Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Décima da discórdia", copyright Diário de Notícias, 9/12/01

"O gabinete do Ministro das Finanças (MF) enviou à provedora uma mensagem assinada pela assessora de imprensa, Edite Coelho, protestando contra uma notícia publicada pelo DN no passado dia 16, onde, sob o título Governo vai cortar nos salários, se afirma que ?na despesa corrente primária, o Executivo emendou a mão. Contra os ambicionados 4,0 %, anunciou 4,2 %, mas os números não mentem: o crescimento é de 4,3 %?.

Edite Coelho considera que ?a afirmação não corresponde minimamente à verdade dos factos?. Segundo a assessora, é fácil verificar que esse valor (4,3 %) ?carece em absoluto de rectificação?, tendo sido ?utilizado no editorial? o que, a seu ver, ?demonstra a importância que a ele se pretendeu atribuir?. No entanto, segundo diz, ?o juízo de valor que se pretende retirar da suposta incorrecção do número, é desmentido comparando os valores de 2001 e de 2002?. Edite Coelho faz as contas e conclui que o ?crescimento da despesa primária (OE-2002) é de 4,227 %?, isto é, 4,2 % e não 4,3 %, como afirmou o DN.

A assessora afirma, ainda, ter feito ?diversos esforços no sentido da rectificação e do esclarecimento? da notícia, mas não obteve qualquer sucesso.

Rudolfo Rebelo, autor da notícia, responde ao protesto, afirmando que ?o cálculo relativo aos 4,3 % referenciados no texto do DN se refere a um resultado de 4,269 %?, explicando que esse resultado ?está influenciado por arredondamentos e respectiva passagem de euros para escudos?. ?Matematicamente?, diz o jornalista, ?é considerado 4,3 % a partir dos 4,251 ?. Segundo R. Rebelo, ?os 4,227 % apontados como correctos por MF, são sempre (…) superiores a 4,20 %?, sendo que este valor ?foi o politicamente prometido pelo MF?. R. Rebelo considera-se, pois, ?autorizado a escrever que a despesa corrente primária é superior a 4,2 %?. Por seu turno, Azevedo e Silva, autor do editorial citado pela assessora, afirma: ?Em nome do rigor de que fala o MF, avancemos os números exactos: o do DN é 4,269 % e o do MF é 4,227 %, qualquer deles superior ao limite de 4,2 %?. Sobre o editorial, esclarece: ?Referi em editorial os 4,3 %, considerando esse crescimento insuficiente para contemplar um previsível aumento (moderado) dos encargos salariais do Estado, dificuldade que será acrescida com 4,2 %.?

O jornalista R. Rebelo entendeu, ainda, acrescentar alguns comentários ao protesto de Edite Coelho: ?O MF só disponibilizou os dados ? mais de quatro centenas de páginas A4 ? três ou mesmo duas horas antes do normal fecho dos jornais.? Tratou-se, diz, ?de uma (…) atitude inédita no MF, de esconder os dados?, com o ?claro propósito de evitar que o jornalista sério e responsável ?faça contas?.?

Segundo R. Rebelo, ?neste enquadramento ninguém pode efectuar um trabalho ?levado às décimas??, pelo que, em sua opinião, importante é que se ?aponte tendências? e ?foi o que se fez?. O jornalista afirma não perceber a posição de MF, dado que ?no dia seguinte o primeiro-ministro garantiu aos sindicatos que a verba destinada aos salários seria reforçada junto das provisões?, o que o leva a concluir que ?a despesa corrente primária está sub-estimada?.

Não é este o local para análise dos valores apontados pelo MF e pelo DN. Os elementos apresentados permitem, por si só, que o leitor avalie as razões de cada uma das partes. Mas o caso possui outras componentes, essas sim, do âmbito da provedora. Efectivamente, quer as palavras da assessora do MF ? ao afirmar não ter tido sucesso nos ?diversos esfor&ccccedil;os no sentido da rectificação e do esclarecimento? da notícia -, quer as do jornalista ? ao acusar a assessora de saber ?alguns truques (…) claramente velhos? e o ministério de ?tentar uma manobra de diversão à volta de um número para esconder outros (…), táctica (…) utilizada nos meios politiqueiros? -, são sintomáticas de um relacionamento tenso e conflituoso entre o jornalista e a sua fonte. Se, por um lado, não se afigura correcto que o DN tenha ignorado os ?esforços para a rectificação e esclarecimento? da notícia, também não é compreensível que o MF só tenha disponibilizado as ?mais de quatro centenas de páginas?, contendo os dados do OE, poucas horas ?antes do normal fecho dos jornais?.

As fontes oficiais ? geralmente, as mais profissionalizadas ? preparam, habitualmente, a divulgação das informações que desejam ver publicadas, tendo em conta as horas de ?fecho? dos jornais. Por outro lado, quando se trata de documentos extensos e especializados, fazem sínteses ?prontas a publicar?, dado saberem que, na maioria dos casos, os jornalistas não têm tempo de estudar os dossiês e pretendem ser os primeiros a publicar. Essas sínteses, ao mesmo tempo que permitem, à fonte, destacar o que lhe interessa, proporcionam aos jornalistas, menos especializados, o acesso rápido ao ?essencial? da informação. Mas os jornalistas mais experientes, não dispensam a consulta dos documentos originais. Daí que a hora de difusão seja um ponto chave na gestão da informação por parte das fontes.

No caso presente, teria sido aconselhável que um documento de tal importância e extensão tivesse sido analisado com tempo. Mas, por outro lado, os limites temporais dos jornalistas são cada vez mais estreitos e, na medida em que o fluxo noticioso se tornou quase instantâneo, torna-se cada vez mais difícil, às fontes, encontrar o momento certo para a divulgação das suas informações.

Bloco de Notas

O poder e a imprensa ? A análise das relações entre o poder e a imprensa é um tema importante no estudo do jornalismo. Txema Ramirez, jornalista e professor na Universidade do País Basco, publicou, em 1995, um dos mais completos e expressivos trabalhos sobre a temática, intitulado Gabinetes de Comunicacion, onde apresenta uma dupla visão do tema ? académica e profissional.

O livro organiza-se em duas partes, cujos títulos são significativos: Manual de primeiros auxílios para um Gabinete de Comunicação e Manual de prevenção face a um Gabinete de Comunicação.

Segundo se diz na contra-capa, o livro coloca o problema da ?relação amor-ódio? entre os gabinetes de comunicação e os jornalistas, sendo dedicado ?a todos os ecologistas da informação?.

Alguns dados ? O citado livro contém alguns dados interessantes. Segundo Ramirez, na década de 90 existiam, em Espanha, mais de cinco mil jornalistas trabalhando em gabinetes de comunicação ou em estruturas congéneres.

Nas empresas, o número destes profissionais ?supera o de jornalistas activos dedicados à informação económica?, prevendo o autor que o fluxo de profissionais que abandonam as redacções para integrar o mundo empresarial não diminua nos tempos mais próximos.

Citando autores norte-americanos, Ramirez afirma que, nos EUA ? onde as relações públicas possuem um enorme peso -, ?30 a 50 por cento do pessoal da Casa Branca tem alguma relação directa ou indirecta com os media?, sendo emitidos (da Casa Branca), diariamente, entre 15 a 20 comunicados de imprensa.

Nos EUA, o investimento na comunicação estende-se a outros sectores. Só em 1980, segundo Ramirez, as Forças Armadas produziram 600 mil notícias e cada congressista americano possui a sua própria equipa de imprensa.

Recomendações ? O autor considera ser importante, para os jornalistas, a existência de gabinetes de comunicação em instituições que produzem grande volume de informação, sem os quais a gestão da informação poderia tornar-se ?caótica?. Segundo afirma, na medida em que esses gabinetes se apropriam de parte das funções habitualmente desempenhadas pelos jornalistas, por exemplo, a selecção das informações que fazem chegar às redacções, a sua influência na informação publicada é enorme. Por outro lado, o autor constata que a informação oriunda de gabinetes oficiais tem mais possibilidades de ser publicada do que a oriunda de outras vias. Ramirez considera, pois, fundamental que jornalistas e assessores ?conheçam ambos os lados da barricada informativa?, a fim de se estabelecer entre eles, em vez de uma relação ?amor-ódio?, uma relação baseada no respeito pelas práticas e pela ética de cada uma das profissões. Porém, como mostram outros autores, os jornalistas não se interessam, em geral, por conhecer o funcionamento dos gabinetes de comunicação, mantendo uma relação de desconfiança sistemática perante eles.?"