Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Elisabete Villar

ROBERTO MARINHO (1904-2003)

"Morreu o Citizen Kane do Brasil", copyright Público (www.publico.pt), 8/08/03

"Roberto Marinho, que transformou o jornal fundado pelo pai num dos maiores impérios de ?media? do mundo e se tornou num dos homens mais ricos e poderosos do Brasil, morreu anteontem à noite, no Hospital Samaritano, do Rio de Janeiro, vítima de um edema pulmonar. Tinha 98 anos e era o patrão da Globo.

Na sequência de uma trombose, Marinho fora hospitalizado à tarde e submetido a uma operação, à qual não sobreviveu. O presidente Lula da Silva declarou três dias de luto nacional. E os legisladores do Congresso interromperam um barulhento debate nocturno para guardarem um minuto de silêncio em sua memória.

O destino traçou-se-lhe na herança deixada pelo pai, o jornalista Irineu Marinho, que, em 1925, fundou o diário ?O Globo?. Uma crise cardíaca matou Irineu 20 e poucos dias depois de lançar o jornal. Roberto tinha 21 anos e acabava de ingressar na redacção, como repórter.

Passariam ainda seis anos até assumir em pleno a direcção d? ?O Globo?, que converteu num dos mais influentes títulos do país. Nas seis décadas seguintes, Roberto Marinho dedicou-se a espalhar os tentáculos do seu império; hoje, as Organizações Globo compreendem o jornal e outras publicações, vários canais de televisão (entre os quais a TV Globo, conhecida em todo o mundo pelas suas novelas) e rádios, além de uma editora. Marinho dirigia ainda a Globopart, empresa de comunicações e participações financeiras. A última aparição pública do magnata deu-se no passado 20 de Julho, dia em que foi celebrada uma missa comemorativa dos 78 anos de ?O Globo?, o trampolim que o catapultou para uma vida comparável à do ?Citizen Kane?, do filme de Orson Welles.

Era um amante do desporto, mas também membro da Academia Brasileira de Letras e coleccionador de arte. Criticado pelas orientação conservadora que imprimiu às suas empresas, foi um dos mais importantes homens de negócios brasileiros, apesar do seu perfil mais ou menos discreto. Descrevia-se a si mesmo como patriota e manteve laços próximos com a ditadura militar que vigorou de 1964 a 1985, tendo usado sem grande pudor a influência da sua empresa para favorecer os políticos da sua preferência e deitar abaixo os que considerava ?maus brasileiros?. Erguia e arruinava governantes e muitos candidatos rumaram a sua casa esperando uma bênção. Todos os presidentes do Brasil dos últimos 70 anos se relacionaram com ele. Em 1985, o presidente eleito Tancredo Neves justificou deste modo a escolha do amigo íntimo de Marinho, António Carlos Magalhães, para ministro das Comunicações: ?Lutarei com o ministro da defesa mas não com Roberto Marinho?. O actual chefe de Estado, Lula da Silva, disse que o país ?perdeu um homem que atravessou a vida com fé no Brasil?.

Marinho nasceu a 3 de Dezembro de 1904 e deixou a sua assinatura em tudo o que fez, tendo igualmente marcado o seu país. As suas opiniões e pontos de vista eram frequentemente difundidos como editoriais de horário nobre, em que era apresentado como o ?jornalista Roberto Marinho?, único título que permitia que lhe atribuíssem. Marinho ajudou a moldar a identidade nacional brasileira, dentro e fora do país. ?Ele foi sem dúvida responsável pela criação da maior empresa de comunicações do país e, embora com o tempo a tenha transformado num monopólio, estava sempre preocupado com a qualidade das suas produções?, disse à Reuters Fábio Santos, editor da revista de análise política e social ?Primeira Leitura?.

Embora ainda fosse presidente da Organizações Globo, o brasileiro baixinho e de bigode, conhecido pela sua paixão por cavalos, delegara já muitas responsabilidades empresariais nos três filhos: Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto.

O império da família sofreu alguns reveses nos últimos anos, com os desequilíbrios da economia brasileira, incluindo a grande baixa do real, que inflaccionou as suas dívidas. No ano passado, ocupou o 445? lugar na lista mundial de milionários publicada pela revista ?Forbes?, mas este ano não entrou para o ?ranking?. Ainda assim, a fortuna Marinho é avaliada em cerca de dois mil milhões de euros.

Marinho deixa viúva a terceira mulher, Lily Carvalho, que foi Miss França em 1938 e que desposou quando tinha 86 anos."

 

"Padrão global", copyright Jornal do Brasil, 8/08/03

"Entre todas as suas empresas e realizações, o maior legado de Roberto Marinho, que morreu anteontem, aos 98 anos, é sem dúvida a Rede Globo. A emissora inaugurada em em 1965, com a concessão obtida em 1957 no governo Juscelino Kubitschek, tornou-se uma das maiores do mundo. Com sua impressionante cobertura – abrangendo 99% do território brasileiro -, a Globo não só funcionou como elemento integrador do país desde os anos 60, como também ditou rumos no jornalismo, influenciou os hábitos da população e difundiu a cultura e a história do Brasil por todo o planeta por meio das produções exportadas para mais de 130 países. Tudo isso foi feito com um apuro técnico que conferiu à emissora o tão conhecido Padrão Globo de Qualidade. Tamanho poder é capaz de gerar tanto admiração quanto resistência.

O presidente da Radiobrás, o jornalista e crítico de TV Eugênio Bucci, define bem o que é a Globo dentro da história recente do país, fazendo uma alusão à famosa vinheta da emissora.

– O plim-plim representa o tic-tac do relógio cuco do Brasil, que está de luto neste momento em que ainda não cabem análises. Não é possível pensar numa representação do Brasil sem passar pela Globo. Se a identidade brasileira – se é que é possível falar de uma identidade – tem algum suporte nas instalações midiáticas, esse suporte passa pela emissora de Roberto Marinho.

A própria emissora é consciente deste papel, como pode ser visto no Dicionário da TV Globo, lançado mês passado pela Jorge Zahar Editor. O livro conta a influência da emissora sobre a sociedade, desde o uso de bordões de personagens de dramaturgia até ações estimuladas pelo chamado ?merchandising social?. Mas um dos maiores responsáveis pelo que a Globo é hoje, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-diretor e atual consultor da emissora, reluta em falar sobre o poder da Globo.

– A televisão não tem poder de alterar comportamentos – diz Boni.

– A integração nacional que a Rádio Nacional promoveu a partir dos anos 40 e 50 passou a ser feita nos anos 60 pela Globo. A emissora conseguiu nivelar a linguagem e a informação. Por isso, no Brasil, que pode ser entendido como uma Europa, hoje se conversa a mesma coisa no extremo Sul e no Norte – diz Boni.

Mas o consultor faz coro com alguns dos críticos da Globo no que se refere ao fim das produções regionais ocasionado pela estratégia da emissora.

– O importante é que a TV tenha a consciência de preservar a cultura regional. Não pode ficar com esse conformismo de transmitir a cultura do Rio e de São Paulo para o resto do país. O caminho percorrido pela TV Globo, de centralizar para baratear e melhorar a qualidade da produção, está esgotado.

Quem também chama a atenção para o futuro da emissora é o jornalista Alberto Dinnes.

– Temos que pensar a Globo daqui pra frente. Afinal, em um mundo onde todos os países têm de ter projeção internacional, é preciso que o Brasil tenha uma empresa do porte da Globo. É preciso destacar, sobretudo, que ela é uma empresa jornalística, que começou como um jornal vespertino, vendido nas ruas. Se ela quiser continuar no rumo que Roberto Marinho criou, precisa manter o espírito jornalístico

Não só a Globo nasceu do jornalismo como orientou sua direção, como lembra Henrique Caban, chefe da redação do jornal O Globo de 1972 a 1997.

– É chover no molhado falar da importância da TV Globo para o jornalismo brasileiro. Marinho foi o homem de imprensa mais importante do Brasil no século passado. Mais do que Chateaubriand, que perdeu tudo antes de morrer. Em jornalismo, esteve sempre à frente. Era mais jornalista que empresário; duro no trato, mas ameno e professoral. Ele achava que o jornal tinha que ter opinião sobre tudo. E como era o dono do jornal, O Globo era um espelho dele. Roberto Marinho fazia questão de manter a independência da redação diante do comercial – lembra Caban.

Os grandes feitos de Marinho acabam por ofuscar as mais severas críticas feitas ao jornalista e empresário, incluindo o documentário Muito além do cidadão Kane, produzido pela emissora inglesa Channel Four. A reportagem de Simon Hartog analisava o processo das concessões de TV e trazia depoimentos contra o poder da Globo. A fita chegou aqui de forma clandestina através do jornalista Geraldo Anhaia Mello, que era diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo quando a instituição foi impedida de exibir o material em 1994.

– O governo Fleury mandou que apreendessem as fitas. Mas muitas cópias foram feitas e exibidas em vários sindicatos por todo o Brasil – lembra Geraldo.

No entanto, Eugênio Bucci não concorda com a comparação entre Roberto Marinho e o magnata Randolf Hearst insinuada no documentário.

– A figura de Roberto Marinho é mais complexa, com vários lados diferentes que só pode ser compreendida na inteireza. Colaboraram Rodrigo Fonseca e Cláudia Amorim"

 

"Telenovela, o carro-chefe", copyright Jornal do Brasil, 8/08/03

"Os programas simples faziam sucesso nos anos 50, época em que apareceu a televisão. A improvisação era o selo. Sua marca, a ingenuidade. Foi um tempo mitológico em que a programação era formada por um tripé: novelas, filmes e shows humorísticos. Posteriormente, os shows desapareceram para abrir espaço aos telejornais e programas de entrevistas. Foi nesse período que estreou a primeira novela diária brasileira: 2-54-99, que o público adorou. As novelas passaram então a ser o filé mignon da TV. A tela pequena era uma realidade.

Mas, para que essa realidade se consolidasse, foi necessário que a TV iniciasse uma escala nacional. No Brasil, essa façanha aconteceu de 1966 a 1967 na TV Globo.

O pessoal de confiança da direção promoveu um trabalho singular que nacionalizou a Globo por mérito próprio. E, na busca pela ?identidade global?, a telenovela foi carro-chefe. Quando Irmãos Coragem foi ao ar em 1970, já estava delineado o padrão global de qualidade, que consistia em um esforço enorme de produção. Vale recordar que enquanto a Globo investia US$ 50 mil por capítulo, a mexicana Televisa, por exemplo, investia US$ 7 mil.

O uso de todos os recursos de produção possíveis determinou que o produto final fosse rigoroso, ?artesanalmente?perfeito. O plano televisivo se converteu assim em um espelho do plano cinematográfico dentro da tradição do cinema narrativo. Ou seja, toda história é contada em campo – contracampo, ou melhor, um personagem que escuta, outro que fala.

Essa narrativa eficaz produziu grande empatia com o público, mas os esforços de produção são o elemento que colaborou para a obtenção de um padrão de qualidade. A questão do dinheiro investido foi capital, uma vez que os recursos garantiram uma fotografia formalmente expressiva, atores melhores, câmeras de qualidade, uma equipe técnica profissional e vestuário adequado. Esse é um dos segredos da imagem global, cuja iconografia viria a ser reconhecida quase que por reflexo. (Autora de ?Melodrama – o Cinema de Lágrimas da América Latina?)"