Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entre o jornalismo e a literatura


 

"Este livro vai bem com doces de natal? Duas cadeias de hipermercados acham que não. O editor acha que é censura. O autor, João Ubaldo Ribeiro, diz que ‘quem tem boca diz o que quer’. Ele escreveu o que quis. Pornográfico? Decida o leitor. O romance erótico ‘A Casa dos Budas Ditosos’, do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, que os hipermercados Continente e Jumbo/Pão de Açúcar decidiram não vender em Portugal, está sendo vendido (com o sucesso de uma obra há 30 semanas no topo da lista de ‘best-sellers’) nos hipermercados Continente no Brasil.

O diretor de relações públicas da Sonae admitiu ontem ao Público que a decisão de não vender o livro em Portugal poderá ‘ser revista depois do Natal’. Por parte do Grupo Auchan, que detém os hipermercados Jumbo/Pão de Açúcar, a diretora de Relações Institucionais frisou que a opção de não vender o livro foi ‘uma atitude meramente comercial’ e disse ‘duvidar’ que a situação venha a ser revista.

O que diz o editor

A polêmica foi levantada pela Dom Quixote, a editora portuguesa de Ubaldo Ribeiro, num comunicado enviado para a imprensa sexta-feira passada em que se anunciava que as duas empresas ‘recusaram aceitar a distribuição e a venda do livro’ com o argumento de que ‘ofende a moral pública’. Contatado pelo Público, o editor Nelson de Matos justificou o comunicado com a necessidade de ‘reagir a uma atitude censória que pelo visto persiste na sociedade portuguesa’ e impedir que ‘um dia destes só se divulgue o que possa ser aprovado pelas grandes superfícies’.

Afirmando que ‘do ponto de vista erótico o livro é forte’, Nelson de Matos sublinhou o reconhecimento de que Ubaldo Ribeiro tem sido alvo, nomeadamente em Portugal, onde a sua obra mais emblemática, ‘Viva o Povo Brasileiro!’, está na segunda edição. A expectativa em relação às vendas de ‘A Casa dos Budas Ditosos’ levou a Dom Quixote a imprimir 5000 exemplares para esta primeira edição – o número médio anda pelos 3000 –, em que a capa reproduz o desenho de Gustav Klimt, ‘Nu Sentado com Olhos Fechados’ (uma mulher se masturbando), e a badana cita a definição que a revista Veja deu ao livro: ‘ostensivamente pornográfico’.

Segundo Nelson de Matos, depois da habitual apresentação de um pacote de livros aos hipermercados, os ‘chefes de vendas do Continente e do Pão de Açúcar’ rejeitaram sexta-feira o livro, com o argumento já referido, tendo essa posição sido transmitida verbalmente ao vendedor da Dom Quixote. Ou seja: não há registo escrito do sucedido.

O que dizem os hipermercados

Jorge Oliveira e Sousa, pela Sonae (Continente) – que nunca leu nem viu o livro em questão – negou ao Público que a razão para não comprar o romance tenha sido de ordem moral: ‘Desconhecemos esse argumento em absoluto. A gestora de categoria, em Matosinhos, decidiu, por razões de espaço e comerciais, não comprar esse livro, como acontece com muitos outros. Estamos preparando os produtos para o Natal e o João Ubaldo Ribeiro tem um tipo de escrita muito específico, não é um autor conhecido em Portugal. Nós não somos uma livraria, vendemos sobretudo ‘best-sellers’, e os nossos critérios são os mesmos para livros, bolachas, chocolates.’

Confrontado com a questão de ‘A Casa dos Budas Ditosos’ ser um enorme sucesso no Brasil (a semana passada estava em 2º lugar no ‘top’ dos jornais O Globo e Jornal do Brasil, depois de semanas a fio em 1º lugar), o responsável da Sonae se referiu que ‘quando acabar o Natal, se os nossos clientes pedirem, o livro poderá ser vendido, não vejo qual é o problema’. E acrescentou: ‘Foi uma questão de timings.’

Isabel Megre, pelo Grupo Auchan (Jumbo/Pão de Açúcar), não nega que o argumento moral tenha sido usado: ‘Não sei lhe dizer o que o gestor de produto disse ao editor. Não estava lá. É natural que o argumento moral possa ter sido invocado. Mas não temos de dar nenhuma justificação para o exterior. O editor pode dizer o que quiser: a questão da censura não se coloca em relação a uma entidade privada como a nossa. Compramos os livros que queremos, de acordo com a política definida para todos os produtos. O livro é como outro produto qualquer.’ Sobre se a decisão é definitiva, esta responsável sublinha que ‘não há decisões definitivas’ mas diz ‘duvidar’ que ela venha a ser revista.

O que é o livro

‘A Casa dos Budas Ditosos’ foi escrito em 1998 por encomenda da editora brasileira Objetiva para uma série sobre os sete pecados capitais. A João Ubaldo Ribeiro coube a luxúria. Usando o tradicional artifício literário de dizer ao leitor que o que se segue são as memórias de CLB, uma baiana de 68 anos, residente no Rio de Janeiro, gravadas numa cassete, tal como lhe foram entregues por um desconhecido, João Ubaldo descasca alegremente em 160 páginas as aventuras desta hipotética libertina – que experimenta tudo, do irmão à garota da praia, e todos aos montes, e por toda a parte, de todas as maneiras. (Já agora, registre-se o elogio às ‘bundas’ dos forcados no Campo Pequeno e o reconhecimento de como os genes portugueses contribuíram para a majestade das ‘bundas’ brasileiras…). Está chegando aos 100 mil exemplares vendidos, no Brasil.

O que diz João Ubaldo

Aos 58 anos, este neto e sobrinho de portugueses de Fafe, que viveu um ano em Lisboa, ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, mestre em Ciências Políticas, mas pouco chegado a vênias e gravatas, não está preocupado com a arrumação do seu livro: ‘Eu não me importo que digam que é pornográfico. Posso não gostar. Mas quem tem boca diz o que quer. Eu escrevi o que quis. Os leitores que decidam. Houve algumas críticas extremamente desfavoráveis, mas houve também uma grande repercussão positiva. Aqui no Brasil o livro está sendo levado a sério. Ainda agora estive na Sociedade de Psicanálise, num debate. E comecei a receber um tal volume de correspondência de mulheres que gostaram da protagonista… Houve até um leitor que me escreveu dizendo que o livro elevou a fé dele em Deus!’

Citando o final do livro: ‘E eu fiz o que Ele me criou para fazer. Não quero entender nada. Quero acreditar, mas não posso ter certeza, não se pode ter certeza de nada, que Deus me terá em Sua Glória e sei que Ele agora está rindo.’ Cumprindo a velha máxima (que falem mal, mas que falem de mim), a Dom Quixote não terá que recear pela sorte dos seus 5000 exemplares de ‘A Casa dos Budas Ditosos’."

"Foi você que pediu um ‘best-seller’?", copyright Público, 1º/12/99