Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ela não tem 80 anos!

BÁRBARA HELIODORA

Deonísio da Silva

A revista IstoÉ que está nas bancas entrevista
a célebre crítica de teatro. O verbo "ter"
para indicar a idade traz um ardil: Bárbara Heliodora não
tem 80 anos. Esses são os que não tem mais, pois são
idos e vividos. Tem todos os outros que lhe faltam e tomara que
sejam muitos. Antigamente, quando uma pessoa ultrapassava a idade
bíblica dos 70, passava a considerar lucro o porvir. Hoje,
com os avanços da medicina e cuidados com o corpo outrora
impossíveis, vão ficando menos raros os que chegam
aos 90 e aos 100 anos.

Em foto recente (de Carlos Magno), que ilustra a entrevista concedida a Ricardo Miranda, vemos uma senhora elegante e sorridente parecendo expressar com o semblante o ar atrevido que perpassa suas corajosas críticas. Continua assistindo a três peças por semana. A propósito, quantos críticos literários lêem três livros por semana, não dentre os seus preferidos, mas dentre aqueles que é sua obrigação conhecer?

Ao comemorar 80 anos, Bárbara Heliodora celebra também quatro décadas e meia de crítica teatral. Tornou-se, mais que temida, respeitada. Exerceu a crítica sem abdicar da condição feminina, que a levou a ser mãe, avó e bisavó. Morando no terrum de Machado de Assis, no Cosme Velho, no Rio, exala complacente ironia ao dizer que é "a mesma de 79". Não pode ser comparada ao ex-ministro Rogério Magri, mas é inevitável que dele nos lembremos quando a culta madame diz que Toco, seu cachorro bassê, é "a pessoa mais importante da casa". Certa vez Magri disse de sua cadela que era um ser humano como qualquer outro.

O que vale a pena

Ela dá respostas certeiras às perguntas ? aliás, muito pertinentes todas elas ? e diz que fazer oitenta "é sobreviver". Ao lembrar o Rio antes do caos urbano que assola a cidade há décadas, faz brotar sua memória de menina:


"Perto da minha casa, havia um estábulo e vendiam leite tirado das vacas. Verdureiras e peixeiros vendiam seus produtos em casa e anotavam tudo em um caderno. Na praia de Botafogo, na esquina da rua Marquês de Abrantes, tinha um teatrinho de bonecos todo domingo de tarde".


E a sábia conclusão:

"As crianças eram crianças por mais tempo".

Dona Bárbara estranha certos hábitos do público teatral, como o de "cair na gargalhada cada vez que uma atriz solta um palavrão". E com a costumeira clareza, tão presente em suas críticas, afasta a censura do comentário: "Não quero um teatro moralista, mas não se pode deseducar a este ponto". Inconformada com o rebaixamento de um teatro que se apóia no tripé "palavrão", "nudez" e "mídia" para pautar os espetáculos, desvenda a grande mentira: "Acho que essas pessoas julgam mal o povo. Quando oferecem coisa boa, o povo vai".

A crítica já pagou caro por seus textos: "Gerald Thomas desejou minha morte por pneumonia e eu sobrevivi a várias, ele se ajoelhou e pediu perdão, durante um espetáculo no Paraná. Mas isso é irrelevante, como é irrelevante falar do teatro dele".

E a visão de seu papel:


"A gente sabe que o emprego não é dos mais agradáveis, a gente se arrisca a desagradar a algumas pessoas. O que se vai fazer?"


Ah, como fazem falta Bárbaras Heliodoras em outras áreas de nossa produção cultural! A revista deu capa à mania nacional das dietas, que buscam aprimorar a forma física. Mas milênios depois de equivocadas distinções entre corpo e alma, convém ler este número pela entrevista de Bárbara Heliodora, o diferencial de qualidade! No resto da revista, repetições e banalidades ubíquas.