Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Emir Sader

MEMÓRIA / PIERRE BOURDIEU

"Um intelectual para um outro mundo possível", copyright Jornal do Brasil, 25/01/02

"Enquanto Sartre vivia, as pesquisas sobre o principal intelectual francês o tinham como hors concours, de tal forma sua obra e seu estilo de intervenção intelectual davam a pauta do tipo de atuação que um pensador engajado com o seu tempo deveria ter. Assim que ele morreu, a primeira escolha recaiu sobre Lévi-Strauss, uma espécie de anti-Sartre, nem tanto por haverem polemizado entre si, mas pelo estilo de trabalho acadêmico de Lévi-Strauss, que dizia ter assinado um único manifesto – ?de apoio à luta das nações indígenas brasileiras? -, ainda assim porque diretamente relacionado a seu objeto de estudo e pelo vínculo estreito que ele havia estabelecido com o Brasil.

Iniciava-se assim um longo período regressivo, de predominância do conservadorismo na vida intelectual francesa. Do ?assalto ao céu? das barricadas de 68, apoiadas por Sartre, passou-se ao minimalismo político de Foucault, expressão de posição defensiva, cética, ancorada numa visão pessimista do mundo, que renunciava aos grandes projetos históricos, com a desconfiança de que estes desembocariam fatalmente no totalitarismo. Passou-se de uma certa hegemonia do pensamento marxista ?com sua dicotomia capitalismo/socialismo? à hegemonia liberal, com a centralidade da polarização democracia/totalitarismo, em que o capitalismo se apagava em favor da democracia liberal e o socialismo era condenado pela ?ditadura do proletariado? teoricamente e pela natureza do regime soviético, em termos concretos.

Solidariedade – Esse clima se manteve na França até os anos 90, quando o pensamento crítico voltou a ocupar um lugar de destaque. A obra de Pierre Bourdieu tinha conseguido um acúmulo de capacidade analítica e crítica desde seus escritos ainda dos anos 60, com Jean-Claude Passeron, que deram partida para as suas grandes teorias da noção de ?campo? e seus desdobramentos. Porém, o lugar político dessas elaborações era ínfimo, até que as brechas da hegemonia do ?pensamento único? começaram a aparecer mais abertamente. Para isso Bourdieu teve um papel essencial, que é preciso reconhecer com todo destaque, mais além do poder analítico de suas obras teóricas.

Na greve do serviço público francês de 1995/1996, que derrubou o governo de direita e possibilitou o retorno dos socialistas, com Leonel Jospin, Bourdieu esteve à cabeça dos movimentos de solidariedade com o setor público e com espírito público, contra aqueles que, ?como Alain Touraine, por exemplo?, representavam o espírito de privatização do Estado, identificando a social-democracia com o neoliberalismo.

Aquela divisão marcou a intelectualidade francesa e representou um novo ponto de partida para o engajamento político de parte da sua intelectualidade, vinculada a novos movimentos políticos. Contemporâneos são o editorial do Le Monde Diplomatique, de Ignace Ramonet, uma convocação para romper com o ?pensamento único?, assim como a fundação de Attac e a própria coleção de livros de bolso dirigida por Bourdieu, que alimentou os novos movimentos.

Visões americanas – Bourdieu passou a ocupar o lugar de intelectual comprometido com a denúncia do farisaísmo teórico do neoliberalismo, com todas as suas variantes, inclusive a ?terceira via?, e com o apoio aos novos movimentos que questionam a globalização liberal em nome de um outro mundo possível. Na sua mais recente entrevista, Bourdieu se identifica plenamente com os movimentos que explodiram à superfície em Seattle e que desembocam no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Sua obra, restrita até aqui ao mundo acadêmico, tem sido recentemente divulgada de forma mais ampla, a partir do prestígio conquistado por Bourdieu nos combates ideológicos franceses, de que ele foi o protagonista mais importante. Um de seus textos mais recentes denuncia o que ele chama de ?argúcias da razão imperialista?, para designar as modalidades diretas e dissimuladas de hegemonia americana no pensamento acadêmico e até mesmo jornalístico ocidental. Também o Brasil é objeto de sua preocupação, ao constatar como as visões estritamente americanas sobre os temas raciais tendem a ser induzidas por uma parte do pensamento universitário brasileiro, em detrimento das análises concretas, do seu caráter necessariamente histórico.

?O que pensar, efetivamente, desses pesquisadores americanos que vão ao Brasil para incentivar os líderes do Movimento Negro a adotar as táticas do movimento afro-americano de defesa dos direitos civis e a denunciar a categoria de pardo (termo intermediário entre branco e preto, que designa as pessoas de aparência física mista), com o objetivo de mobilizar todos os brasileiros de ascendência africana em base a uma oposição dicotômica entre afro-brasileiros e brancos, no exato momento em que, nos Estados Unidos, os indivíduos de origem mista se mobilizam para obter do Estado americano (começando pelo Setor do Censo) o reconhecimento oficial dos americanos mestiços e deixe de classificá-los forçosamente sob a etiqueta única de negro?? Esse é o estilo agudo e polêmico de Bourdieu, que, como nenhum outro intelectual francês contemporâneo, soube associar teoria e política, reflexão conceitual e intervenção concreta, crítica e ação. Sua obra e seu estilo, retomando aquele deixado por Sartre – tardiamente reconhecido, com justiça, como ?o intelectual do século? -, apontam para os novos movimentos políticos e para uma nova geração do pensamento crítico também entre nós."

 

"Pierre Bourdieu desmontou a cultura da globalização", copyright Folha de S. Paulo, 27/01/02

"Qual a semelhança entre o dinheiro e os corpos?

Perguntas desse tipo, em que a fronteira entre a economia e o ?resto? da realidade fica imprecisa e fluida, marcaram a obra de Pierre Bourdieu, sociólogo francês morto na semana passada que criticava com vigor a globalização e o neoliberalismo.

Perguntas como essa (moeda e corpo) frequentaram o pensamento de muitos outros franceses importantes, de Georges Bataille a Michel Foucault.

A pergunta não é apenas francesa. Outros pensadores, como George Simmel e John M. Keynes, viram o que estava ?por trás? do dinheiro. Keynes via no respeito ao padrão-ouro (avô de modelos como o que acaba de ruir na Argentina) uma patologia cultural e psicológica.

Para Bourdieu (e para o inglês Keynes), a semelhança entre o dinheiro e os corpos está na violência implícita dos códigos que são usados para discipliná-los (dinheiro e pessoas).

Bourdieu tratou da ?violência simbólica?, economistas como Michel Aglietta tratam da ?violência da moeda?. Note-se a violência na crise de modelos ultraliberais, como o do peso-dólar.

A mais cruel camuflagem para a violência dos códigos é o hábito. Não é à toa que o pensamento econômico mais conservador é um amante do ?respeito às regras?, ou seja, a contratos que regem direitos de propriedade.

A França foi também o berço de um Proudhon, para quem a propriedade é um ato de violência (roubo). Na semana passada, o ?The Wall Street Journal? usou o termo ?roubo? para classificar a ruptura argentina com as regras do padrão peso-dólar.

No século passado, na City londrina, o refrão era o mesmo -pregavam o respeito às ?rules of the game? (regras do jogo).

Mas quem é o juiz?

Em quais campos e momentos é possível romper com o hábito, mudar (em certas utopias, fazer a revolução pessoal ou social)?

Os meios de controle social definem a emancipação possível tanto para o indivíduo quanto para os grupos e classes sociais.

Mas eles não estão neste ou naquele &oacuteoacute;rgão, no Banco Central ou no Ministério da Educação. Difusos em muitas práticas, esses meios de controle formam sistemas de gestão da informação e do conhecimento (como as escolas), mídias (como os jornais, a televisão e a internet), práticas culturais e ideologias.

Há manipulação da violência visível e promoção de formas de participação e inclusão social que só reforçam a disciplina e a opressão (a ordem vigente).

No entanto o pensamento de Bourdieu, anticapitalista e revolucionário (do casamento à política econômica), também funciona muito bem para o ?outro lado?. No capitalismo sobrevive, hoje, quem criar novos hábitos, novas práticas de organização empresarial, novas tecnologias e conhecimentos. Na empresa é preciso escapar, para o bem do sistema, de sua própria violência rotineira e opressiva.

A empresa competitiva aprende o tempo todo, tem funcionários empreendedores, inovadores, líderes capazes de questionar a direção e, assim, gerar lucros em mercados instáveis.

É preciso romper regras, inclusive na gestão dos corpos (um dia para a roupa casual no banco, maior presença de mulheres e negros nas equipes ou inovações nos escritórios e oficinas em favor da criatividade).

A herança de 68, ora como fonte de mais energia contra o establishment, ora como guia para a mudança social sob um ?mínimo? de ordem, aparece em toda a obra de Bourdieu. Suas idéias sobrevivem e funcionam à esquerda e à direita, traço que talvez garanta seu lugar como pensador universal."

 

"O intelectual que usou a sociologia como instrumento de combate", copyright Folha de S. Paulo, 26/01/02

"Ao longo das últimas quatro décadas, Pierre Bourdieu construiu, de forma consistente e instigante, um dos corpos de teoria e pesquisa sociológica mais férteis do pós-guerra.

Uma das raízes da força de sua obra provém de uma articulada integração entre teoria e pesquisa empírica. Por um lado, incorporou em seus trabalhos, de maneira heterodoxa e criativa, uma multiplicidade de fontes teóricas tais como Marx, Weber, Durkheim, Gaston Bachelard, Thorsten Veblen, Lévi-Strauss, John Austin, bem como Norbert Elias, Erwing Goffman, Ludwig Wittgenstein etc. Por outro, tratou empiricamente uma enorme diversidade de temas: camponês, moda, arte, desemprego, escola, direito, ciência, literatura, religião, classe social, política, esporte, intelectuais, televisão, Estado, dominação masculina etc.

Abordou esses temas de diferentes procedimentos, indo da descrição etnográfica a mais detalhada possível aos argumentos teóricos e filosóficos os mais abstratos, passando também por modelos estatísticos.

É a partir desse incessante confronto entre atividade teórica e pesquisa empírica que surge a profusão de conceitos produzidos pela sua obra, tais como habitus, campo, prática, illusio doxa, hexis corporal, distinção social, violência simbólica, capital cultural e vários outros que representaram contribuições valiosas para a renovação da análise sociológica, de um modo geral, e particularmente para enfrentar as complexas mediações que permeiam as relações entre ator e estrutura. Sua obra procurou transcender determinadas oposições que por um longo período minaram a ciência social por dentro, como a separação entre análise do simbólico e material, o divórcio entre teoria e pesquisa empírica etc.

A sua sociologia foi construída num denso debate com as heranças do marxismo, do funcionalismo, estruturalismo, fenomenologia e interacionismo simbólico. Procurou de forma obstinada reintroduzir o ator no centro de suas análises, buscando distanciar-se de um determinismo social e de um voluntarismo individualista. Não foi tarefa fácil, essa empreitada consumiu o melhor de suas energias. Recusou enfaticamente a oposição canônica entre indivíduo e sociedade, que sempre lhe pareceu absurda uma vez que o social encontra-se internalizado nos indivíduos, impregnando as suas estruturas mentais, e em larga medida orientando suas formas de sentir e agir.

Desrespeitou profundamente as fronteiras disciplinares e as divisões que tendem a existir no interior das ciências sociais. Nesse sentido a sua influência se estendeu em várias disciplinas nas ciências humanas: sociologia, antropologia, educação, história, linguística, estudos literários, ciência política etc. Sempre concebeu a sociologia como um projeto científico, como uma construção intelectual em constante oposição ao saber espontâneo.

Ao longo de sua vida, inseriu-se cada vez mais no debate público sem se deixar cair na tentação do profetismo social. Dessa forma, a sociologia possui a tarefa de desvendar as modalidades de efetuação das diferentes formas de dominação que se encontram escondidas nos diversos mundos sociais, constituindo-se, portanto, em poderosa arma de liberação pessoal e social.

Uma vez ultrapassada as dificuldades iniciais colocadas pela compreensão da leitura dos seus trabalhos, o leitor tem a sensação de estar penetrando no ritmo eletrizante que caracteriza os romances de Balzac. A referência aqui não é casual, uma vez que os escritos de Bourdieu evocam determinados dramas existenciais vivenciados pelos personagens de Balzac, como Ratignac ou Lucien de Rubempré, que tende a colocar em relevo como a aquisição de um forte capital social e/ou cultural pode encobrir a precariedade da deficiência da posse de um capital econômico original.

Bourdieu foi a expressão viva do que define um grande intelectual, a crítica das idéias prontas, a liberdade em relação aos poderes, a demolição das alternativas simplistas, problemas a serem tratados. Fez da sociologia uma arma de combate, um instrumento de desmistificação das diferentes formas que assume o processo de dominação. Morreu em plena fase de maturidade intelectual e num momento de grande exposição e participação no debate público. Uma perda irreparável. Tinha muito ainda a nos dizer. Nos legou uma obra instigante que por um longo período continuará a alimentar o debate e a atividade sociológica contemporânea e, certamente, pelo seu vigor intelectual será capaz de atrair a atenção das novas gerações de cientistas sociais. (Carlos Benedito Martins é professor de sociologia da Universidade de Brasília. Foi pesquisador-visitante, em diversas ocasiões, do Centro de Sociologia Européia, criado e dirigido por Pierre Bourdieu)"