Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Europa e televisão pública", copyright Diário de Notícias, 29/4/02

"O debate sobre o serviço público de televisão, a que o DN se associou, levou alguns leitores a reflectir sobre o tema. José L. Matos lamenta que ?a discussão esteja a ser condicionada pela situação financeira da RTP?, dado considerar que ?as decisões sobre o sector se reflectem em toda a comunicação social, envolvendo aspectos fulcrais da vida social e cultural do País?. Também Luísa Ramos afirma que ?as questões ligadas à gestão da RTP não esgotam nem constituem o essencial da discussão sobre o serviço público?, situação que, segundo a leitora, ?é agravada pelo défice de informação dos portugueses? sobre o significado desse conceito.

As observações dos leitores são pertinentes. De facto, a crise do serviço público de televisão, em Portugal, não decorre apenas da fragilidade do seu financiamento, mas sobretudo da ausência de uma visão estratégica sobre o sector. Na realidade, os meios de que a RTP dispõe poderiam ter-lhe servido para se afirmar como uma verdadeira alternativa aos canais privados. Mas não foi isso que aconteceu apesar de, nos grandes momentos da vida do País, a RTP ter prestado um serviço insubstituível, à altura das grandes estações europeias de serviço público. Contudo, no dia-a-dia da sua programação, a RTP não se tem assumido como alternativa de qualidade, preferindo enveredar por uma estratégia de competição e mimetismo com os canais privados. Essa estratégia marcou indelevelmente o seu perfil nos últimos anos, conduzindo a uma situação em que a RTP é, impropriamente, confundida com o próprio conceito de serviço público.

Apesar de, na Europa, o paradigma do serviço público de televisão se ter modificado devido, principalmente, ao facto de as televisões públicas terem passado a operar num contexto crescentemente concorrencial, existe um legado a que a maioria dos canais públicos se procura manter fiel. Assim, a televisão pública construiu o seu modelo na base de uma programação de ampla cobertura, com objectivos de qualidade, diversidade e popularidade. A especialização surgiria, ainda no decorrer dos anos 60, com o aparecimento de novos canais que contemplaram espaços para públicos minoritários, além de programas de índole regional e local, modelo que se mantém até hoje.

O mandato atribuído à televisão pública obriga-a a cumprir um conjunto de princípios. Mas o seu legado fundamental é a sua vocação cultural, competindo-lhe difundir e estimular o património linguístico, espiritual, estético e ético do País, assumindo-se como veículo do talento dos seus artistas, no domínio da música, da literatura e da criação, em geral.
A parte mais frágil do legado do serviço público de televisão é o alto grau de politização resultante da sua pertença ao Estado. Contudo, é nos canais públicos que se encontra a cobertura regular e nacional da actividade cívica e política, como campanhas eleitorais, sessões parlamentares e tempos de antena, apesar de a politização a que tem sido sujeita ? que é o seu pecado original ? ter contaminado, algumas vezes, o trabalho dos seus profissionais. Essa politização é, contudo, evitada através de mecanismos de controlo democrático, já ensaiados, com êxito, em Portugal.

No que respeita ao seu modelo de financiamento, a televisão pública europeia foi concebida numa base não comercial, o que significa que os factores comerciais não são decisivos na sua actuação. Contudo, isso não significa que ela adopte uma atitude de indiferença face à economia do meio em que exerce a sua actividade. A procura de recursos, o controlo de custos e o estudo das audiências constituem obrigações da televisão pública.

Mas, como referem os leitores, o futuro do serviço público de televisão coloca outras questões para além do seu financiamento, entre as quais saber se, nas sociedades dominadas por numerosos canais de comunicação, o Estado deve assegurar a criação e a protecção da identidade nacional, isto é, o sentimento de pertença dos cidadãos a uma cultura comum e a identificação com o País e com as suas instituições, ou se entende que essas funções devem ser deixadas a operadores privados. É certo que estes podem incluir nas suas ?grelhas? programas de serviço público. Contudo, além de a prestação do serviço público não ser compatível com uma distribuição em ?pacotes?, a lógica dos operadores privados é a do mercado que, na maioria das vezes, corresponde a um abaixamento geral do nível da programação. Ora, está provado que quanto maior é a atracção do público por programas de baixo nível cultural, maior é a necessidade de os Governos apoiarem os canais públicos, dotando-os de meios para cumprirem uma missão que nenhum outro media pode assegurar. A História ensina-nos que à liberdade de empresa não correspondeu sempre a liberdade de expressão e que as pressões económicas se mostraram tão ou mais efectivas, na limitação da diversidade e do pluralismo, que as pressões políticas. Apesar de as receitas da publicidade permitirem reduzir os subsídios oficiais e poderem ser vistas como um meio de libertação do controlo do Estado elas criam novas dependências, já não perante partidos ou Governos, mas perante os anunciantes. Importa, contudo, referir que a publicidade, além de uma fonte de receita, é, também, um ?género? de comunicação que a televisão pública não pode ignorar, embora não deva submeter-se aos seus ditames.

Bloco-notas

Um pouco de História ? Foi na Grã-Bretanha, com a criação da British Broadcasting Company ? BBC ? em 1920, com um modelo de gestão para o qual o controlo privado e a directa dependência do Estado se mostraram inadequados, que o moderno conceito de serviço público encontrou, primeiro, a sua inspiração e concretização. Como corporação pública, a BBC tinha precedentes nos serviços de água e electricidade que criaram reputação como ?serviços de utilidade pública? e levaram os britânicos a aceitar um modelo de gestão de uma empresa de comunicação que se apresentava com os mesmos objectivos de ?serviço público?. A BBC surgiu como um modelo que recusava quer o lucro como objectivo quer o controlo político do Governo. Apesar de alguns receios de que se tornasse uma agência de propaganda do Governo, em 1930 era olhada como uma componente central da cultura britânica.

Rádios públicas ? Em França, o serviço público de rádio, representado pela Radio France, inclui oito canais: um generalista, com 38 rádios regionais; outro de informação; outro cultural (falado); outro de música clássica; um dedicado aos idosos e outro aos jovens; um dirigido à cidade de Paris e outro internacional. A Radio France elege como marcas do serviço público o ?tom da antena?, a originalidade, a ?inteligência da expressão?, a preocupação com a criatividade, o respeito pelas pessoas, a qualidade do som e da realização e a ausência de ?bombardeamento publicitário? ou de ?promoções insidiosas?. Como empresa de serviço público, a Radio France reconhece a ?necessidade de um esforço constante de adaptação?, a ?dificuldade de ultrapassar a competição que se exerce no seio do mercado publicitário e a concorrência de produtos destinados a seduzir o público?, assumindo a ?pesada tarefa de cultivar a diferença?. Para isso, não descura instrumentos imprescindíveis ao desenvolvimento de qualquer empresa submetida à concorrência, como sejam estudos sobre o público, análise de produtos, promoção de canais e de programas e ligação aos ouvintes.

Outros exemplos ? A Rádio Nacional de Espanha (RNE) possui seis canais de serviço público, além de estações regionais em basco e galego, com perfis diferenciados e assim distribuídos: um canal generalista; outro ?clássico?; outro dirigido aos jovens; um canal em língua catalã; outro para notícias e desporto e outro internacional. A RAI (Itália) possui, igualmente, seis canais de radio, com perfis idênticos aos da RNE: um canal generalista; outro para os jovens; um canal ?clássico?; outro de notícias, música, trânsito, meteorologia e ambiente; um canal só para os EUA e outro internacional. A BBC (rádio) possui, também, seis canais: um para jovens; outro musical para não jovens; um de música clássica, jazz e cultura; outro de informação, artes, teatro, ciência, religião e história; outro para desporto e notícias e outro internacional."