Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entre a ficção e a realidade

GUERRA NO AFEGANISTÃO

Diego Bonomo, Geraldo Zahran, Luciana Paixão (*)

"Quais as chances de a ficção poder continuar competindo com as histórias da vida real?", indaga Neal Gabler na introdução de sua obra Vida, O Filme [pág. 11]. Uma resposta coerente, tendo em vista a tragédia de 11 de setembro, seria: "Nenhuma". De fato, o impacto causado foi suficiente para não deixar qualquer dúvida sobre a prevalência da realidade sob a ficção. Aparentemente tal constatação pode parecer paradoxal, já que a reação de muitos espectadores ? pois grande parte da população não só americana, mas mundial, assistia ao desfecho da crise pela televisão ? foi a de uma confusão, pois muitos não acreditaram que as torres gêmeas do World Trade Center de Nova York pudessem estar em chamas, que tudo não passava de um mero filme. Garbler apontaria neste fenômeno a própria fusão entre a vida e o filme, isto é, o real e o ficcional, concluindo provavelmente que a utilização de técnicas teatrais até mesmo na consecução de um ato terrorista ? algo presente, ou até mesmo essencial, mas em escala muitíssimo menor ? havia transformado a tragédia em entretenimento, a priori. Entretanto, parece haver uma certa "falsificação" ou "artificialidade" na simbologia da tragédia: as torres em chamas, signo representante de uma América derrotada, de fato, não levaram o espectador a uma associação imediata com a derrota, pelo contrário, a reação foi talvez muito maior no sentido de apreender o significado desta "falsificação": o de que a América não é invulnerável. Tal constatação parece ter aberto uma brecha entre a realidade e a ficção: por mais paradoxal que possa parecer, o espectador acabou tomando conhecimento da realidade pelo absurdo desta, de uma potencial ficção. O real rompeu com a ficção, e o real é o horror.

Show da Vida ? A guerra como telenovela

O enredo não estava pronto: esta talvez seja a diferença fundamental entre a Guerra do Golfo e a guerra atual, travada no Afeganistão. Diferentemente do que ocorreu durante a campanha Tempestade do Deserto, os atores desta vez não estavam no palco, e o cenário tão pouco estava pronto, apesar de o vilão já estar devidamente a postos. A guerra desencadeada pelos EUA assume, tal qual o atentado, ao menos um "ar" de realidade, isto é, o espectador não apenas assiste às labaredas coloridas percorrendo os céus da capital, mas sente ? e aqui o sentir é fundamental ? que de fato não se trata de espetáculo, mas de realidade. A Guerra do Golfo travou-se em grande parte para enterrar o velho fantasma vietnamita que rondava as Forças Armadas e a opinião pública americanas; a guerra no Afeganistão, pelo contrário, trouxe o fantasma de volta, dessa vez ampliado pela experiência soviética ? seu Vietnã particular.

Entretanto, há uma tensão constante entre a ficção e a realidade. A guerra, a despeito de sua crueldade sentida previamente, mostra-se através da mídia, principalmente da televisão, não como realidade, mas como uma obra ficcional tradicional: uma telenovela. Apesar do efeito surpresa utilizado pelos terroristas, a mídia americana conseguiu, juntamente com o governo, estabelecer minimamente um enredo, com início, meio e um fim, ainda não definido. A tragédia de 11 de setembro aparece como o início óbvio da trama, seguida de um previsível desfecho inicial ? a preparação e a deflagração da guerra ? ao qual se somarão, sucessivamente, cenas dos "próximos capítulos" ainda a definir, já que segundo o próprio presidente George W. Bush o "Afeganistão é apenas o começo". Um fato representativo desta constatação é a própria programação da teve a cabo americana CNN: cada bloco deste enredo é enunciado por um título sugestivo tal como Ato de Guerra (Act of War), América sob Ataque (America Under Attack), América em Guerra (America at War), América Contra-Ataca (America Strikes Back), e finalmente Guerra Contra o Terror (War Against Terror); além disso, intercalam-se durante os blocos repetidas cenas do "núcleo americano", composto por parentes das vítimas de Nova York, Washington D.C. e Pensilvânia ? América em Casa (America at Home), como o chama a CNN ?, e do &quoquot;núcleo afegão", cujas personagens amontoam-se como selvagens em torno de Osama bin Laden e do mulá Omar ? identificado por Linhas de Frente (Front Lines).

Não obstante toda a edição do conflito realizada pela mídia, esta telenovela encaixa-se ainda na tensão presente entre a realidade e a ficção. Tem-se uma novela sobre a realidade, mas que, apesar de constituir-se como entretenimento, não possui um elemento fundamental deste: o "escapismo" [Neal Gabler in "Vida, O Filme", pag 13]. Busca-se o entretenimento como forma de "escape" dos problemas diários da vida, e chega-se mesmo a transformar a própria vida em entretenimento ? um "escape" contínuo ?, mas o que se tem nessa novela sobre a realidade, a realidade da guerra, nada mais é do que o próprio horror do qual se quer escapar [Não se deve tentar aqui praticar a futurologia, mas há evidencias suficientes de que uma guerra deste tipo (de atrito) leva, inevitavelmente, a um desgaste moral e psicológico, já visível nos bombardeios dos armazéns e escritórios da Cruz Vermelha, e na morte de quatro "blue helmets" da ONU que trabalhavam com o nobre fim de desarmamento das minas terrestres (de-mining). O horror presente na telenovela sobre o real apenas parece caminhar para uma intensificação.], não podendo, no dizer de Neal Gabler, "escapar da vida para a vida" [Neal Gabler in "Vida, O Filme", pag 14]. Em suma, não há "escape" para o real e nem mesmo para o ficcional, pois este também é horror.

Indução de Sentido ? O papel da mídia na transmissão da guerra

O horror desencadeado pela tragédia de 11 de setembro legou à América e a seu povo um novo sentido de missão, fazendo ressurgir no âmago de seu governo e do antigo protestantismo o, também antigo, ideal do "Destino Manifesto". Primeiramente, deveríamos (ou devemos?) buscar uma explicação para a tragédia, respondendo à questão "Por quê?", ou como alguns formularam, "Por que eles nos odeiam?" [Justin Podur, "Why do they hate us", in Z Magazine. Stephen R. Shalom, "Why do ?they? hate us?", in Z Magazine]. De fato, tais analistas formularam uma extensa relação de intervenções políticas, militares e econômicas perpetradas pelos EUA em mais de 110 anos, passando pela Guerra de Independência de Cuba, pela Partilha da Palestina, até a atual campanha no Afeganistão [Zoltan Grossman, "A century of U.S. military interventions: From Wounded Knee to Afghanistan", in Z Magazine], suficientes para explicar qualquer sentimento antiamericano. No entanto, o sentido buscado pelos próprios americanos não segue por essa via "racionalista", mas repousa em um sentimento ambíguo de patriotismo e fervor religioso. O "choque de civilizações" constitui-se então como a fachada "racional" do verdadeiro sentido, buscado não somente pelo nova-iorquino cosmopolita como pelo agricultor texano, fazendo parte inclusive da mensagem governamental: a Cruzada.

Nos dias seguintes a tragédia, o presidente George W. Bush proclamou uma "Cruzada" em defesa da "liberdade" e dos "valores da civilização ocidental". Tal mensagem encontrou nos corações e mentes de muitos americanos um eco, cujo reflexo foi a onda de violência contra os indivíduos de origem árabe, principalmente. Em vista de interesses estratégicos, isto é, na formatação de uma aliança mundial contra o terrorismo, abrangendo países árabes e de maioria islâmica ? Egito, Jordânia, Paquistão, entre outros -, o governo substituiu a mensagem da "Cruzada" pela "Guerra ao Terrorismo", ressaltando que a atual campanha não se volta contra o Islã, mas contra aqueles que deturpam esta fé. Infelizmente, o que foi dito já está devidamente registrado, fundamentalmente pela mídia, não só americana.

A autocensura, o apoio velado à restrição das liberdades civis e até mesmo a discussão sobre a utilização da tortura no "destravamento" de uma investigação emperrada são sinais de que a mídia incorporou a "Cruzada" e esqueceu-se de seu papel fundamental de transmissão da informação e crítica. Ao assumir um papel que não lhe pertence, os meios de comunicação não somente transformaram-se em propagandistas e porta-vozes do governo, como também cúmplices do terrorismo. A mídia tornou-se, de fato, uma mercadora do medo ? a cobertura dos casos de antraz ressalta a desproporcionalidade entre o risco causado pela bactéria, a real disseminação desta, e o número de vítimas. [Robert J. Samuelson, "Obsessão pode tornar a mídia cúmplice do terror", in O Estado de S. Paulo, Internacional, 13 de novembro de 2001.]

O contraponto a uma mídia "obsessiva" seria um "segundo olhar" sobre o conflito atual, atualmente incorporado e defendido pela emissora do Catar, a al-Jazira, ou a "CNN árabe". O trabalho de desconstrução do consenso em torno do apoio à campanha militar, em evidente desalinho ao trabalho de "manufatura do consenso" [Pesquisa realizada em 37 países pelo Gallup International revelou que apenas nos EUA, em Israel e na Índia a maioria da população apóia a campanha militar em alternativa à extradição e à abertura de processo contra os suspeitos dos ataques terroristas de 11 de setembro. David Miller, "World opinion opposes the attack on Afghanistan", in Z Magazine.] por parte da mídia e do governo americano, levou a al-Jazira a ser "erroneamente" bombardeada ? paradoxalmente, o escritório da emissora em Cabul localizava-se em bairro residencial, isto é, fora da área de atuação dos caças-bombardeios. Afinal, que proclama o terror como arma?

De Bagdá a Cabul ? O que a guerra no Afeganistão trouxe de novo?

Como foi constatado anteriormente, a diferença fundamental entre a Guerra do Golfo e a atual guerra no Afeganistão resume-se à falta de um enredo previamente estudado. Se a primeira se pautava em um "entretenimento das bombas", com direito a show pirotécnico e retransmissão constante por Peter Arnett "from CNN, Bagdah", a segunda parece ao espectador uma "guerra nas sombras". De fato, a guerra não pode ser vista ou não quer ser vista? Ambos. Por um lado tanto o governo americano como a mídia procuram levar ao leitor o filme de uma guerra real, não uma guerra real.

Por outro, tanto um como o outro não dispõem de meios suficientes para uma verdadeira perscrutação do conflito, e isso se deve mesmo à própria natureza da campanha. A despeito de tudo, um fato parece unir os dois conflitos: laços de família ? Bush pai instrumentalizou uma guerra contra Saddam Hussein em busca da definitiva eliminação do fantasma vietnamita e do reposicionamento dos EUA como superpotência hegemônica; já Bush filho capitalizou a tragédia no intuito de "manufaturar o consenso" em torno de sua liderança e apagar definitivamente as marcas de uma eleição duvidosa, em meios e fins.

Paranóia ou mistificação? ? Um novo inimigo para a América

O "Império do Mal" desfez-se há quase 10 anos, e a América tornou-se neste tempo uma nau (ou talvez um transatlântico?) à deriva. Seus valores só encontram plena realização na "Missão", e esta, no mais das vezes, equivale à destruição de um inimigo fundamental, mesmo essencial. Sem soviéticos nem chineses, os EUA partiram em busca de um novo inimigo, encontrando-o na figura já célebre de Osama bin Laden.

A retomada da paranóia agora parece evidente: o impacto dos ataques de 11 de setembro desencadeou um movimento avassalador de criação de mitos e de alimentação de uma paranóia em muito semelhante àquela do tempo do macarthismo. O reino do absurdo parece mais real do que nunca, e suas expressões são visíveis e identificáveis: a autocensura da mídia, a restrição às liberdades civis, a discussão sobre tortura, o aumento da discriminação racial e o já sensível recrudescimento e aumento do apoio à extrema direita. Finalmente a América encontrou o Mal: 10 anos de sofrimento valeram a pena, pois a batalha que agora se apresenta parece duradoura e interessante (entretém!). Afinal o "Afeganistão é apenas o começo".

(*) Grupo de estudos do curso de Relações Internacionais (3o Ano/6o Semestre, Noturno) da PUC-SP

Bibliografia

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