Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Figuras Públicas", copyright Diário de Notícias, 29/10/01

"Uma das dificuldades do trabalho da provedora é a impossibilidade de analisar, com a brevidade desejada, as queixas dos leitores. Essa impossibilidade resulta não apenas do volume de correspondência recebida, mas, também, da necessidade de ouvir os jornalistas responsáveis pelas notícias em causa e/ou a direcção do jornal. Mercê da distância temporal entre algumas das situações que provocaram queixas e a sua análise nesta coluna, voltar a esses temas, para mais no momento actual em que as atenções se centram em assuntos de grande relevância nacional e internacional, pode parecer desajustado. Contudo, a análise ponderada de uma questão requer, sempre, algum distanciamento. As notícias publicadas no passado mês de Agosto, envolvendo o deputado socialista Manuel M. Carrilho e a apresentadora de televisão Bárbara Guimarães e, noutro âmbito, a ex-secretária de Estado da Cultura, Catarina Vaz Pinto, provocaram reacções negativas em alguns leitores. No primeiro caso, ?uma foto de alguém de costas a segurar uma faixa preta?, com o título Casamento de Bárbara e Carrilho ? levou o leitor Sérgio Sawaya a acusar o DN de ?falta de profissionalismo? e a afirmar que ?uma notícia como essa (…) não deveria ter (…) chamada de primeira página (…), devendo limitar-se a um rodapé de página interna?. No segundo caso, Carlos Madeira repudiou a ?forma sensacionalista, pouco respeitosa e (…) enganosa como o DN noticiou o relatório da Inspecção-Geral de Finanças sobre C. Vaz Pinto?.

Relativamente ao primeiro caso, além da foto referida pelo leitor, o DN publicou, como, aliás, outros jornais de referência, fotos da união da apresentadora e do deputado surgidas na Internet, sem autorização do seu autor que tinham sido cedidas, em exclusivo, ao Expresso. Ora, apesar de não estar em causa o valor noticioso de alguns aspectos do caso, a publicação dessas fotografias sem autorização nem menção do autor corresponde a uma apropriação de propriedade alheia. Como explicou o director da Sociedade Portuguesa de Autores, no Público (24/8), ?o acesso à Internet não é livre, está sujeito a regras que obrigam a respeitar direitos fundamentais, como o direito de autor e o direito à privacidade?. Também o facto de se tratar de figuras públicas, uma das quais do campo político, não significa que todos os actos da sua vida privada possuam ?interesse público?.

Quanto às notícias sobre a ex-secretária de Estado da Cultura, a posição do DN foi expressa no editorial do seu director publicado em 23/8, onde Mário Resendes afirma que ?uma das virtualidades da transparência de uma sociedade democrática está na existência de uma Imprensa atenta a sinais reveladores de situações em que está em causa o interesse público?. Segundo o director, ?é bom que fique claro que não há estatuto, passado ou presente, privado ou profissional, que exima qualquer ex-governante de prestar contas públicas pelos seus actos. Chame-se Manuel Maria Carrilho, Catarina Vaz Pinto ou quem quer que seja?.

A provedora concorda com a opinião expressa nesse editorial. Não está, obviamente, em causa a legitimidade de um jornal investigar decisões tomadas por governantes e ex-governantes, qualquer que seja o seu estatuto actual. Contudo, nas notícias em questão, a visada não foi ouvida antes da publicação, ao contrário do que mandam as regras da profissão. Por outro lado, a referência a aspectos da sua vida privada, de que são exemplo, frases como ?(…) Catarina ainda não conhecia António Guterres e vivia com… (…)?, não se justificam no contexto em que surgiram, por nada acrescentarem à substância da matéria em análise.

O interesse público é, muitas vezes, confundido com o interesse do público. É óbvio que existe um público interessado em revelações sobre a vida privada, passada ou presente, das figuras públicas. Mas, apesar da dificuldade em dar conteúdo ao conceito de interesse público, existe no jornalismo uma distinção que se tornou clássica: o interesse público respeita ao bem-estar da sociedade; o interesse do público responde à curiosidade das pessoas.

É certo que a vida privada é um conceito de geometria variável e que algumas figuras públicas não hesitam em usar a sua vida privada para construir uma carreira. Ao fazê-lo, usam a liberdade e o direito de disponibilizar informações pessoais. É esse mesmo direito que usam, também, para se proteger de consequências indesejáveis, quando decidem não permitir que os media invadam a sua vida privada. Contudo, nos meios jornalísticos existe a ideia de que aqueles que usam, uma vez, a liberdade de abrir uma porta não têm, depois, o direito de a fechar. Para os media, trata-se de um direito adquirido, um precedente, uma espécie de jurisprudência à qual fazem apelo quando esse acesso lhes é recusado. Mas, será legítimo negar a uma pessoa, qualquer que seja o seu estatuto, o direito de escolher as circunstâncias em que divulgará, ou não, informações de natureza pessoal irrelevantes para a sociedade?

A liberdade dessa escolha é, sem dúvida, limitada pela natureza das informações em causa e pelas consequências possíveis da sua divulgação. Mas, será que fotografias da união do deputado e da apresentadora ou pormenores sobre a vida afectiva passada da ex-secretária de Estado possuem interesse público e são relevantes para o entendimento das notícias publicadas?

Bloco de notas

Doutrina

A generalidade dos códigos deontológicos dos jornalistas acautela a protecção da pessoa e o respeito pela vida privada como elemento essencial da responsabilidade do jornalista perante o público.

Daniel Cornu distingue três domínios em matéria de protecção da pessoa: a vida íntima, a vida privada e a vida pública. A esfera íntima abrange ?os factos, os gestos que devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem, com excepção das pessoas às quais esses factos foram especialmente confiados?. A esfera privada engloba ?os acontecimentos que cada um entende partilhar com um número restrito de outras pessoas, às quais está ligado por laços relativamente estreitos, como familiares, amigos ou conhecidos?. Os factos da vida pública ?podem ser, não só conhecidos de todos, mas também, regra geral, divulgados sem autorização? (1).

Esta distinção entre os três domínios da vida da pessoas permite ao jornalista, diz Cornu, analisar cada situação concreta, sobretudo quando se trata de ponderar entre a protecção da vida privada e o interesse público.

A dificuldade reside no facto de, nem sempre, esta clara delimitação teórica corresponder a todas as situações e pessoas.

Outras abordagens

A investigadora holandesa Liesbet van Zoonen (2), apresenta uma visão mais aberta sobre a distinção entre público e privado, afirmando que essa distinção está em redefinição e que é necessário analisar os novos contextos em que se coloca. Em primeiro lugar, muitas figuras públicas não vêem nenhum problema em revelar, ou deixar que outros revelem, em público, a sua vida privada. Em segundo lugar, não há razão para pensar que a divulgação da vida privada constitui um tipo de jornalismo diferente do jornalismo a que a autora chama ?regular?, pelo que as regras éticas e deontológicas, relativamente aos conteúdos e ao seu tratamento, devem ser-lhe aplicadas.

Segundo van Zoonen, o poder e o estatuto da pessoa cuja vida privada se pretende divulgar, deve ser explicitado, para se perceber as razões pelas quais se considera relevante abordar a vida privada dessa pessoa.

A diferença

Para a investigadora, neste, ou noutro, tipo de jornalismo, ?um facto é um facto?. Os critérios do rigor e da equidade devem ser respeitados, as fontes identificadas e exercido o princípio do contraditório. Segundo van Zoonen, a prova de que este tipo de jornalismo não está tão longe do jornalismo ?regular? como se pensa, é a facilidade com que os jornalistas que trabalham no jornalismo ?regular? se mudam para os populares e tablóides, sem necessidade de aprenderem uma nova profissão. Talvez o que distinga ambas as formas de jornalismo, diz van Zoonen, seja a ?sensibilidade ética?. De facto, diz, no jornalismo ?regular? a ética é uma referência que orienta a prática profissional. No jornalismo tablóide a ética não faz parte dos padrões culturais dos jornalistas.

(1) Cornu, Daniel (1994) ?Journalisme et vèrité?, Labour et Fides;

(2) (1998) ?Making Public Private life?, in The Media in Question, Sage publications"

    
    
                     

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