Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Duplo absurdo

DOMINGO ILEGAL

Pedro Eduardo Portilho de Nader (*)

O advogado Saulo Ramos, na Folha de S.Paulo, teria sugerido que a famigerada (o termo é empregado por mim agora, não por ele) Lei de Imprensa editada em 1967 poderia ser aplicada no caso da entrevista falsa no programa Domingo Legal, permitindo "censura prévia de todas as formas, embora inconstitucionalmente".

Se eu entendi direito, a idéia é que, como a lei editada pela ditadura não foi diretamente substituída, ela não teria sido anulada e, portanto, ainda valeria, mesmo que a nova Constituição, de 1988, proíba a censura prévia ? tal como ocorre no seu parágrafo sobre a liberdade de expressão do artigo quinto. A sugestão me parece um duplo absurdo escandaloso. Todos que conhecem um mínimo sobre direito constitucional sabem que a proclamação de uma nova Constituição não anula todas as leis anteriores a ela: isso seria impraticável porque geraria um vácuo ? ou um caos ? jurídico.

Por outro lado, todos também sabem, ou deveriam saber (sobretudo um advogado), que uma lei anterior à Constituição não pode contrariar as normas constitucionais ? é óbvio, isso vale igualmente para as leis posteriores à Constituição. Para a validade de toda e qualquer lei, é necessário que ela seja compatível com a Constituição em vigor ? também chamada de Lei Maior justamente porque todas as demais leis existentes, anteriores ou posteriores, são a ela inferiores.

Trata-se do que, no âmbito jurídico, se chama teoria da recepção: de acordo com esta, há a preservação das leis anteriores que são materialmente compatíveis com a Constituição. Assim recepcionada pela Constituição, toda legislação anterior que com ela não seja incompatível continua em pleno vigor. Em contrapartida, todo ordenamento jurídico anterior materialmente incompatível é considerado revogado. É o caso da malfadada censura prévia prevista pela Lei de Imprensa. A revogação da lei é automática, dispensando sua retirada expressa ou a interpretação do Supremo Tribunal Federal.

Alarmante e consternador

Não conheço o texto da Lei de Imprensa: talvez (e apenas talvez) ela não tenha sido ad-rogada com o advento da Constituição de 1988 (isso não é relevante aqui, como explicado pelo que se segue), mas, certamente e no mínimo, a parte nela que se refere ao dispositivo da censura prévia foi automaticamente derrogada.

Sugerir o uso da Lei de Imprensa para validar a censura prévia num determinado caso expressa um apoio ao caráter autoritário e à adoção de medidas autoritárias quando lhe é conveniente ? primeiro absurdo, de cunho político e ético. Um advogado sugerir a validade e a aplicação "embora inconstitucionalmente" de uma lei flagrantemente incompatível com a Constituição (segundo absurdo, de cunho jurídico) poderia perfeitamente fazer parte do Febeapá e poderia ser exemplarmente registrado, se vivo ainda fosse, por Sérgio Stanislaw Ponte Preta Porto (que era magistral, mas não era magistrado): assim, pelo menos, talvez se possa enxergar um aspecto engraçado para além do primeiro ? maior e mais grave ? absurdo.

Como bem observou o próprio Saulo Ramos na mesma carta ao jornal, nem todo jurisconsulto, nem todo advogado sabe direito ? mas também não precisa saber tão errado. Em tempo: é preocupante e triste, para não dizer alarmante e consternador, ver que se advogue, "embora inconstitucionalmente", medida estritamente antidemocrática e especialmente ligada ao autoritarismo.

(*) Historiador, doutor em filosofia pela FFLCH-USP