Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Espiando pelo buraco da fechadura

ELEIÇÕES 2002

Vera Silva (*)

Já repararam que os restaurantes self-service são os precursores do "espiamento da vida alheia"? Sentamo-nos junto a desconhecidos para almoçar e partilhamos suas intimidades compulsoriamente. As pessoas conversam em voz alta sobre seus problemas no trabalho, sobre seus negócios, sobre seus amores etc., e nós, ali ao lado, somos obrigados a ouvir.

Noutro dia duas mulheres discutiam seriamente sobre o caráter de outras pessoas que, pensei, eram suas colegas de trabalho. Citavam nomes e ações, forneciam alternativas de ação, até que descobri que falavam dos personagens do tal programa BBB! Foi quando chegou uma terceira a quem informaram estar "tratando dos destinos da humanidade". Quando saí, deixei-as ainda discutindo quem devia ser eliminado, quem seria vencedor.

Então é assim? Os programas de TV, jornais e revistas comentam à exaustão o que acontece nas "casas de vidro" e os brasileiros parecem pensar que seus moradores são as personalidades do ano. (Jacques Tati teria tido uma visão do futuro, quando filmou aqueles apartamentos com paredes de vidro, com uma grande tela de TV na parede, construídos num edifício com uma grande porta de vidro que o herói não podia abrir?)

Estamos a 8 meses das eleições, e só se fala de BBB e CA. Das eleições somente sabemos das pesquisas e das reações dos personagens das pesquisas. Fez-se a luz! As pesquisas eleitorais são o BBB das eleições. Ao escolher quem fica, quem sai, num jogo de cartas marcadas, estamos todos nos preparando para votar nos próximos governantes.

Querem ver? Examinem abaixo a Tabela I: o cenário da pesquisa foi escolhido a dedo para testar o formato do programa, ops!, da cédula eleitoral que vai garantir boa audiência ao governo. Três candidatos pertencem à coligação que está no governo ? Roseana (PFL) Sarney (PMDB), José Serra (PSDB) e Itamar Franco (PMDB).

Um candidato pertence ao PT, um partido que se destaca pela oposição ao modelo de governo atual ? Lula ?, mas a pesquisa, ao contrário do que faz com a coligação governista, não apresenta o nome do senador Suplicy, que é tão candidato a candidato quanto Itamar Franco. Por quê? Dois candidatos pertencem a partidos de oposição que giram em torno da personalidade de seus candidatos a presidente ? Garotinho (PSB) e Ciro Gomes (PPS). Um candidato ? Enéas ? não tem suporte partidário.

O sétimo candidato ? outros??!! ? corre por fora, excluído do olhar dos leitores, que, desavisadamente, podem pensar que o total percentual soma 100%, quando não soma. É um candidato de muitos votos ? ocupa o terceiro lugar. Quem será ele: eleitor de Suplicy, do voto nulo, do voto em branco, que só revela o voto à urna eletrônica? Aceitam-se especulações.

Qual seria o objetivo dos pesquisadores ao falsear o cenário da pesquisa, excluindo alguns dos candidatos a candidato e omitindo as siglas partidárias das tabelas? Não seria importante avaliar, nas pesquisas, o compromisso do eleitor com os programas de governo?

Tabela I: Distribuição de cenários por votos percentuais

Nomes

 

Janeiro

 

Fevereiro

 

Cenário 1

Cenário 2

Cenário 3

Cenário 4

Lula

26,1

32,4

26,4

26,2

Roseana Sarney

22,7

28,3

24,5

Outros??!!

16,3

21,5

18,1

14,6

Garotinho

15,1

19,3

16,3

12,3

Ciro Gomes

7,4

11,0

9,1

7,1

José Serra

7,0

13,6

9,2

Itamar Franco

3,8

4,5

Enéas

1,6

2,2

1,8

1,6

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

Fonte: CNT/Sensus, publicada em 2002 # Legenda: área sombreada = simulação sem o candidato

Na Tabela I pode-se verificar também que a pesquisa de janeiro faz simulações com a retirada constante do nome de Itamar Franco, como se seu nome não fosse opção para transferência de votos dos eleitores de seu partido. É um caso de ignorar sua candidatura a candidato? Por que então manter Enéas? Seria para dar um toque de humor à pesquisa? Se o nome de Itamar fosse mantido, ele não poderia ser uma opção para os eleitores de Roseana?

A discussão em torno da transferência de votos na pesquisa de janeiro espanta pela falta de base. Os dados usados (nas análises que li) permitiam conclusões diversas.

Veja nos cenários 2 e 3 da Tabela II que os votos de Roseana e Serra se transferem com muita facilidade, mas de forma diferente:

Tabela II: Migração de votos

 

Cenário 2: Para onde foram os 26,5% votos de Roseana Sarney e de Itamar Franco

Cenário 3: Para onde foram os 10,8% votos de José Serra e de Itamar Franco

Fevereiro: Para onde foram os 4,8% votos de Garotinho, Outros e Ciro Gomes

Outros??!!

5,2

1,8

Lula

6,3

0,3

0,1

Garotinho

4,2

1,2

Roseana Sarney

5,6

1,8

Ciro Gomes

3,6

1,7

José Serra

6,6

2,2

Itamar

0,7

Enéas

0,6

0,2

Os votos de Serra se transferem para Roseana, juntamente com uma parcela dos votos de Itamar. Roseana é PFL, e Sarney é PMDB, portanto, aliados. É um voto coerente.

BBB das eleições

Os votos de Roseana, ao contrário, se distribuem pelos outros candidatos quase igualmente. O interessante é que parte deles, em torno de 1/4, vai engrossar o quesito Outros! Ao contrário do que se avaliou, os votos de Roseana são os votos do marketing. Os mesmos votos que elegeram Collor, como caçador de marajás, elegem Roseana, como a mulher no poder.

Em fevereiro, 4,8% dos votos migram, e para onde? A maioria para Roseana e Serra e, surpresa das surpresas, uma fatiazinha vai para Itamar Franco. Quem perde? Garotinho do PSB ? efeito dengue, talvez? Ou seria a forcinha que o Gugu deu a Serra no SBT? O curioso nisto tudo é que Garotinho parece incluir entre seus eleitores um número de eleitores volúveis, seja porque vivem na gangorra, seja porque o identificam com a situação. Não dá para saber.

Mas, é importante notar que ainda há 14,6% de outros! E que, entre eles, alguns foram atraídos pelo marketing-me-engana-que-eu-voto de Roseana e Serra.

Ainda pergunto: onde estão os cenários "sem Lula, com Suplicy", "sem Garotinho", "sem Ciro", "com apenas um candidato entre os considerados de esquerda"? A quem interessam pesquisas que testam qual o melhor nome, entre os do governo e seus aliados, para vencer a oposição no 1o turno?

Até quando os analistas políticos pretendem ajudar o governo a confundir a oposição e os eleitores? Até quando a imprensa vai ajudar o governo a montar esse BBB para disfarçar as eleições e os candidatos?

(*) Psicóloga