Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Enfrentar para mudar

Outros motivos
“O médico suspendeu devido à hepatite medicamentosa.” “Bebi demais.”

 

Dos 66 entrevistados que deixaram de tomar, no mínimo, uma dose de anti-retrovirais nos últimos 30 dias, muitos apresentaram vários motivos. Daí não somar 100%. As porcentagens foram arredondadas.

 

Conceição Lemes

É preciso reverter rapidamente a baixa fidelidade à terapia anti-retroviral. Por isso, soropositivos e profissionais de saúde já se mobilizam para vencer esse novo inimigo. Troca de informações, melhor relação médico-paciente e esquemas de tratamento mais adequados aos estilos de vida são alguns dos recursos

 

Após entrevistar 100 pessoas vivendo com HIV ou Aids, ficam estas sete certezas:

1?) A epidemia atinge hoje crianças, jovens, homens e mulheres, que podem ser nossos filhos, irmãos, primos, pais, tios e até avós.

2?) Todos lutam pela vida.

3?) Quem não se cuida direito, não é simplesmente porque não quer.

4?) Entre os mais carentes, há quem faça o tratamento rigorosamente. Assim como entre os de nível universitário, há quem seja irregular.

5?) O que mais dificulta a adesão é a baixa escolaridade. Também o uso de drogas, os distúrbios psiquiátricos e as dificuldades emocionais de uma parte dos pacientes.

6?) No fundo, todos gostariam de seguir corretamente as recomendações.

7?) A baixa adesão tem que ser revertida rápido.

“De imediato, a irregularidade já faz com que mais vírus sejam produzidos”, afirma o infectologista João Silva de Mendonça. Veja só. A cada 24 horas, são fabricados cerca de 1 bilhão de HIV. O que os anti-retrovirais fazem é bloquear esse processo em diferentes pontos. Por isso, a quantidade de HIV sobe rápido quando se deixa de usá-los. E, quanto mais isso acontece, mais HIV é produzido. Aumenta, assim, a chance de surgir uma cepa mutante resistente e o tratamento fracassar. Aí, o jeito é substituir e/ou ampliar o número de drogas. “Só que as opções podem se esgotar”, avisa o médico Celso Ferreira Ramos-Filho.

Tem mais: esses vírus já resistentes aos remédios tendem pouco a pouco a ser transmitidos para outras pessoas, espalhando-se na população. “E, aí, há o risco de deixarmos de ter drogas eficazes contra o HIV”, chama a atenção o dr. Drauzio Varella. O dr. Caio Rosenthal aproveita a deixa e antecipa-se aos que pensam que o problema é dos outros: “Quem não faz sexo seguro arrisca-se a ver o HIV, inclusive o resistente aos remédios, explodir no próprio quintal”.

 

Cesta básica e busca ativa

A preocupação com a não-adesão ao tratamento é tamanha que acaba de ser criada a Associação Lutando para Viver dos Amigos do Hospital Evandro Chagas. “O nosso objetivo é trocar idéias sobre os remédios, mas também levantar fundos para a cesta básica”, revela uma de suas líderes, a disciplinadíssima no tratamento Maria do Perpétuo Socorro Amorim dos Santos, 42 anos. Ela mesmo justifica: “Há colegas que não têm o que comer, e a alimentação é fundamental para a continuidade do tratamento”.

Por sinal, no Evandro Chagas, uma instituição de pesquisa da Fiocruz, há profissionais o tempo inteiro em condições de esclarecer qualquer dúvida dos pacientes, e um verdadeiro cerco é feito pelas equipes de farmácia e de enfermagem. “Em levantamento preliminar com 41 dos nossos 410 HIV-positivos, 70% usam corretamente a medicação”, anima-se a chefe do ambulatório, a enfermeira Elaine Cascardo. Agora, a equipe tem um projeto para ir também à casa dos pacientes. É a chamada busca ativa ou tratamento supervisionado, que reduziu vertiginosamente nos Estados Unidos a tuberculose multirresistente às medicações.

“Aqui, no Emílio Ribas, nós também planejamos mandar uma equipe de saúde à casa dos que faltam às consultas, não pegam o remédio no dia certo ou dos que nos levem a suspeitar de não-adesão”, revela o diretor do hospital, o infectologista Guido Levi. Beneficia o doente, assim como toda a comunidade, já que menos vírus resistentes estarão circulando.

 

Adesão também é prevenção

Em vários serviços já está em prática a educação nas salas de espera. Isso sem falar que elas próprias já são uma aula exemplar de reforço. “O estado deplorável de quem se trata irregularmente estimula aquele que se cuida a continuar fazendo o tratamento direito. Este, por sua vez, mostra ser
possível ficar bem”, observa a infectologista Cydia de Souza.

A fluminense L. I., 24 anos, dá-lhe razão. No início de 1997, seu marido quase “desapareceu” de tão magro que ficou. Essa lembrança associada à recuperação obtida com os “coquetéis” encorajam-na a tomá-los todos os dias às 6, 14 e 22 horas. Para não perder a hora, coloca três despertadores para tocar ao mesmo tempo, até nos fins de semana. E nunca sai de casa sem as doses do dia, que carrega num pequeno porta-jóias.

“Na prática, a adesão é um processo de construção gradual e demorado”, assegura José Stalin Pedrosa, que trabalha para a Unesco como consultor de educação e de saúde. Para atingi-la, não adianta pescar com rede. É preciso de anzol para chegar aos mais diferentes grupos da sociedade. E essa tarefa é também prevenção. Primeiro, porque a adesão evita que os HIV-positivos progridam para a Aids. Segundo, porque contribui para diminuir o aparecimento de cepas resistentes de HIV. Por isso, o infectologista Breno Riegel Santos é enfático: “A questão deve ser agenda obrigatória das organizações não-governamentais atuando em Aids”.

 

Dicas para enfrentar o dia-a-dia

“Os próprios médicos têm que gastar mais tempo informando os pacientes numa linguagem acessível”, defende a infectologista Regina Cotrim. Assim como deixar abertura para que contem as falhas sem medo de represálias. A médica Márcia Rachid, da Câmara Técnica de Aids do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, preconiza: “A conversa tem que ser com paciência para se encontrar esquemas que se encaixem no estilo de vida de cada um”. Por exemplo, quem usa indinavir e está no restaurante no momento da medicação, uma alternativa é comer salada de verduras ou legumes sem azeite. Quem viaja e usa ritonavir pode recorrer a uma pequena embalagem de isopor. Caixinhas de remédio com timer ajudam a lembrar a hora.

Por sinal, não há regra estabelecida sobre até quanto tempo pode-se atrasar nas tomadas dos anti-retrovirais. “Se está na primeira metade do intervalo, o paciente deve tomá-los tão logo lembre”, recomenda o infectologista João Silva de Mendonça. Supondo que o intervalo seja de oito horas, o limite são as quatro primeiras. Uma vez ultrapassadas, propõe esperar a próxima dose. É melhor do que ficar remarcando horários, o que torna a vida impraticável. “Mas isso só uma vez ou outra”, acautela.

É que não há estudo mostrando o quanto é possível falhar nos “coquetéis” sem ter problema. Sabe-se que os anti-retrovirais, quanto mais próximos dos níveis ideais no sangue, maior a eficácia e menor a possibilidade de resistência. Está comprovado também que, mesmo tratando-se com rigor, há pacientes nos quais o tratamento não funciona, porque os vírus se tornam resistentes aos diversos anti-retrovirais. “Na verdade, usamos vários medicamentos porque não temos ainda um supereficaz”, garante Ramos-Filho. “Precisamos urgentemente de esquemas mais simples, de preferência uma vez por dia. Do contrário, a longo prazo, os pacientes não vão agüentar.”

 

À risca, sem tréguas ao inimigo

Como se vê, moderação, cautela e mais realismo substituem a euforia gerada em 1996 na 11? Conferência Internacional de Aids, em Vancouver, no Canadá, quando o cientista David Ho pioneiramente anunciou ao mundo os benefícios dos “coquetéis”. Chinês, naturalizado americano, Ho foi enfático na receita para aniquilar o inimigo: bater cedo e forte com três
anti-retrovirais, entre os quais sempre um inibidor da protease. “Continuo achando que é a melhor estratégia: começar com três drogas, incluindo um inibidor da protease, logo que é feito o diagnóstico, qualquer que seja a carga viral”, afirma o infectologista Artur Timerman.

As sociedades Internacional e Americana de Aids defendem o mesmo. A Britânica propõe começar com dois ou três
anti-retrovirais, dependendo da situação. Posição similiar à do Consenso Brasileiro sobre Terapia Anti-retroviral de 1997, do Ministério da Saúde. A proposta para 1998 é um pouco diferente: a decisão de indicar os “coquetéis” baseia-se na combinação da contagem das células CD4 e da quantidade de HIV de cada paciente. Por exemplo:
350 a 500 de linfócitos CD4 e carga viral abaixo de 10 mil cópias de HIV, dois
anti-retrovirais da família dos análogos nucleosídeos. Já para o mesmo nível de CD4, mas 10 mil a 50 mil cópias de HIV, pode-se começar com dois análogos nucleosídeos e um não-análogo de nucleosídeo. “Os inibidores da protease devem ser deixados para os pacientes com alto risco de progressão da doença. Fica como ás na manga”, sustenta o infectologista Mauro Schechter. “Os inibidores da protease só têm eficácia comprovada nas fases avançadas.”

Quanto à hora de iniciar o tratamento, o Consenso Brasileiro não o recomenda indiscriminadamente a todos HIV-positivos. “Como não há perspectiva de cura com as drogas disponíveis, talvez seja mais prudente retardar um pouco o início do tratamento”, pondera o dr. Mendonça. A própria dificuldade de adesão aos “coquetéis” reforça essa posição.

Com tanta complexidade e novidade a todo o instante, o HIV não dá mais para ser tratado por clínicos em geral. “É para especialista mesmo”, afirma o dr. Ramos-Filho. E boas novas estão por vir: as indústrias farmacêuticas pesquisam tratamentos simplificados e drogas muitíssimo mais potentes. Tanto que alguns especialistas arriscam: talvez daqui a dois ou três anos se possa voltar a cogitar a cura da Aids. Renovação de esperança para quem já vive com HIV ou Aids. Também estímulo para continuar seguindo o tratamento à risca, sem tréguas ao inimigo. Para o seu próprio bem e de toda a comunidade.

 

Muita disciplina, determinação e vontade de viver. Esses são traços comuns aos 27% dos HIV-positivos entrevistados que não deixaram de tomar sequer uma dose dos “coquetéis” no último mês. Nem mesmo nos fins de semana.

“Diariamente, tomo dez comprimidos divididos em cinco doses. Faço isso até nas quartas-feiras, quando vou ao forró à noite, na Urca. Aí, às sete e meia, janto. Às 10, tomo a minha última dose. Às 11, já estou dançando e bebendo a minha caipivodca, que adoro.
Aos sábados e domingos, dificilmente rejeito convites para almoços fora de casa. Tenho apenas um cuidado: quando percebo que a comida será servida após o meio-dia, chego mais tarde, pois às 2 tenho que estar em jejum para uma das medicações. Por que tanto rigor? Depois de duas internações durante 27 dias, estou viva e a minha carga de HIV, que chegou a 471 mil cópias por mililitro de sangue, está hoje indetectável.”
Maria do Perpétuo Socorro Amorim dos Santos, 42 anos,
maranhense, radicada no Rio, descobriu a soropositividade no final de 1992

 

“Só soube que era HIV-positivo no começo de 1997, quando fui internado com tuberculose e 39 quilos. Era osso puro, nem sentar conseguia. Tanto que fiquei seis meses de licença do emprego. Hoje, com o peso normal de 60 quilos, estou trabalhando normalmente. Nada me afasta dos medicamentos, nem mesmo os congestionamentos da Avenida Brasil. Antes de sair do ponto, encho um pequeno frasco com água e deixo o comprimido ficar dissolvendo. Na hora, é só chacoalhar bem e tomar. Posso às vezes atrasar um pouco o horário, mas pular a dose, nunca. Com a ajuda do ?coquetel? e de Deus, vou vencer.”
A. T., 48 anos,
motorista de ônibus de turismo na Baixada Fluminense

 

“Não importa se estou de férias, viajando a negócios ou num encontro de trabalho. Onde quer que vá, carrego na pasta os meus anti-retrovirais. Há quase um ano, tomo todos os dias 21 cápsulas. Porém, como só a minha família sabe que sou soropositivo, uso alguns truques para disfarçar a situação. Por exemplo, se tenho reunião importante, programo o meu pager para tocar na hora da medicação. Aí, saio para telefonar e tomo. Quando estou viajando, coloco os remédios em frascos de vitaminas. Fazer esse sacrifício é o preço para eu levar uma vida normal. E que vou continuar pagando, sim, para manter-me bem.”
S. O., 39 anos,
executivo de uma firma de engenharia em São Paulo

 

“Faça sol, faça chuva, não largo os remédios. Como me lembro dos horários? Embora esteja tomando há apenas cinco meses, já pareço rato de laboratório. Na hora, o meu próprio corpo avisa. Quando saio, coloco as doses do dia num porta-remédios. Agora, que enche, enche. Mas quero viver!”
A. L., 35 anos,
professor paulistano desempregado

 

Em 1985, para cada 25 casos de Aids diagnosticados em homens no Brasil, havia uma mulher. Desde 1997, a proporção já é de dois para um. “A tendência é se igualar”, prevê o dr. Euclides Castilho, coordenador substituto do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde.

Basta percorrer os ambulatórios dos serviços públicos para ter certeza de que isso ocorrerá. No Centro Municipal de Saúde Píndaro de Carvalho Rodrigues, na Gávea, no Rio de Janeiro, a maioria já é mulher, e esposa. Para a mesma direção inclina-se a população atendida no Hospital Geral Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “E, quando o parceiro é também HIV-positivo e não faz o tratamento direito, é comum elas o ?dedarem? para mim”, revela o infectologista Robisney Avelar, chefe do serviço de DST/Aids do hospital.

“É para o bem dele”, confirma a dona de casa S. L, 33 anos, cujo marido infectou-se num curso de laboratorista. O vigia N. L, 23, leva sempre para o serviço uma caixinha de remédios com as doses do dia, cuidadosamente separadas por L. I, 23. Ele confessa: “Minha mulher me fiscaliza o tempo todo. Se não fosse ela, não faria 90% do tratamento”. A gaúcha P. M., 30, radicada em São Paulo, toma o remédio junto com o marido. “É o jeito. Ele já ficou 20 dias sem usar”, conta. A preocupação de E. J., 28 anos, é com a filha, de 3. Ela tem tanto medo de perder o horário da medicação da menina que,
vire-e-mexe, esquece o seu.

“Realmente, a mulher trata do parceiro, do eventual filho contaminado e, às vezes, deixa até de se cuidar direito”, verifica o médico José Henrique Pilotto, do Hospital Evandro Chagas, da Fiocruz, no Rio. “É a dupla jornada também no tratamento.”

 

Se você chegar hoje aos serviços públicos que atendem HIV-positivos e perguntar se alguém toma o branquinho, o grandão ruim que dissolve na água, o marronzinho, o balãozinho, o horrível de tomar, o da geladeira, imediatamente escutará vários sim. Agora, se indagar sobre o AZT, ddI, d4T, 3TC, indinavir, ritonavir ou outra droga do “coquetel”, a chance maior é de ouvir um não.

“Em geral, nossos pacientes são carentes, com freqüência analfabetos”, observa a infectologista Rosana Del Bianco, do Centro de Referência de DST/Aids da Freguesia do Ó, que cobre uma área de 1 milhão de pessoas na Zona Norte de São Paulo, em plena rota do tráfico de drogas. “Atendemos principalmente os moradores das favelas da Rocinha e do Vidigal”, informa Cristina Hofer, infectologista do Centro Municipal de Saúde Píndaro Rodrigues de Carvalho, no Rio.

Além dos nomes dos remédios e das posologias, suas receitas são acompanhadas de rústicos desenhos de sol, lua, relógios, talheres, pratos, copos, que traduzem os horários, as restrições alimentares e o número de comprimidos. “Após pegarem os remédios na farmácia, faço questão de ensinar tudo de novo”, conta a dra. Hofer. No posto da Freguesia do Ó, todos os funcionários ajudam na educação. A enfermagem reforça o uso dos medicamentos, a equipe da farmácia chega a grudar comprimidos em cartelas para servir de “cola”. “É uma maneira de driblarmos o analfabetismo”, afirma a dra. Del Bianco.

 

Todos os médicos que cuidam de HIV/Aids no Brasil já têm alguns pacientes na seguinte situação: seguem o tratamento à risca, possuem alta carga de vírus resistentes a várias drogas disponíveis mas não apresentam infecções graves. E, como não há outras opções, as medicações estão sendo mantidas e/ou ampliadas, numa tentativa de, pelo menos, manter o HIV permanentemente sob pressão. “Não podemos cruzar os braços quando o tratamento falha”, afirma o infectologista Guido Levi.

Duas evidências apóiam essa conduta. Primeira: tratando esse paciente com quatro ou cinco drogas, mesmo que os seus vírus sejam resistentes a cada uma delas individualmente, consegue-se reduzir em parte a quantidade de HIV. Segunda: talvez devido às mutações sofridas, os vírus persistentes são aparentemente menos agressivos nas pessoas tratadas do que nas não-tratadas com a mesma carga viral. “Uma das hipóteses é que a pressão ecológica constante sobre os vírus mutantes talvez faça com que percam a virulência, não destruindo tanto os linfócitos CD4”, cogita o médico Drauzio Varella.

Segundo o infectologista Celso Ferreira Ramos-Filho, outra possibilidade é a produção de cópias incompetentes de vírus, que não são diferenciadas das eficientes nos exames atuais. “Talvez por isso, apesar da alta carga de HIV, alguns pacientes permaneçam bem, sem os sintomas da Aids”, diz.