Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entre o canudo e a carteirinha

DIPLOMA EM XEQUE

Luiz Martins (*)

No Brasil, diploma sempre foi valorizado. Qualquer diploma, a começar pelo de datilografia, hoje substituído pelo do curso de informática. Diplomas são emoldurados e ostentados, em casa ou no escritório. A busca do diploma prossegue, invicta, porque o diploma ainda faz parte dos símbolos importantes da cultura brasileira. É preciso, no entanto, ressaltar a diferença entre diploma e canudo e entre escolas de boa qualidade e as fábricas de títulos, estabelecimentos metaleiros, desses que não vivem para a educação, mas da educação, fazendo dela um simples negócio.

No Brasil de hoje, entretanto, um diploma está sendo bombardeado, o de jornalista. Ora, numa sociedade que valoriza diplomas, por que se vai tornando vitoriosa a campanha contra a exigência de diploma para o registro profissional de jornalista? Há razões manifestas e razões latentes para que se queira derrubar a tênue regulamentação profissional do exercício do jornalismo. Frágil porque o diploma era um dos poucos filtros de controle nesse mercado de trabalho. É preciso, no entanto, não ignorar situações excepcionais que justificariam a presença de outros profissionais ou de pessoas notáveis nas redações e na direção de publicações.

O Brasil é o único país que exige diploma de curso superior para o registro profissional de jornalista. Este é o mais forte argumento contrário, mas é também uma falácia, porque o Brasil é o único do mundo numa série de coisas, inclusive, negativas. Qual é o problema de o Brasil apresentar uma singularidade nesse aspecto? Razão latente: quanto mais oferta de mão-de-obra e ainda mais sem qualquer regulamentação, o que significa exigências e fiscalizações, melhor para quem emprega. Salários cairão e demissões e contratações poderão ser feitas sem que se tenha de dar satisfação a qualquer sindicato, hoje, a instância de homologação das rescisões contratuais. Razão dialética: nem tanto ao mar nem tanto à terra. Cerceia-se, por exemplo, o direito de o empregador ter no seu quadro profissional pessoas altamente qualificadas, ainda que não formadas em Jornalismo.

Pergunta: qual é o problema de um grande físico criar e editar uma revista de popularização da ciência, que acabará por empregar jornalistas na publicação? Acaso algum jornalista, só pelo fato de ser jornalista, estaria mais apto do que ele? Terá uma revista científica de contratar um editor-jornalista apenas para satisfazer a exigência de um jornalista-responsável, se o responsável de fato pela publicação for, digamos, o físico? Configurada semelhante situação, estaria sendo contratado um número de registro, e não um profissional, como ocorre com relação aos químicos responsáveis por farmácias de municípios diferentes que recebem salário apenas para emprestar o nome, mesmo que não tenham o dom da onipresença. Cumpre-se a lei, mas ao custo da burla.

No ano passado, uma polêmica mexeu com os ânimos no meio sindical do jornalismo brasiliense: a realização de algumas reportagens para o Correio Braziliense pelo ex-governador do Distrito Federal, o economista Cristovam Buarque. Ora, se era apenas uma série de reportagens, ele podia muito bem fazê-la, até mediante remuneração, já que a legislação permite a figura do colaborador. Mas, e se Cristovam fosse ao Sindicato dos Jornalistas pedir carteirinha de jornalista e, conseqüentemente, autorização para a prática do jornalismo profissional, seria beneficiado? Hoje, sim, porque uma decisão da juíza substituta da 16? Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo, Carla Rister, suspendeu a alínea do Decreto 972/69 (que dispõe sobre a profissão de jornalista), ou seja, aquela referente ao diploma de curso superior reconhecido. Mas, o problema de tal decisão está, injustamente, na abertura de uma profissão a qualquer um. Em vez de regulamentar meritórias exceções, a juíza derrubou 60 anos de regulamentação profissional (31 deles por decreto) e 82 anos de luta pela formação superior em jornalismo.

Ensino reavaliado

A questão do diploma para a prática do jornalismo acabou engendrando radicalismos de todos os lados. A corporação dos próprios jornalistas, embora no estrito cumprimento da lei, em vez de conquistar o direito de regular e regulamentar legalmente as exceções ao diploma, preferiu encastelar-se no clássico argumento da impermeabilidade de outras profissões a incursões externas. Exemplo típico e histórico: advogado podia ser jornalista, mas jornalista não podia ser advogado. Em lugar de atuar para a reformulação da lei, no que ela perdeu em legitimidade, lutou por fazê-la cláusula pétrea. Que problema haveria em conceder uma carteirinha de jornalista-desportivo a um Pelé? Ou, por que um líder comunitário não pode ser responsável por um singelo jornal de bairro, do qual todos os colaboradores participam voluntariamente? Resultado: uma sentença judicial que reduz o jornalismo ao patamar do senso comum, embasada no argumento de que "a profissão de jornalista não requer qualificações profissionais específicas […]", tal como ocorre nas profissões que podem colocar em risco a vida humana ?, mas tão somente uma sólida formação cultural e que, sabiamente ela conclui, não se obtém apenas freqüentando uma faculdade, não obstante ser isto um facilitador.

De fato, não é a assiduidade a uma lista de chamada de uma escola de nível superior que assegura uma boa formação. Ficou implícito, no entanto, no parecer da juíza, que escolas de áreas técnicas previnem quanto à proteção à vida por parte de maus profissionais, o que não é uma inteira verdade. Prédios desabam e pacientes morrem por imperícia de médicos e tratamentos, a despeito das escolas por eles freqüentadas. Não é, portanto, o diploma equivalente garantia de bom preparo. Mas, daí a sentenciar que para o exercício do jornalismo basta uma formação cultural sólida resultante do hábito da leitura e da própria prática profissional decorre um arriscado reducionismo.

A imprensa e o jornalismo são campos de saberes técnicos e sociais que contam com o acúmulo de conhecimentos e literaturas especializadas já há alguns séculos. Inegavelmente, também é um campo no qual pessoas talentosas, mediante condições propícias, podem, pelas vias do autodidatismo e do recrutamento, transformar-se em práticos, o que não significa que este seja o melhor caminho para a formação de um profissional, não só em jornalismo, mas em qualquer área. É desdenhar muito de um curso de quatro anos e de meio século de tradição de escolas de Jornalismo, só no Brasil. No final da década passada, todo o ensino de Comunicação Social, e especialmente o de Jornalismo, foi avaliado e redirecionado com os parâmetros estipulados pelo Ministério da Educação e decorrente Comissão de Especialistas de Ensino, que produziu as Novas Diretrizes para a área e novos Padrões de Qualidade para autorização, reconhecimento e condições de oferta de cursos superiores. Tais exigências determinam o que é o mínimo necessário para um projeto pedagógico, corpo docente, laboratórios, biblioteca, instalações e condições oferecidas aos alunos, entre elas, a de turmas de no máximo 50 alunos por sala.

Fazendo e aprendendo

E por que outros países não exigem diploma para registro profissional de jornalista? Porque encontraram outras formas de regulação e regulamentação, e não porque desvalorizem o diploma; apenas não fizeram dele um pré-requisito universal. Em outros países, as escolas de Jornalismo são bem freqüentadas e jornalistas com formação específica gozam da preferência do mercado de trabalho. Vê-se mais a procedência do diploma e o talento do candidato, sem criar reserva de mercado para diplomados. Houve um período da vida brasileira em que o melhor juízo apontava para a exigência do diploma. É preciso, no entanto, estar aberto à análise de outros procedimentos, como os da França, de Portugal, da Espanha e dos Estados Unidos. Faz-se necessário um amplo estudo técnico e comparativo. Manifestações e notas de protesto têm a sua importância, mas é preciso argumentar tecnicamente.

O jornalismo brasileiro tem-se desenvolvido muito nas últimas cinco décadas, tanto em profissionalismo quanto em organização institucional (Associação Brasileira de Imprensa, Federação Nacional dos Jornalistas e sindicatos afiliados; Associação Brasileira de Jornais; Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão, Associação Nacional de Editores de Revista etc.). Em matéria de produção, editoração e difusão, qualquer leitor assíduo de jornais e revistas e qualquer telespectador atento é testemunha do quanto a imprensa brasileira cresceu, tornou-se mais atraente, abrangente e atuante e do quanto a televisão no Brasil foi capaz de fazer, desde a sua implantação, em 1950.

Ora, o jornalismo adquiriu, portanto, uma complexidade e um requinte técnico que desafiam o amadorismo. No passado, o jornalismo era a segunda profissão de advogados, geralmente, os que não havia exercido a advocacia e a magistratura, ou seja, era um campo que possibilitava facilmente a migração e a improvisação de pessoas formadas em outros campos do saber. Hoje, porém, dificilmente egressos de outros cursos estariam aptos ao exercício do jornalismo, que não se reduz à publicação de artigos e textos. Coloque-se um profissional liberal para editar e editorar uma publicação do seu próprio meio, ou para fazer reportagem e edição de televisão. O resultado seria publicações graficamente mal-elaboradas e telejornais cheios de "desculpem a nossa falha".

Hoje, conseqüentemente, o jornalismo não é uma área de saber tão simplória e tão facilmente domesticável, na base do fazendo e aprendendo (learn by doing). Quanto aos riscos para a vida humana, é preciso argumentar que reportagens irresponsáveis (ainda que por profissionais com formação específica) podem não resultar em óbitos, mas podem arruinar reputações, carreiras, empresas e instituições. E mesmo quatro anos de curso não são suficientes para que todas as bases teóricas e técnicas do jornalismo sejam repassadas aos alunos, por mais que eles estejam atentos e por mais dedicados que sejam os professores, embora tenha-se de admitir que determinadas atividades e funções (são 11 as previstas no Decreto 972/69) não exigiriam tanta carga horária acadêmica (2.770 horas, no mínimo), mas também não são todas as que correspondem à titulação de jornalista.

Conselhos e ritos

Lamentavelmente, quando assistimos no Brasil a um movimento contra o diploma não estamos assistindo a uma mudança de mentalidade com relação ao canudo, mas a um empobrecimento de uma regulamentação. A referida juíza criticou o fato de a regulamentação da profissão de jornalista ter decorrido de decreto expedido em momento de exceção institucional. De fato, era ditadura, era o período da Junta Militar. Mas a regulamentação da profissão do ensino e da prática do jornalismo eram muito mais antigas. E o que o então governo fez não foi, deliberadamente, uma arbitrariedade contra a imprensa e os jornalistas. Não se pode dizer que o decreto possa ser considerado uma das peças do chamado "entulho autoritário". Tratava-se de reivindicação antiga, e não de um favor ou desfavor do regime. Seu atendimento pode ter gênese imperfeita, mas não ilegítima. A meritíssima criticou o poder arbitrário de regulamentar uma profissão por decreto, mas ignorou todo um debate e não promoveu sequer uma audiência entre as partes, quanto mais uma deliberação pública. A Federação Nacional dos Jornalistas, por exemplo, não foi ouvida, nem personalidades da vida acadêmica brasileira, muitas delas, autoras de importantes livros sobre jornalismo.

Com a desregulamentação do diploma de jornalismo para efeitos de registro profissional, quem perde não é só a categoria dos jornalistas, mas a sociedade como um todo, que não contará mais com uma salvaguarda mínima, que se não garante a idoneidade do portador assegura que pelo menos uma formação técnica foi ministrada por cursos superiores sujeitos a fiscalização. É verdade que também perdem terreno as "fábricas de diploma", na medida em que o mercado de trabalho passe a fazer a distinção entre meros balcões de canudos e cursos com permanente avaliação institucional. Perde a população, na medida em que qualquer interessado possa ir a um Sindicato de Jornalistas e se habilitar a uma carteira (válida como identidade em todo território nacional) mediante outros expedientes que não o de uma boa procedência acadêmica. Seria a volta da simples e fútil vaidade provinciana de ter uma credencial de jornalista, por vezes para a obtenção fácil de acesso a espetáculos ou para a simples bisbilhotagem e picaretagens as mais variadas.

A eliminação do diploma como pré-requisito para o exercício do jornalismo certamente tornará mais fácil a ação dos lobbies e interesses que, sempre que possível, plantam "editores" nas redações e subsidiam "repórteres" que não se importam em ganhar mal, pois o "salário" por fora está garantido.

Até agora, apenas a Fenaj está tentando reverter a decisão da juíza de São Paulo, na Justiça e com uma mobilização ainda muito acanhada. A prevalecer a sentença antidiploma, será necessária uma outra conquista em matéria de controle corporativo: a prerrogativa institucional de cassação da carteira de jornalista e do direito de exercer essa profissão em casos de ilícitos e falta de decoro, tal como fazem os conselhos profissionais das áreas de advocacia, medicina, engenharia, arquitetura etc., após ritos de acusação e ampla defesa. Esta seria uma razoável contrapartida.

(*) Jornalista desde 1976; professor da UnB desde 1988, coordenador da linha de pesquisa "Estudos de Jornalismo" do Programa de Mestrado em Comunicação da UnB, coordenador do SOS-Imprensa, integrante da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF; e-mail: <silvalmd@unb.br>