Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

E se fossem Maria e João?

CASO FELIPE E LIANA

Túlio Lima Vianna (*)

O homicídio dos adolescentes Liana e Felipe, tão alardeado pela mídia na última semana, não passaria de uma tragédia particular como tantas outras registradas cotidianamente em nossas delegacias de polícia não fossem as circunstâncias nas quais ocorreu. Não me refiro ao grau de crueldade na execução do crime, pois dezenas de Marias e Joões são mortos todo dia em situações tão ou mais bárbaras, e não são objeto sequer de uma nota nos jornais de primeiro escalão. O que difere este homicídio daqueles que já não vendem mais jornais é a posição ocupada pelas vítimas na sociedade. Na balança da mídia e de seus consumidores de tragédias pessoais, a vida de um adolescente de classe média vale muito mais do que a de João e Maria…

O que choca nas mortes de Liana e Felipe n&atilatilde;o são as circunstâncias da execução, mas a transferência que o leitor-telespectador-consumidor faz, colocando seus próprios filhos na situação das vítimas de fato. As mortes das Marias e dos Joões não chocam, pois se dão nas favelas, na periferia, em suma, em lugares demasiadamente distantes e "perigosos" ? as aspas aqui são imprescindíveis ? para a maioria dos filhos da classe média.

Estudo e assistência

Liana e Felipe, em sua sede de aventura, foram vítimas da desigualdade brutal que tanto os distanciavam de Champinha, seu suposto algoz e atual personificação do demônio, segundo a mídia-urubu que a cada dia mais infesta nossos noticiários. Liana e Felipe criam que sua passagem por aquelas terras se daria de forma quase imperceptível ? tal como ocorreria num shopping ?, esquecendo-se de que a desigualdade social é demasiadamente visível e cruel àqueles que olham de baixo.

O trágico fim da história todos conhecem, tal como foi contado pela mídia em versão para adolescentes da velha fábula de João e Maria, aprisionados pela perversa bruxa da floresta.

E como em todo velho conto de fadas a mídia não podia deixar de buscar uma moral na história: os adolescentes rebeldes de classe média devem doravante obedecer a seus pais, e os garotos pobres deverão ser encarcerados a partir dos 16 anos, para a proteção dos primeiros.

Se o garoto Champinha tivesse estudado nos mesmos colégios de Liana e Felipe teria se tornado tão "violento"? Se o Estado tivesse proporcionado a Champinha um tratamento adequado às convulsões que passou a ter a partir dos 14 anos, teria ele tamanho desprezo pela vida humana?

Consumidores de carniça

Violento é Champinha, e não o Estado, que lhe negou uma infância minimamente digna, e a mídia, que só enxerga crianças e adolescentes miseráveis para mostrar a seus consumidores o quanto eles são "perigosos" e com que frieza eliminam uma vida.

Quanto vale uma vida humana? As de Liana e Felipe, certamente valiam muito, não só pelo amor de suas famílias, mas também de um ponto de vista exclusivamente econômico, pelos investimentos que foram feitos em alimentação, educação, saúde e tantos outros. Valem tanto que vendem jornais e dão audiência.

A de Champinha não vale nada. Pouco ou quase nada foi investido nele: alimentação, educação, saúde e lazer, para ele, não são mais do que palavras impressas em nossa Constituição Federal, que ele dificilmente consegue ler.

Como então exigir de Champinha que respeitasse a vida de Liana e Felipe, se o Estado e a sociedade nunca respeitaram a sua?

A mídia-urubu e seus consumidores de carniça impressa e gravada clamam por justiça, em nome de Liana e Felipe, que tiveram a infeliz idéia de acampar no lugar errado, num misto de desafio e coragem.

Mais exclusão

Reduzir a menoridade penal é a forma mais simples e irracional de se resolver um problema complexo: lugar de criança e de adolescente é na escola, e não trabalhando como tantos de nossos jovens, que perdem suas infâncias e adolescências para ajudar no sustento de seus lares.

Antes de cogitarmos em reduzir a menoridade penal temos a obrigação constitucionalmente consagrada de colocar todas as nossas crianças na escola e ? principalmente ? garantir-lhes que possam permanecer estudando, dando às suas famílias o mínimo de condições de subsistência. Assim fazendo certamente estaremos evitando tragédias como esta.

Do contrário, a redução da menoridade penal será mais uma nova lei que marginalizará ainda mais os filhos da miséria com o fim único de amenizar os ânimos dos leitores-telespectadores indignados com a violência e calar o choro da mídia carpideira.

(*) Professor de Direito Penal da PUC-Minas <www.tuliovianna.org>