Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estamos sós?


“Remédio contra superinteresses”, copyright Folha de S.Paulo, 26/3/00

“No sábado, 18 de março, uma reportagem em Ciência apresentou números relativos a infecções hospitalares, destacando que elas causam 300 mil mortes por ano no mundo.

O jornal relacionou causas do problema e explicou que os médicos lutam contra a resistência das bactérias aos medicamentos. Um texto à parte anunciou o surgimento de uma nova classe de antibióticos, que ?se mostrou eficaz contra as superbactérias?.

Protesto de uma leitora: ?A matéria não passa de um chamado para a propaganda do antimicrobiano. Compreende-se o motivo quando se lê, mais abaixo, que quem patrocinou a viagem da repórter a Cancún foi a empresa fabricante do medicamento?.

A leitora, que é médica, refere-se ao esclarecimento publicado no pé da reportagem, praxe na Folha quando seus profissionais têm despesas custeadas por fonte que não o jornal.

?Sejamos coerentes?, escreveu ela. ?A matéria deveria ter o aviso ?informe publicitário?, já que foi paga por um laboratório para ?informar? o leitor sobre sua mais nova descoberta.?

O editor de Ciência, Marcelo Leite, reconhece que ?há, em princípio e em geral, conflito de interesses nas viagens de jornalistas a convite de empresas?.

Mas defende a reportagem sobre infecção hospitalar pela relevância do tema e dos dados publicados e pela transparência com que foi tratada a questão do patrocínio.

?A empresa está lançando uma classe de antibióticos que pode ajudar a resolver o problema?, argumenta o editor. ?A reportagem tem interesse público e jornalístico. Não poderia deixar de sair porque a autora viajou a convite.?

O questionamento da leitora sobrevive à resposta da Redação. Infecção hospitalar é tema importante, sem dúvida, mas as informações oferecidas foram poucas e ficaram soltas no espaço (?A incidência no Estado de São Paulo varia de 1,6% a 34% das internações.? Isso é muito? Existe padrão internacional? O jornal não explicou).

Para recolher os números fornecidos pelas duas outras fontes que alimentam a reportagem (Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas e Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado) não era preciso ir ao balneário mexicano.

Embora tenha sido apresentado como atração principal, o texto parece ?escada? para chegar ao verdadeiro assunto, que está ao lado: a nova droga e suas anunciadas qualidades.

A Folha faz mais do que outros veículos ao exigir que o leitor tome conhecimento das condições em que foi realizada a pauta, mas isso não basta.

Para superar o conflito de interesses, e não apenas explicitá-lo, o jornal tem de caminhar para assumir total responsabilidade pelas viagens necessárias à produção de seu noticiário. Supostas cortesias podem e devem ser dispensadas.”