Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Eles estão desaprendendo a escrever

PORTUGUÊS DE MENAS

Deonísio da Silva (*)

Pagodeiro convoca a imprensa para explicar sua relação (sic) com a cachorrona. Economistas e sociólogos também convocam jornalistas para comentar sobre (sic) o câmbio fixo ou o tráfico de crianças. Um certo professor Pasquale ensina macetes da língua portuguesa num jornal que proíbe sinais como o trema. Não bastasse grafar freqüentemente frequentar (sic) e tranquilo (sic) com toda a tranqüilidade, ele ainda encerra seus artigos com o fecho fixo de "é isso".

O colunista José Simão inventou formas fixas para a abertura e o fechamento de sua coluna, que começa e termina sempre do mesmo modo. O início é "Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O braço armado da gandaia nacional!" Recentemente até que mudou um pouco: "Macaco Apagão! Direto do FHnistão!" Não bastassem as piadas insistentemente repetidas, fecha com "acorda, Brasil, que eu vou dormir!" , "vou pingar mais uma gota de meu colírio alucinógeno". Voltamos às formas fixas dos contos de fada, que abrem com o usual "era uma vez" e fecham com "e foram felizes para sempre"? Não, há mais. Há notórios erros de português também na coluna de astrologia da pós-graduada Bárbara Abramo, de que é exemplo inusitada regência para o verbo transitar: "Com Júpiter e Mercúrio transitando seu (sic) setor de comunicações, talvez você descubra novos interesses intelectuais". "Sem querer você leva uma palavra de paz e de conforto emocional e espiritual para quem se achegar ao teu (sic) lado." Mas não foi a você que ela se dirigiu ali no começo do período?

Todos os exemplos foram extraídos da Folha de S.Paulo. O jornal está criando um dialeto? Não. Pois à pág. 2, Carlos Heitor Cony mantém o estilo que fez dele um de nossos melhores ficcionistas. Por que o jornal não tem o mesmo cuidado com a língua portuguesa? Por não serem escritores, os outros colunistas estão dispensados de se submeterem às normas da língua portuguesa? Podem jogar no lixo o léxico, a sintaxe e comezinhas regras de estilo?

Não bastam os editais públicos, as placas, os avisos, escritos com grosseiros erros de português. Também vários jornais desistem de escrever corretamente. E de vez em quando lingüistas, travestidos de professores de língua portuguesa, escrevendo de modo desjeitoso e, principalmente, em estilos que lembram olarias, tal a quantidade de tijolos impostos ao distinto público, vêm a público defender os despautérios sob a falácia de que a língua culta é fruto da dominação de certa classe social. Na escola já não se reprova mais. Custa caro ao Estado reprovar tantos alunos, além de contribuir para aproximar o Brasil cada vez mais de Serra Leoa.

Mas é preciso perguntar: na França, declarada pela Unesco a nação mais literária do mundo, é usual uma receita de culinária ser publicada com erros de francês?

Para quê?

Convocar pressupõe autoridade sobre o convocado. Felipe Scolari, o técnico da seleção, pode convocar jogadores para a seleção brasileira de futebol. O presidente da República e seus ministros podem convocar a imprensa. Que autoridade tem um pagodeiro, ou qualquer outro cantor, artista ou modelo (modelo de quê as ditas mocinhas são, hein?) para convocar jornalistas? E o verbo comentar mudou a regência? Agora é "comentar sobre", como é também "pensar de que", sem contar que a pesquisa de opinião é "menas" importante do que a eleição e "houveram" várias tentativas de "fazer a colocação". O galináceo faria melhor, claro.

"Ó bendito o que semeia/ livros/livros à mão cheia/ e manda o povo pensar." "O século que viu Colombo/ viu Gutenberg também." "Quando no tosco estaleiro/ da Alemanha o velho obreiro/ a ave da imprensa gerou/ o genovês salta os mares/ busca um ninho entre os palmares/ e a pátria da imprensa achou."

A pátria da imprensa era o Brasil? Hipólito da Costa, que escreveu no exílio, sabia disso? O baiano Castro Alves, o poeta dos escravos, estava enganado? E os pobres que ascenderam socialmente, graças a uma abnegada aplicação aos estudos e pesquisas nos bancos escolares, convictos de que a relação bunda-cadeira-hora os redimiria, como os redimiu, da ignorância e da má qualificação profissional, hoje não teriam vez, nem voz. A escola está se armando para nivelar por baixo, em nome de uma falsa igualdade, que põe num mesmo plano quem quer aprender e estuda bastante, e aquele que não quer nada com nada. Depois, como o semelhante tende a procurar o semelhante, na imprensa como em outros lugares, chegaremos ao verdadeiro milagre de Gutenberg: é possível no Brasil aprender a escrever sem ler. E os ágrafos, não apenas já invadem a imprensa como hordas de novos bárbaros, como também fazem escola!

Voltemos aos mestres. Nem o trema e nem a crase foram ainda abolidos. E a República derrubou a Regência, mas não a regência verbal! Lembremo-nos do óbvio, ao menos: foi ouvindo que aprendemos a falar, e é lendo que aprenderemos a escrever. Se as normas gramaticais precisam ser mudadas, que as alteremos democraticamente. A língua é patrimônio social. E se já foi decretado que as transgressões são toleradas, por que razão estão circunscritas à gramática? Não poderiam ser estendidas às normas que permitem vender os jornais nas bancas? Para que pagar os jornais? E para que pagar a assinatura? Aliás, para que ler ou assinar jornais como esses? Não seriam os leitores cúmplices de crimes de lesa-língua?

(*) Escritor e professor universitário; seu romance mais recente é Os Guerreiros do Campo (Editora Siciliano/Mandarim)

 

    
    
              

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