostamos, enfim, do homem mordendo o cachorro, para usar aquela velha imagem que os americanos nos ensinaram. ?Cachorro mordendo homem não é notícia?. Nós começamos aprendendo que só há notícia quando o homem morde o cachorro [O grifo é de minha responsabilidade]. Na faculdade, na preparação para a atividade jornalística, assimilamos essa lição."


O texto acima sugere que o pensamento de Ventura é, no mínimo, parecido com o de Bourdieu, quando o francês admite que parte da culpa seria do próprio jornalista ao instituir um vazio político. E, em minha opinião, é exatamente o que Zuenir provoca: o debate sobre esse vazio político (ou falsa consciência?) orientado a partir do que ele mesmo classifica de a síndrome da má notícia que, creio, tem sua origem na cultura televisiva. E aqui, mais uma vez insisto, quebra-se a coluna dorsal dessa tal glamourização em torno da imprensa.

Mas é interessante perceber que, nesse texto, Ventura, introduz uma preocupação paradigmático-conceitual: o marketing. Tem-se a impressão que, de forma latente, o professor fluminense convive entre o céu e o inferno. Veja-se:


"É evidente que existe uma carga patológica nessa tendência, nesse gosto. Claro que dizemos só dar o que o leitor quer. O leitor tem o livre arbítrio de nos abandonar a qualquer momento. Nos esquecemos, no entanto, daquilo que nós queremos que o leitor faça. Existe aí uma relação dialética que não vai num único sentido. Há uma dinâmica de tal natureza que leva a que, realmente, se crie aquele leitor que, embora afirmamos ter vontade própria, na verdade é o que queremos que ele seja.

De qualquer maneira, essa é a natureza do jornalismo. Não estou dizendo isso para defender ou diminuir a nossa dívida social ? dos jornalistas ? com o país ou com a cidade. Talvez seja hora de nos questionarmos para saber se não estamos exagerando, se de fato estamos cumprindo devidamente a nossa função, o nosso papel social.

Pode-se dizer ? e muitos dizem ? que não fazemos nada que o leitor não queira. As críticas seriam dos inimigos da liberdade de imprensa plena, dos interesses feridos ou elucubrações de uma autoconsciência crítica minoritária, elitista e masoquista. A vontade coletiva dos leitores é que seria a medida de todas as coisas. Cabe a eles nos avaliar e nos avalizar.

Mas será mesmo assim? Seria o caso de entregar essa questão para o mercado: seja o que o laissez-faire quiser? Começamos a achar que não. Mesmo numa sociedade controlada pelas leis de mercado, pela lógica do consumo movida pela competição e pelo lucro. Mesmo numa sociedade de espetáculos da ditadura e do marketing. E eu diria que, por isso mesmo, o jornalismo tem que ter um autocontrole, uma autocrítica, uma ética. Ele, que é tão rigoroso com outras instituições, fiscalizando, cobrando, patrulhando, deveria ser assim consigo mesmo.

"Como conciliarmos meios e fins, sucesso e ética? Esse é um dos grandes desafios do jornalismo moderno. Se ele ainda estivesse na fase artesanal, pré-industrial, talvez não fosse necessário. A sociedade naquela época era mais simples e as relações sociais menos complexas. As mudanças foram tantas que eu me restringirei a apenas uma: a mudança de relação com o leitor. A transformação do leitor em consumidor foi talvez a mais radical revolução ocorrida na era da transição técnica e política à qual eu me refiro.


Apesar da crucialidade, em que significação, identificação, simbolismo e realismo se entrechocam, durante a narrativa, o texto me parece auto-explicativo. Mesmo assim, vou tentar ir ao fundo do subjetivismo do pensamento de Zuenir Ventura, sem, contudo, entrar no campo dos detalhes. É importante perceber que o autor reconhece as falhas da imprensa que, no dizer dele, é "a natureza do jornalismo". Mas, ao mesmo tempo, e de forma dissimulada, ele infere um novo conceito, na forma de sujeito, o leitor, agora reconhecido e aceito definitivamente como consumidor, e que estaria manietado por uma ideologia de mercado, orientado a partir do marketing de massa.

Quando Ventura nos remete a um autocontrole, a uma autocrítica e a uma ética, ele quer sinalizar que devemos nos preparar para, de forma cidadã, investir contra essa determinística cultura televisiva que poderá nos levar definitivamente ao caos, à ditadura, sob a orientação de uma mídia oligopolizada, na qual apenas a concorrência pasteurizada e o lucro são nucleadores da vida na sociedade [Uma das principais críticas do jornalista e cientista político italiano Giovanni Sartori é o monopólio de poder (midiático e político) de Berlusconi, atual primeiro-ministro da Itália]. Ventura propugna, ainda, o que defino como intramudança na e da imprensa, a partir de um reconhecimento dramático para todos nós ? os jornalistas ? arrogantes, autoritários, presunçosos. Escreve Ventura:


Nós achamos que, pelo fato de estarmos em permanente corpo-a-corpo com a realidade, temos o domínio total e sabemos tudo acerca do real. Eu acredito que a arrogância está fazendo muito mal a todo mundo, ou seja, o jornalismo está fazendo mal à sociedade. Me parece que há necessidade de consertarmos, de regularmos essa questão através de uma instância crítica e de controle. Mas morremos de medo de usar a palavra censura ? quando se fala em controle de qualidade [Sabe-se, por exemplo, que, no O Estado de S. Paulo, onde se implantou controle de qualidade, teria sido na redação] há sempre um jovem repórter para dizer "você está querendo me censurar?". Nós ainda trabalhamos dentro de um imaginário político cheio de resíduos autoritários, com alguns entulhos do autoritarismo. (…) Temos medo, por exemplo, de qualquer tipo de rigor, qualquer sentido de autoridade, porque confundimos isso com formas de repressão. Temos medo de falar em autocrítica porque isso pode parecer censura e, imagina, Deus me livre a censura dentro dos jornais. Nós ficamos traumatizados pelos anos em que a censura atuou dentro das redações. Eu acho, porém, que chegou a hora de deixar sangrar nossa autocrítica.


Creio que inseri os principais conceitos para desmascarar, de uma vez por todas, essa tal glamourização da imprensa fundamentada na orientação da cultura televisiva. Além disso penso que, do ponto de vista do jornalismo, do jornalista e da carreira propriamente dita, abre-se espaço para um debate fecundo, pois este é, apenas, o primeiro capítulo do muito que buscarei discutir sobre a imprensa.

(*) Jornalista, publicitário político e pesquisador