Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"O interessante e o importante", copyright Diário de Notícias, Lisboa, 3/1/04

O jornalismo é, geralmente, definido como um campo de produção e divulgação de informação e debate de questões políticas, sociais e culturais consideradas importantes para os cidadãos. Contudo, hoje em dia, os media (incluindo os de referência) publicam um grande número de matérias que podem ser consideradas interessantes mas não importantes. Não se trata apenas de fait-divers sobre a vida de pessoas célebres, ou do chamado ?jornalismo de serviço? ? culinária, previsões astrológicas, etc.

Independentemente da discussão sobre o que é importante e o que é interessante, é suposto, por exemplo, que a política e a governação sejam importantes para os cidadãos, embora possam não ser interessantes para todos. Contudo, também nesse campo, os media parecem privilegiar, cada vez mais, o interessante em desfavor do importante. Vejamos dois exemplos, extraídos do DN.

No passado dia 6, a secção Nacional abria com um tema que ocupava toda a página, intitulado ?As teias de Theias?. Aí se relatava que ?o primeiro-ministro teve de intervir para apaziguar a relação do ministro do Ambiente com os seus secretários de Estado? e que o ministro ?é um problema constante para Durão Barroso? que se viu obrigado ?recentemente? a intervir para ?acalmar as fricções entre o ministro e os seus secretários de Estado?. O texto falava, também, de ?luta surda? no seio do ministério e da ?aversão do ministro por aviões?. Em destaque, recordavam-se ?gaffes do ministro? e falava-se do desagrado que o seu recente apoio à associação entre uma empresa privada e diversas câmaras municipais para concorrerem ao Fundo de Coesão provocou em ?muitos privados?, os quais viram nisso ?uma primeira cedência a alguns lobbies poderosos?. Mas segundo o texto, ?para já? o ministro ?conta com o apoio de ambientalistas?.

Ora, para além da dificuldade na identificação da substância das informações veiculadas, o leitor que procurasse as fontes em que elas se baseiam, não encontrava qualquer indicação, embora se atribuam a dois secretários de Estado ?relações ao rubro com o ministro? e se diga que a um deles ?saíram as contas furadas? porque ?confiou na nomeação? de outras pessoas para a pasta do Ambiente.

O texto não cita nenhuma declaração das pessoas invocadas nem alude a qualquer tentativa de as ouvir. Não existe, ainda, qualquer referência a datas, lugares e modos em que ocorreram as situações mencionadas, surgindo, apenas, expressões como ?recentemente?, ?conta-se?, ?para já? ou ?comenta-se nos bastidores?. Falta, pois, substância, actualidade e rigor aos factos apresentados.

O segundo exemplo data do passado dia 10: o ?DN dossier? era dedicado aos ?Problemas de comunicação? do Governo e incluía, para além do texto de abertura, um conjunto de casos sobre relações de governos estrangeiros com os media.

O leitor que se detivesse no texto de abertura ficava a saber que ?Durão Barroso reconhece a necessidade de “melhorar o diálogo” com a opinião pública portuguesa? e que, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, ?o Governo prepara medidas mas não tira partido delas?.

O texto prossegue, citando reuniões do primeiro-ministro ?com vários dos seus ministros e colaboradores mais próximos?, nas quais terá sido falado o ?problema de comunicação? do Governo. O assunto terá chegado a Conselho de Ministros, tendo o PM pedido ?aos seus ministros que enumerassem as prioridades sectoriais de cada pasta para 2004?.

As fontes invocadas são, para além do PM, ?um membro do Governo? e uma ?fonte governamental?, todas pronunciando-se sobre ?a comunicação? do Governo.

Noutra parte do texto, dá-se relevo a ?críticas? sobre a ?estratégia de comunicação do Governo?, atribuídas a Marcelo Rebelo de Sousa, não se indicando, contudo, quando e onde elas foram proferidas e se o professor falou directamente ao DN ou se o DN o cita de outra fonte e, nesse caso, qual e quando.

Uma vez mais, o rigor e a identificação das fontes estão ausentes mas, ao contrário do primeiro texto, onde é fácil perceber que alguém, sob anonimato, esteve interessado em criticar o ministro do Ambiente, no segundo, a falta de identificação das fontes governamentais que se pronunciaram sobre o assunto é incompreensível, dado não se ver razão para o que foi dito não ter sido assumido de viva voz.

Estes dois exemplos, para além de confirmarem que os jornalistas aceitam, como fiáveis, as informações oriundas de fontes oficiais sem necessidade de as aprofundar e verificar, suscitam algumas interrogações, entre elas a de saber se será importante, no sentido do interesse público, fazer do relato de intrigas de ?bastidor? num ministério e das opiniões de fontes governamentais sobre os (seus) ?problemas de comunicação?, matéria de relevo no noticiário nacional. Será que essas matérias são importantes para o País? Ou, serão, apenas, interessantes para alguns?

Qualquer que seja o sentido da resposta, afigura-se escassa a importância dos temas tratados em ambos os textos e excessivo o destaque que lhes foi conferido.

Bloco-Notas

As ‘novas notícias’

A importância concedida pelos media a determinados temas em detrimento de outros tem sido amplamente estudada. A maior parte dos investigadores reconhece que a abordagem jornalística da actualidade evoluiu nos últimos tempos e que as notícias são hoje, na forma e no conteúdo, substancialmente diferentes do que eram há algumas décadas. Alguns dos termos usados para classificar as notícias que actualmente se publicam são elucidativos: ?novas notícias?, ?notícias leves?, ?jornalismo chocante?.

Dois tipos de crítica

As críticas a essas notícias são de dois tipos: uns dizem que elas estão cada vez mais orientadas para o que interessa à audiência (interesse do público) em vez de para o que a audiência precisa de saber para tomar decisões (interesse público), sendo, portanto prejudiciais à democracia. Outros, defendem que as notícias ?leves? não são necessariamente ?um mal?, dado fornecerem informação que pode guiar as atitudes dos cidadãos, além de conquistarem algumas pessoas para as notícias que de outro modo se manteriam alheias a elas.

Sem relevância

Num texto surgido no Observatório de Imprensa do Brasil, a investigadora alemã Liriam Sponholz, afirma que, em Abril, em plena guerra do Iraque, houve um massacre no Congo devido a conflitos étnicos que terá provocado mil mortos num só dia. A autora acrescenta que nesse país já morreram mais de 3,3 milhões de pessoas em quatro anos e meio, devido a conflitos entre grupos rebeldes que não só matam as suas vítimas como comem os cadáveres e obrigam os familiares dos mortos a fazerem o mesmo, o que, segundo a autora, foi confirmado pela ONU. Embora esse massacre tenha recebido alguma atenção dos media, a investigadora pergunta se o espaço que lhe foi dedicado condiz com a importância do tema. A sua resposta é negativa.

No esquecimento

Segundo a citada investigadora, um grupo de professores de comunicação fundou uma espécie de Observatório dos Media, na Alemanha, onde divulga todos os anos uma lista de temas de relevância social que não receberam atenção ou foram pouco destacados pelos media. Segundo a autora, este ano, o primeiro tema da lista são os maus tratos a idosos, em asilos, nomeadamente o uso excessivo de calmantes para facilitar o controle e reduzir o pessoal.

?Sérias? versus ?leves?

Num artigo publicado na Revista Media & Jornalismo (n.? 2), questionados sobre ?as notícias que se fazem hoje?, a maioria dos americanos afirma que elas são ?interessantes? e mais ?sensacionalistas que ?sérias? (importantes), preferindo as notícias ?sérias? às notícias ?leves? achando que há muito mais notícias ?deprimentes? que ?animadoras?. Por outro lado, o artigo mostra que o negativismo afasta o público das notícias, ao mesmo tempo que o interesse pelas notícias ?sérias? o aproxima delas.