Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Está chegando a hora

É difícil prever todos os efeitos que a realização do provão terá sobre os cursos superiores. O que se pode dizer, por enquanto, é que a iniciativa do MEC está provocando um bem-vindo e saudável abalo no comportamento dos agentes responsáveis por estruturas de ensino que há muito tempo encontravam-se estagnadas e indiferentes ao processo de mudanças conceituais e tecnológicas que as cercam. E só por isso, o ministro Paulo Renato, ainda que possa não ter sido essa sua intenção, já marcou sua gestão de forma muito positiva.

O provão levou para dentro das faculdades uma variável que, até agora, só esteve presente nas preocupações angustiadas dos recém-formados. Com o diploma nas mãos, o desafio que espera a maioria dos jovens profissionais é o de se engalfinhar com seus concorrentes no mercado de trabalho. Só então é que parte deles se dá conta de que foi vítima de um curso que não prepara adequadamente, e que lhe foi oferecido como um instrumento imbatível de ascensão social.

A rigor, esse despreparo, só percebido tardiamente, é o resultado de uma somatória perversa de fatores, e nem é possível afirmar que todos eles estejam presentes em todas as escolas superiores que surgiram no país nos últimos anos. Mas em qualquer caso – mesmo para aquelas instituições de maior credenciamento social e técnico -, a inexistência de padrões mensuráveis sobre o destino de seus ex-alunos acabou por colocar todas elas na mesma vala: invariavelmente estiveram acomodadas, paralisadas e indiferentes à necessidade de seu aperfeiçoamento didático-pedagógico, incluídos aí o aparelhamento laboratorial de seus cursos e a qualificação de seu corpo docente, massacrado pelo regime horista de trabalho predominante na rede privada do 3o grau.

Com o provão, tudo isso entrou em crise. A iniciativa do MEC de medir o preparo dos formandos revolveu posturas acadêmicas fossilizadas, espalhou poeira a torto e a direito e colocou em cheque uma burocracia universitária – ou parcela de um empresariado incompetente para assumir todas as dimensões do empreendimento educacional – simplesmente porque introduziu a variável do mercado como termômetro da eficiência do sistema. Não apenas o mercado de cursos superiores que atendem a demanda dos estudantes de 2o. grau, mas também o mercado que absorve os novos profissionais. Nas duas pontas: na entrada, o vestibulando estará atento para o conceito obtido pelo curso que pretende fazer; e na saída, a área de seleção de mão-de-obra estará atenta para o curso feito pelo profissional que se candidata ao posto de trabalho. No miolo dessa trajetória estarão as faculdades e as universidades. É de se esperar que se engalfinhem agora elas próprias, as públicas e as privadas, na disputa pelo prestígio e pelo reconhecimento, sem grandes apelos publicitários ou sem grandes manobras políticas; simplesmente pela qualidade dos cursos que oferecem.

Agora está chegando a vez dos estudantes de jornalismo. A expectativa daqueles que trabalham nessa área de ensino é a de que o pânico será generalizado, embora vaticínios dessa natureza sejam prematuros. O que se sabe, com certeza, é que os resultados do provão em jornalismo vão servir como um teste de fogo para duas concepções que se digladiaram intensamente nos últimos 20 anos em torno da orientação a ser dada a esses cursos.

A primeira delas é comumente identificada como humanista: uma corrente que advoga a formação cultural clássica e geral do jornalista priorizada em relação à sua formação técnica. Na verdade, os defensores dessa linha de pensamento encontram-se há algum tempo na defensiva, principalmente diante das inovações tecnológicas que se espalharam por todas as atividades profissionais. Não houve demonstração lógica que tenham sido capazes de fazer para provar que o melhor jornalista não é aquele melhor qualificado tecnicamente para enfrentar as inovações que se acumulam em sua área profissional, mas aquele que se apresenta melhor estruturado do ponto de vista de sua formação crítico-discursiva. Para os humanistas é mais apropriado ao papel da imprensa na sociedade contemporânea, e ao próprio ofício de reportar, o profissional que detém nas mãos os instrumentos de análise da realidade multifacetada do mundo, e isso só com bagagem sociológica, econômica, política, literária, historiográfica, científica. Carente nessas áreas, ainda que estivesse habilitado a manipular as técnicas todas, o jornalista não seria mais que um neanderthal constrangido: um homem munido de desktops ou de laptops, plugado em redes de princípios impenetráveis, apto para os melhores leads e rápido nas entrevistas, mas montado em cima de um imenso vazio de idéias. E dizem mais: um curso superior de jornalismo jamais teria condições de qualificar seu estudante para os avanços tecnológicos dos quais as empresas se apropriam, e por isso o gap entre a realidade da academia e a realidade do mercado nunca seria superado. A função da educação universitária é outra, justificam. Não deixam de ter razão, embora não expliquem como se processa a absorção dos paradigmas da revolução tecnológica pelo pensamento humanista.

A segunda concepção pode ser simplesmente chamada de técnica. Para os que a defendem, o humanismo de hoje é outro; ele é a tecnologia como nova fronteira do conhecimento; como novo princípio da formação cultural. A noção de que a técnica, a específica do jornalista e a geral do fim do século, pode ser vista como um simples meio de trabalho nega a dinâmica de seu papel na sociedade contemporânea, é anacrônica e disfuncional. Tudo o que é proposto com esse viés conservador não seria mais que uma formulação romântica em vias de extinção: o que vale é a inserção do jornalista na agilidade e objetividade do texto e de sua conexão com as infovias, elementos primais de sustentação de um mundo globalizado. Se a cultura clássica não servir a isso, dificilmente terá outra serventia que não a do diletantismo intelectual. Também não deixam de ter razão, embora não respondam de que forma os cursos de jornalismo que se espalharam pelo país nos últimos anos teriam condições de promover essa nova capacitação profissional.

São essas duas concepções que estarão simultaneamente sendo testadas com o provão de jornalismo. Se os estudantes se saírem mal – e tudo indica que isso vai acontecer de forma generalizada, levando-se em conta os descaminhos pelos quais os cursos passaram nos últimos 20 anos e a tradição de superficialidade com que tem sido tratada a área da Comunicação em geral – as acusações virão de parte a parte. Não será difícil encontrar professores com a sábia reticência no julgamento dos resultados: “eu bem que avisei…”.

E se isso acontecer, humanistas e técnicos estarão perdendo uma boa oportunidade de discutirem, juntos, a questão central que os envolve: a verdadeira camisa de força que representa para os cursos de jornalismo a existência de um currículo mínimo fixado pelo MEC e que impede as escolas de procurarem caminhos originais e pertinentes às grandes questões do nosso tempo para a formação que pretendem dar a seus alunos. Na verdade, a aparente dicotomia entre essas duas áreas de orientação filosófica só existe por conta da redução física que matérias do currículo pleno sofrem em razão da obrigatoriedade de cumprimento do que é estipulado pelo governo, o que significa dizer que o provão será feito com base numa articulação disciplinar que reflete uma concepção fenomenológica e específica do início dos anos 80, quando nem a metade dos grandes problemas e questionamentos culturais de hoje estavam presentes no mundo acadêmico e no mundo da imprensa.

Seja como for, está chegando a hora do jornalismo. O cenário possível – e provável – é o do estabelecimento do pânico, como vem acontecendo em outras áreas já avaliadas: um olhar desorganizado para as carências internas de cada curso em cada instituição. A minoria que tem se saído bem se apressa em proclamar o êxito, em alguns casos até com uma publicidade agressiva e incontinenti. Das que se saíram mal, algumas estão agindo de forma irracional e passando ao largo dos problemas principais que devem enfrentar: a ameaça de vestibulares pouco concorridos e de salas de aula vazias, por exemplo, tem provocado demissões de professores em massa em faculdades particulares de São Paulo, como se isso resolvesse alguma coisa. Nem uma nem outra coisa são recomendáveis.

O provão e os resultados que ele tem apresentado remetem a uma discussão maior. Bem pensadas as coisas, a qualificação oferecida ao recém-formado – e que o Estado chama a si na responsabilidade de avaliar – diz menos sobre o curso e mais sobre o projeto que o sistema educacional brasileiro tem a oferecer para uma área profissional específica. No caso do jornalismo, quaisquer que sejam os resultados, o provão pode ser uma chance entre outras de se discutir não só o jornalista que formamos, mas a imprensa que queremos.

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