Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Em quem acreditar?

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DOSSIÊ PERFÍDIA

Fabiano Golgo, de Praga

Quando o Observatório começou, anos atrás, senti-me gratificado por poder ler – e mais tarde escrever – sobre o umbigo, ou seja, sobre minha profissão. Escolhi ser jornalista por pura vocação, pois se quisesse fazer dinheiro ocuparia a cadeira reservada para mim no escritório de advocacia tributária da família. Mas não. Uma ardência interna que me fazia querer expor os fatos como eles são, e não como as versões dos poderosos de plantão gostariam que tivessem sido, me levou ao jornalismo. A raiz da minha ardência interna provavelmente está na adolescência sob regime militar, já que me sentia afogado por eles em tentativas goebbelescas tupiniquins de moldar minha geração com as famigeradas aulas de Moral e Cívica e OSPB – que, para os que não lembram ou por isso não passaram, significava Organização Social e Política Brasileira, estandarte do ideário dos milicos. Entrei de cabeça e alma na busca pelo jornalismo mais ético e justo que a natureza humana – inclinada à tomada de partidos, raramente neutra – me permitisse.

Ao terminar a faculdade em Nova York fui convidado para trabalhar em jornais, rádios e TVs gaúchas, pois venho dos pampas. Recusei, assim como não quis me transferir para alguma redação paulista ou carioca. Alguns me acusaram de arrogância, achando que me achava melhor que os outros por ter estudado na terra do tio Sam e que então iria trabalhar para os gringos. Ledo engano, pois o jornalismo americano nunca me interessou, até me causava náuseas, de tão plastificado, tão uníssono – como quase tudo nos EUA –, tão pasteurizado. Acontece que no Brasil eu tinha receio de trabalhar direto em alguma redação porque em breves estágios em épocas de férias da universidade eu tivera essa experiência e descobrira que o clima era de tensão, que os colegas ficavam um tentando comer o fígado do outro, em disputas por demais cangaceiras para minha sensibilidade de repórter idealista. Acabei na República Tcheca, mas não vem ao caso aqui desfilar minha biografia completa. Entretanto o que registrei tem a ver com o que quero dizer nessa comunicação-protesto contra o que acabo de ler no Observatório (edição de 14/2/01).

Ao saber do cancelamento do programa de TV em que seria entrevistado o autor do livro que fazia denúncias contra o coronel-mor ACM, fiquei, como acredito todos os que esperavam pela transmissão (em meu caso, às 1h30 da madrugada tcheca, pelo computador), estarrecido e assustado. Sabendo que há não muito a TVE havia censurado o sem-terra Stédile, que acabou aparecendo no Opinião Brasil apenas pela Cultura, não me surpreenderia com uma repetição da sem-vergonhice dos poderosos mais uma vez. Estamos tão acostumados a esses déspotas que usam e abusam dos poderes a eles por nós "emprestados" por 4 anos que um caso de censura aqui ou outro ali não me causam assim tanto espanto. Lembro quando o ministro da Justiça de Sarney e o governo pós-ditadura fizeram estardalhaço em benefício da própria imagem em torno do suposto "fim da censura". O tal fim da censura, recém-saído do forno, só não valia para o filme Je vous salue Marie, de Jean-Luc Goddard, que incomodou a igreja católica. Censuraram, mesmo que a censura tivesse sido extinta.

Álibi e sofisma

Dizem que é apenas mito que De Gaulle teria dito que o Brasil não é um país sério. Pode ser mito que o líder francês o tenha dito, mas certamente não é mito o conteúdo do dito/não-dito.

Tudo bem, Alberto Dines afirma que o programa não foi censurado. A obrigação de qualquer jornalista é desconfiar de declarações de gente envolvida em algum lado de qualquer batalha. Mesmo que seja o mestre Dines. Desconfiei e saí a perguntar à gente da TVE e do próprio site. Certo, aparentemente não foi censura propriamente dita. Vi o comunicado oficial do Observatório e o computei como versão de um dos lados da tal batalha travada em dois ou três fronts (Obsimp, Globo-Folha, talvez ACM e governo federal).

Agora, tomando-se como verdade a frase do autor do livro Memória das Trevas, João Carlos Teixeira Gomes, reproduzida no Observatório, constata-se que teria sido "uma ‘precaução ética’ da parte de Dines em relação a um querido amigo que estava assumindo naquele dia a direção da TVE". (Considero que a ausência de um "Alberto Dines responde" abaixo do texto significa que o pai do Observatório nbsp;concorda com o que ali está escrito.)

Ora, censura não é apenas a ordem de algum truculento político de posse das rédeas do poder. O próprio Observatório protesta constantemente contra as decisões de editores-chefe e seus similares que moldam o que sai publicado ou o que vai ao ar aos seus interesses e/ou aos da empresa. Jornalismo não pode ter a ver com os interesses de qualquer chefe – este deve ser o que coordena a empreitada de busca e formatação da notícia, não seu escultor. Usar o belo e histórico caso de não publicar o Jornal do Brasil em certo momento da ditadura como álibi é mais que sofisma. Ainda mais com o toque populista de perguntar se isso teria sido censura aos repórteres, redatores etc. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Precaução ética

Se o Observatório não foi ao ar porque Dines e cia. quiseram com isso deixar um protesto exatamente através da ausência do programa, aí sim, seria idêntico ao caso do JB sob o AI-5. Ou se Dines tivesse decidido não fazer o programa daquela noite porque não conseguira nomes que se manifestassem do outro lado da barricada talvez eu até ficasse satisfeito, mesmo que me perguntando que equipe de produção é essa que não consegue achar UM jornalista que quisesse aparecer no programa. Se é o caso de TODOS os nossos colegas terem medo ou fidelidade a ACM e/ou ao governo federal, então é melhor apagar as luzes, bater a porta e fechar a imprensa brasileira, pois nesse caso não é imprensa, mas máquina de propaganda.

Pessoalmente, não acredito que algum nome de importância não pudesse ser encontrado. É evidência de, no mínimo, staff ineficiente, amador. Nesse caso, fica difícil atirar pedra no telhado alheio, no resto da imprensa, quando o próprio programa que o faz não consegue realizar a mais simples das tarefas (colocar um exibicionista por natureza – pelo menos de suas idéias –, ou seja, um jornalista, na janela mágica da TV).

O problema é que leio duas desculpas para o porquê do cancelamento do programa. A que diz que não se achou gente suficiente, então se cancelou. E a que diz que foi uma precaução ética. Qual das duas é verdadeira? Ok, vão me dizer que ambas. Desconfio. Pois se a primeira é verdadeira o cancelamento teria sido por motivos técnicos (mesmo que causados por falha humana). Então seria suficiente apenas ela: sem convidados, não se faz um programa inteiro apenas com um homem. (Se bem que se faz, sim. O autor em questão tem um livro de relevância suficiente para ser alvo de uma hora de perguntas. Mas tudo bem, esse tipo de decisão cabe ao responsável pelo programa.)

Sendo cancelado o programa por causa da incapacidade de se conseguir outros jornalistas, ficaríamos com a certeza de que o Observatório na TV não fora ao ar por causa de algum tipo de sabotagem dos nove colegas que cancelaram sua participação. Bastaria. No entanto, se surge uma tal de "precaução ética"… Preciso de ajuda aqui: cadê a ética que estamos protegendo? Analisemos a versão de João Carlos Teixeira Gomes:

Loga data

"Uma ‘precaução ética’ da parte de Dines em relação a um querido amigo que estava assumindo naquele dia a direção da TVE." Enquanto jornalista e internetespectador eu não tenho nada a ver com as amizades pessoais do apresentador ou do diretor do programa. É exatamente contra isso que protestamos constantemente nas páginas virtuais deste Observatório. Se Dines quis proteger seu amigo Fernando Barbosa Lima de telefonemas de poderosos do governo federal me parece que me fez pagar pela proteção de um amigo seu, não meu. Não foi censurado, mas censurou. Sim, pois afirma que não cancelou o programa por causa de alguma pressão direta. Mas acontece que: se achou que era necessário não colocá-lo no ar para proteger Barbosa Lima, então é porque julgou que a exibição da entrevista era do desagrado dos chefões de Brasília. Chefões que poderiam cortar a cabeça do amigo que acabara de assumir a TVE. Alguém pode me explicar qual é a diferença entre isso e um manda-chuva de jornal/revista/rádio/TV que molde o noticiário de forma a não desapontar o chefe, o dono?

Os interesses comerciais de um veículo de imprensa privado ou os interesses políticos de um veículo estatal são o mesmo bicho. Aquele que se curva a interesses que não os do jornalismo exerce qualquer outra coisa, menos jornalismo. Mais: pode ter sido precaução, agora "ética"? Como explicar essa palavrinha casada com a tal "precaução"? Que pilar da ética estaria sendo exercido aqui? Talvez a ética das amizades, nunca a jornalística. Se o amigo assumindo a direção da TVE não quer desagradar o governo federal teria sido melhor não assumi-la. A não ser que não se importe em ser marionete. Melhor ficar sem emprego do que ser bem-mandado. Teria sido fantástico ver ainda mais um da família Barbosa Lima tendo a coragem de contradizer a voz do poder do momento.

Fico sem saber em quem acreditar. Foi a falta de convidados? Incompetência. Foi precaução? Falta de ética. Foram ambas? Que gafe.

Agora, mais um ponto importantíssimo. O Observatório da Imprensa começou como veículo que analisa a mídia, aponta seus erros, desnuda suas trapaças, revela seus bastidores. Segue fazendo isso. Mas não é de hoje que uma linguagem chula e agressiva às vezes aparece no meio de certos textos, contaminando o objetivo original do site, que é analisar e expor, não ofender. No dia-a-dia, entre amigos e na forma oral posso conviver com insultos de baixo calão do tipo "é um reles mentiroso, abjeta figura sem senso moral"; "Esta proibição ao seu nome é demência, senilidade, paranóia"; "senador Requeijão"; "Puro antisemitismo de ambos para mostrar a ‘conspiração judaica’"?!!

Mas onde estamos? Que tal "Montada nas coxas (ou vizinhanças)"?? Meu Deus! Vizinhanças das coxas como algo a ser dito por alguém sério? Em um veículo de peso, espécie de salon da imprensa? "Talvez pelo verão inclemente, insuficiência do bônus de fim do ano, gastrite, dor de cotovelo ou simples vendeta – esse motor implacável dos critérios jornalísticos" (outra frase do próprio mestre Dines) será que não se aplica ao autor? Espero que não. Seria por demais frustrante descobrir que um de meus vetores, um de meus heróis e exemplo caiu na gandaia da verborragia violenta que ataca não pela análise racional dos fatos, mas com adjetivos mundanos, cujo alvo não é a opinião do atacado, mas sua pessoa.

Foi extremamente difícil escrever essas críticas, pois o Observatório é um querido hábito e o Dines é um ídolo de longa data. Mas essa minha "amizade" virtual, minha admiração pessoal pelo histórico do Dines não significa que não vá cumprir meu dever de jornalista e protestar contra mais que o tal episódio do cancelamento do programa: contra os ataques destemperados (ou por demais temperados…) de linguagem não-condizente com o nível deste site. Seriedade, por favor.

P.S. – Espero que na próxima edição não veja meu nome apedrejado com adjetivos do mesmo gênero sob "Alberto Dines responde".

O autor – fiel, sensível e prendado – não agiu de boa-fé quando montou sua elaborada argumentação em torno de uma expressão pinçada aleatoriamente do texto do Joca – "queridos amigos". Grande parte do depoimento do Joca refere-se à maneira como sua declaração foi metamorfoseada em acusação pelo Globo. O autor esqueceu o principal, preferiu explorar este ângulo embora o Joca não conheça pessoalmente nenhum dos "queridos amigos" nem a historia deste relacionamento. Com esta opção o autor insinua (não sem certa dose de malícia, bem composta é verdade, mas sempre malícia) que a decisão de suspender o programa definitivamente foi tomada em função de amizade deste Observador com o novo presidente da TVE. Com isto ignora todo o sentido do episódio.

No comunicado formal não há referência alguma a ligações pessoais. Apenas uma constatação sobre os atributos profissionais de Fernando Barbosa Lima – públicos e notórios. É um dos poucos capazes de tirar a TVE da longa crise em que se encontra. O novo presidente da TVE é um profissional de sucesso, com uma longa carreira de triunfos. Não precisa de emprego. Muito menos este Observador que, ao longo de quase meio século de atividades profissionais jamais cogitou ou deixou-se fascinar pela TV. Esta ênfase nos "queridos amigos" subverte uma decisão eminentemente política mostrando-a como uma "ação entre amigos". O adjetivo para este tipo de recurso é um só – capcioso.

O Observatório na TV foi uma imposição da dinâmica do próprio projeto. E quando naquelas horas difíceis, da terça-feira, 6 de fevereiro, foi tomada a decisão solitária de suspender o programa – e não apenas aquela edição como erroneamente supõe o autor –, levou-se em consideração os prejuízos que esta decisão causaria não apenas a uma dúzia de dedicados profissionais como ao próprio projeto que há quase seis anos consome tantas energias, entusiasmo e esperanças (inclusive do próprio autor).

Tão atento e sensível juiz dos comportamentos e maneiras ficou chocado com a aspereza da resposta às ofensas contidas nos dois artigos reproduzidos da Tribuna da Imprensa. Não chamou a atenção de tão nobre e elegante defensor da ética que o Observatório não costuma acolher ou reproduzir textos ofensivos. E o fez justamente para mostrar sua capacidade de colocar-se acima das paixões. O que não impediu que o atingido pelas ofensas revidasse à altura. Deixar sem resposta seria aceitar o insulto e as torpezas. Sobretudo porque tanto o jornalista como o senador, mancomunados ou isolados, a pretexto de uma opção nacionalista, são expoentes de uma xenofobia fascista que invariavelmente aparece em todas as suas manifestações. Repudiar estas manobras insidiosas e racistas é obrigação de qualquer democrata, esteja onde estiver e não apenas pelas minorias atingidas.

Escapou ao autor que o senador pelo Paraná, protegido pela imunidade parlamentar (aliás indevida se considerarmos as cassações que lhe foram impostas por fraude eleitoral em pleno regime democrático), xingou este Observador num Roda Viva (o direito de resposta só foi concedido uma semana depois). Pior: em plena CPI dos Precatórios, em transmissão ao vivo para todo o país, o Senador disse com todas as letras que este Observador era um filho da puta (sic).

O episódio foi transmitido e gravado pela TV Senado mas a expressão foi suprimida – isto é, censurada – pela diretora da emissora por ordem do então presidente da Casa, Antonio Carlos Magalhães. Não fosse esta supressão de provas materiais, o senador poderia ser novamente cassado por falta de decoro. O episódio foi denunciado pelo jornalista Nelson de Sá da Folha de S. Paulo que gravou a emissão ao vivo e depois comparou-a com o registro da TV Senado. E foi narrado com todos os detalhes neste Observatório, edição de 20/4/97 [veja remissão abaixo].

Se tão diligente e atento fiscal do gênero humano fosse ligeiramente mais diligente e atento teria encontrado elementos cruciais para entender que o revide do Observador, com alguns anos de atraso, é mais do que justo. Talvez até insuficiente.

Mas este Observador admite uma certa rudeza apontada pelo autor, talvez a única impropriedade (mais estilística do que outra coisa) em duas dezenas de laudas produzidas tanto no Observatório como em outros veículos a propósito de uma manchete forjada para comprometer sua honorabilidade e credibilidade profissional. Como os alvos da rudeza não reclamaram – tantas as culpas que carregam – fica aqui registrado um pedido de desculpas pela expressão empregada naquela linha e meia. O resto fica reafirmado e reiterado.

De qualquer forma, o reparo deste fiel observador está sendo extremamente oportuno. Mostra, mais uma vez, a lisura dos nossos procedimentos que não precisam de Manuais de Redação para serem incorporados ao dia-a-dia.

Mostra, sobretudo, como funciona a ética seletiva e sem riscos daqueles que, com punhos de renda e salto alto, passam ao largo das grandes barbaridades cometidas pela mídia. A. D.

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Ainda o pool – A.D.

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