Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

E se os pauteiros colocassem nas agendas os telefones dos ipês?

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Abra o jornal, ligue a televisão, aumente o volume do rádio e tente responder: sobre quem e sobre o que incide o foco da pauta na cobertura das cidades? Sob que prisma e orientação os repórteres dos diversos veículos de comunicação saem às ruas? O que vão ? melhor ainda ? o que querem ver? Vamos aprofundar mais um pouco: o que os editores querem que seus repórteres lhes tragam ao fim de uma jornada? E, para completar: o que os leitores, ouvintes e telespectadores querem saber?

Inevitavelmente as respostas terão de considerar uma visão maniqueísta da realidade. Jornalismo é contraste, não funciona em tons pastéis. É preto no branco. Pau ou pedra. Vida ou morte. Bem ou mal. Eros ou Tânatos. Como é próprio do gênero humano cultivar inconscientemente um sadismo atávico, o menu de assuntos colocados à disposição do consumidor de informação quase sempre envereda por um viés negativista. Como é isso que se supõe que queremos ver, ler, ouvir, então essa é a ração que nos cabe e nos dão. Pode procurar: entre os pauteiros de qualquer jornal, emissora de rádio ou tevê, os telefones obrigatórios na agenda, para serem acionados logo no início do dia, são o da polícia, o dos bombeiros e o do departamento de trânsito. Esses números estão na agenda não para a busca da informação de quantos se salvaram, de quantos escaparam, mas de quantos ficaram feridos ou morreram. Isso é que é notícia. Já percebeu que, fora a noite de Ano Novo, ninguém liga para hospital pra saber quantos nasceram? Natural, pois é da índole do bicho-homem a atração pela tragédia, muito semelhante àquela estranha atração que muita gente tem pelo abismo.

Viver não tem graça, é pura rotina, a tragédia é que fascina. E como atua no nível mais primário da consciência, tocando em cordas muito profundas da memória coletiva, a tragédia é tanto mais apreciada pelos leitores, ouvintes e telespectadores quanto menos educados (ou "civilizados") eles são. É só conferir o sucesso do chamado jornalismo popular. O verniz da civilização é que reduz o apetite do vampiro.

Mas, ao mesmo tempo, subjaz amortecida, em estado de latência, uma predisposição à boa notícia, quando nada como forma de impor algum contrapeso à carga de tragédias da "realidade" oferecida pelo cotidiano das redações. Como o hábito do cachimbo há muito entortou a boca, é muito difícil admitir que notícia boa também atrai, também vende. Ainda na semana passada meu amigo Brás, competente cinegrafista da TV Globo-Brasília me exibiu, orgulhoso, cheque-prêmio conquistado por ter pautado e produzido reportagem sobre a floração dos ipês nas ruas de Brasília, considerada a melhor matéria da semana. Brincando, comentei com ele: "Ainda bem que em vez de ligarem para a polícia, pelo menos uma vezinha os pauteiros ligaram para os ipês." Riu mas fez questão de me corrigir: a idéia da matéria foi dele, não da pauta.

Ora, se é possível premiar reportagem que enfoca aspecto da agenda positiva das cidades, então é porque nem tudo está perdido. É possível, sim ? e sem abrir mão da cobertura da tragédia, da denúncia e do problema ? abrir espaço na agenda para a floração dos ipês, aqui representando toda a gama de aspectos positivos com motivação suficiente para ocuparem o espaço que lhes cabe, inclusive e por que não?, a manchete do dia.

Mas, que fique claro: a cobertura esporádica dos aspectos positivos do cotidiano das cidades, dos estados e dos países, essa não vale pois, pelo próprio inusitado, já se alçam à condição de notícia, exigindo cobertura obrigatória. O que se propõe, aceitando desde já a zombaria e a crítica por excesso de poesia ou infantilidade, é o ingresso da floração dos ipês na agenda diária dos pauteiros, na visão cotidiana dos cinegrafistas, editores, noticiaristas, repórteres. O que se propõe não é apenas a concessão generosa de espaço ou tempo para o fato positivo ou otimista, mas uma revolução. A revolução de retirar a pauta positiva da condição de eventual, elevando-a à condição de pauta diária, obrigatória. É colocar os telefones dos ipês ao lado do telefone da polícia. E fazer com que toda manhã os pauteiros liguem para os ipês, pra saber como passaram a noite e se têm alguma novidade. Os ipês já provaram que são boas fontes. O cheque-prêmio do Brás é a prova.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de telejornalismo. Dirige o Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>

    
                  

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