Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Estamos no fim do começo

MERCADO PONTOCOM

Sidnei Basile (*)


Apresentação de Os bastidores da internet no Brasil, de Eduardo Vieira, 336 pp., Editora Manole, São Paulo, 2003; URL <www.manole.com.br> ; e-mail <info@manole.com.br>; preço: R$ 35; título da redação do OI


Antigamente, em todas as famílias sempre havia uma avó ou uma tia que explicavam para a gente o significado dos sonhos. Não era nada nem remotamente freudiano. Era de antes de Freud. Coisas assim como sonhar com criança é proteção para os seus planos, viagem é mudança de vida, água limpa é purificação, parente morto significa vida longa, e por aí vamos.

Pois bem, este é um livro que explica o sonho da Internet. Mas não é a explicação convencional de economistas e administradores, ou a de protagonistas envolvidos na caça ao tesouro, ou mesmo de alguém com queda para a adivinhação.

Trata-se da apaixonante história de como se constituiu a Internet no Brasil. De como ela vicejou em uma bela bolha, que depois explodiu, e agora curte a ressaca dos grandes planos quando se confrontam com as mofinas realidades da vida.

E este relato é feito por um jornalista, um contador e explicador de histórias. Esse é o primeiro de seus méritos. Por quê?

Creio que é porque de todas as disciplinas anteriores (propositalmente incluí videntes e administradores no mesmo balaio) a do jornalismo, quando bem feita, é a especialidade de quem pergunta, verifica, vai lá saber. Não deduz nada a partir de nada. Incrivelmente, a maior parte do tempo não está fazendo o que faz por interesse de lucro pessoal. Faz porque é sua profissão fazer. Talvez por isso essa categoria atravesse um belo período de dificuldades. Mas apura.

Nesse sentido, o livro de Eduardo Vieira é provavelmente o melhor relato do que foi a ascensão e queda da Internet no Brasil. Ouviu todos os principais protagonistas, com excelentes histórias on the record e outras tantas em off. Teve a humildade e a competência de sair perguntando para poder explicar, e ao explicar, fazê-lo com clareza, talento e simplicidade.

O resultado é apaixonante. Foi a primeira história da Internet no Brasil que li com começo, meio e fim ? este tão provisório quanto os caminhos e descaminhos da Internet.

Sua originalidade está em contar as histórias brasileiras. Sim, por incrível que pareça, é uma reportagem de alguém que se dispôs a ouvir brasileiros, contando histórias nossas, sobre a Internet no Brasil. E esse é o segundo mérito.

Não que tenha desprezado o andamento dela pelo mundo afora e nos Estados Unidos em particular. O livro é útil para mostrar, a propósito, como a novidade foi virando uma loucura e depois um pesadelo no mundo desenvolvido.

Mas neste livro tudo isso é pano de fundo para o que acontecia aqui, para compreendermos como as coisas se deram entre nós.

O quadro daí resultante é, mais do que o inventário de um avanço tecnológico extraordinário, um variadíssimo painel da natureza humana, com a incrível aptidão da nossa espécie para transformar sonhos em ações, e ações em grandes obras ou grandes pesadelos. Um livro desses precisa estar apto a responder a três perguntas básicas: O que foi? Como ficou do jeito que ficou? e Tem futuro? Ainda que cheio de impasses e perplexidades, este livro mostra que a aventura, às vezes louca, de fazer a Internet no Brasil, por mais que já tenha história, mal começou. Eis outro mérito.

Quando estávamos todos tentando entender o que era esse fenômeno que começava a varrer nossa profissão e o mundo, diziam-nos os gurus: Internet time! Isso era sinônimo de faça alguma coisa, faça já, isso já deveria estar feito!

Estranhamente, a história relatada por Eduardo Vieira parece muito antiga, parece que faz muito, muito tempo mesmo que ouvimos essas histórias. Você vai lendo esse livro e vai ficando com a sensação de que a Internet é mesmo um túnel do tempo, só que se move nas duas direções: para a frente e para trás, muito depressa e muito devagar ao mesmo tempo. Rápida como um corisco riscando o céu com as suas novidades. Lenta como as paixões, que ficam perpétuas na alma da gente.

Para trás porque o ano 2000 parece que foi há vinte anos; 1999, então, parece que há trinta. Para a frente porque ela parece tão nova, tão cheia de possibilidades, tão aberta ao que o gênio humano ainda pode produzir de melhor que você termina de ler e diz: "é um bebê", tem toda a vida pela frente.

Estranho, também, julgar a novidade e os números que ela gerou sempre e apenas pelos critérios convencionais. Antes, quando ela não cabia nas regras econômicas, com grosseira inflação das suas possibilidades. Agora, com o garrote vil dos números frios.

Definitivamente ela não cabe nas cabeças burocráticas. Não cabe na obediência ao fanatismo dos números. A paixão que desperta continua viva, embora extremamente prejudicada pela cobiça de banqueiros de investimentos no passado, e agora pelos credores dos que acreditaram que era o grande Eldorado da economia global e dos saltos quânticos de produtividade.

Ela mostra como, paradoxalmente, quem mais acertou foram os visionários que fizeram com que surgisse do nada. E continua sendo assim. Gente como Marcos de Moraes, que diz: "estamos vendo apenas o pico da montanha de um mundo novo que está surgindo". Ou como Marcelo Lacerda, que fez tudo que fez ? o livro conta, leia ? mas não está satisfeito, porque não conseguiu auxiliar o país a produzir uma verdadeira indústria de software; cisma e lambe as mágoas enquanto surfa em Maresias, no litoral norte de São Paulo. Ou seja: quem mais acertou foram os empreendedores, os tecnólogos, os editores, que tinham uma visão para o futuro.

E quem errou mais? Os banqueiros e os contadores, sem dúvida. E também os que só viram o lucro fácil. Erraram na entrada, quando inflaram tudo. E erraram na saída, com a suposta racionalidade dos números, que gerou o fanatismo dos números, que quer criar, no mundo tecnológico e no mundo editorial, o conformismo dos números.

Erraram na entrada pela cobiça e estão errando na saída pela avareza. No meio do caminho cometeram e vêm cometendo praticamente todos os outros pecados capitais. Não por acaso envolvem as empresas em conflitos de governança corporativa e, nos Estados Unidos, pelo menos, vários acabaram na cadeia. Já não está mais do que na hora de inverter a lista dos suspeitos habituais e declarar quem é mesmo que pôs tudo, ou quase tudo, a perder?

Isso significa que a Internet não tem problemas para se viabilizar? Claro, é um poço de problemas, e aqui o livro de Eduardo Vieira traça um rico e amplo painel desses desafios. Ao término da leitura há a sensação de que o maior problema da Internet é também a sua maior bênção, e vice-versa. Por ser tão democrática, não há como extrair dinheiro dela facilmente. E ela é tão democrática quanto pode ser, por exemplo, uma conversa entre duas pessoas numa praça pública. Tão democrática quanto "ouvir dizer". Como precificar isso?

Mas não terá sido assim com todos os avanços da humanidade? Akio Morita não era ridicularizado quando caminhava pelas ruas arruinadas de Tóquio, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial tentando vender seus primeiros gravadores de som? A eletricidade não foi, durante muito tempo, pouco mais do que um luxo de nobres? E o telefone, um comodismo inexplicável quando para conversar, duas pessoas só tinham mesmo era que? conversar?

Por aí vai o livro de Eduardo Vieira. Faz-nos pensar muito nos achaques do presente, mas nos inspira a desvendar o futuro da Internet. E conta como tudo começou no Brasil.

O enredo e os dramatis personae não poderiam ser melhores. Relata a aventura dos primeiros descobridores/aventureiros, gente como Mandic e Jack London. Avança, depois, pelo território da formação de grandes marcas como Zip.Net e Cadê?. Dedica um capítulo inteiro ao UOL. Faz compreender como se deu a invasão estrangeira, e como foi possível aos estrangeiros errarem tanto no Brasil, particularmente por arrogância, por não compreenderem que não existe uma entidade chamada América Latina. Existe Brasil e América espanhola.

Conta as aventuras e desventuras da StarMedia, AOL, Portugal Telecom, El Sitio, Impsat. Faz a radiografia da polêmica sobre o acesso grátis, a investida dos bancos, o quanto o acesso grátis melhorou o nível de penetração da Internet, mas, ao mesmo tempo, quanto de valor que deixou de ser agregado aos mercados editorial e de comunicações.

Descreve a explosão comercial, o boom das marcas que sugiram entre 1999 e 2000, período em que o jovem repórter Eduardo Vieira cobria o assunto para a Gazeta Mercantil e, depois, para a revista Info. Estabelece um contexto para tudo: por que é que, tendo 30 anos de vida, só aconteceu em 1999/2000, e por que veio e foi como um cometa?

Faz o rescaldo, depois que a bolha explodiu e se debruça sobre o futuro. Já tem muito passado, muita história, mas tem, sobretudo, um universo pela frente.

***

Conheci Eduardo Vieira na redação da revista Info.

Sempre me impressionou pelo talento de contar histórias. Os bastidores da Internet no Brasil foram o tema do seu trabalho de conclusão de curso na Escola de Comunicações e Artes da USP, onde se formou. Um dos membros da banca que o examinou era a jornalista Maria Tereza Gomes, hoje diretora de redação da Você S/A. Tereza, depois do sufoco do TCC, disse: "Gostei muito, mas quero ler mais".

Foi o embrião de um mestrado. A idéia original era narrar a história da Internet. À medida que avançava, outra idéia foi tomando corpo. Era a de contar a verdadeira história da Internet. Daí a designação de bastidores. Há muitas entrevistas com a atribuição da autoria. Muitas outras sem isso. Todas, sem exceção, têm um bocado de tecnologia, muito de negócios e mais ainda de emoções humanas.

Essa combinação de conteúdos só foi possível porque Eduardo Vieira tem a origem que tem. Começou na carreira trabalhando na revista Imprensa, onde aprendeu muito sobre jornalismo e jornalistas. Depois foi para a Gazeta Mercantil, que tinha uma excelente cobertura de tecnologia. Pela competência da cobertura chamou a atenção dos responsáveis pela revista Info. Tornou-se um especialista na cobertura de negócios na área de tecnologia.

A tese de mestrado que planeja busca compreender como a Internet mudou o papel do jornalista e como, depois de tudo que vivemos, verificamos que existe cada vez menos espaço para os repórteres puros.

Pelo que este livro aponta, vai resgatar o papel de descobridores, intuitivos, empreendedores, jornalistas, editores e editoras com idéias na cabeça e um site na mão.

Não sei qual será o espaço dos banqueiros de investimentos, mas suspeito que algo do que fizeram, o darwinismo que promoveram, e que acabou por vitimá-los, se perderá na poeira do tempo.

Com esta saga bem contada, é possível repensar a vida. Agora que parece que a Internet brasileira é apenas história, é quando de fato a história começa. Eis o encanto deste livro. Dá a sensação de que, com tudo que vivemos, passamos apenas pelo fim do começo. O melhor ainda está para chegar.

(*) Diretor-superintendente do Grupo Exame