Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"A comunicação da ciência" copyright Diário de Notícias, 3/6/02

"O DN publicou, no passado dia 20, com chamada de primeira página, uma notícia, intitulada ?Novo avanço contra o cancro do pulmão?, que teve desenvolvimento na secção ?Ciência?, sob o título ?Arma contra cancro do pulmão?. A notícia baseava-se num estudo apresentado no Congresso Mundial de Oncologia, a decorrer, nessa altura, na Florida, e referia que ?um medicamento experimental (gefitinib, comercializado com o nome de Iressa) reduziu, pela primeira vez, o tamanho dos tumores em doentes com cancro avançado do pulmão, revelando maior eficácia entre aqueles que deixaram de fumar?.

Segundo a notícia, ?dez por cento dos pacientes que tomaram o medicamento viram os seus tumores reduzidos em, pelo menos, 50 por cento e 36 por cento registaram melhorias acentuadas nos sintomas?. Por outro lado, o texto refere que os efeitos secundários ?associados à quimioterapia? são menores, além de que ?as pessoas afectadas com este tipo de cancro (…) têm duas vezes menos hipóteses de sobreviver aos cinco anos seguintes do que aquelas que abandonam o vício?.

J. F. Moura Nunes, do Instituto Português do Cancro, considera que a notícia ?parece ser uma tradução ? sem citar a fonte ? de uma página da Yahoo? (que identifica), achando ?estranho? a notícia não referir ?de onde se copia? e afirmando que ?o que vem escrito? não é o que vem na ?notícia original?. Afirma o leitor que ?na reunião da Florida se disseram três coisas: que o gefitinib parecia ser eficaz em tumores avançados do pulmão não sensíveis à quimioterapia; que o deixar de fumar aumenta a sobrevivência dos doentes com ?tumor de pequenas células? do pulmão (…) que estão sujeitos à terapêutica, e isto não tem nada a ver com a primeira notícia; e a possível acção do ácido retinóico em certos tumores?. Afirma, também, que ?a informação de que o gefitinib está ?comercializado com a denominação Iressa? (…) lida num jornal português parece querer dizer que se pode ir comprar o medicamento na farmácia?. O leitor pergunta se a jornalista terá ?pensado nas consequências de uma notícia como esta nos doentes com cancro do pulmão e nas suas famílias?.

Em resposta a estas críticas, a jornalista Helena Mendonça ? autora da notícia ? afirma que ?a notícia foi retirada da Reuters? e que, ?comparadas as várias agências noticiosas que nesse dia emitiram as conclusões do encontro da Florida?, não verificou diferenças no que se refere à descrição e às conclusões do estudo experimental. Contudo, dá razão ao leitor quando este critica ?o facto de não ser citada a fonte da notícia?, afirmando ter-se tratado de ?um lapso?. Sobre a comercialização do medicamento, Helena Mendonça afirma que em nenhuma parte do seu texto ?se indica que o medicamento está a ser comercializado em Portugal? e que ?logo no primeiro parágrafo? refere tratar-se de um ?medicamento experimental?. Manifestando-se ?particularmente sensível? à questão das ?consequências de uma notícia como esta?, a jornalista afirma que o DN usa como critério de publicação ?os estudos e descobertas que passaram pela experimentação, sobretudo em humanos, e que tiveram resultados positivos no combate a determinada doença?, a seu ver, o caso deste estudo. Pede, contudo, à provedora que se pronuncie sobre se, tratando-se de ?uma notícia importante?, quer a nível científico, quer ?em termos de repercussão no futuro da saúde pública?, devem os jornalistas ?evitar emiti-la, temendo criar falsas expectativas nos doentes?, ou se, pelo contrário, ?uma notícia como esta? não poderá, antes, ?servir de alerta? para que médicos e responsáveis da saúde investiguem ?a pertinência destes estudos no seu trabalho?.

Vejamos, então: é indiscutível que a ciência (e a tecnologia) afectam, cada vez mais, o futuro da humanidade. Por outro lado, está provado que os media são a maior fonte de informação sobre ciência de que o público dispõe e que é também através dos media que os cientistas têm, muitas vezes, o seu primeiro contacto com novas descobertas, cujo conhecimento aprofundam, depois, nas revistas especializadas. Contudo, a comunicação da ciência ao ?grande público? não é tarefa fácil. Com efeito, a lógica do jornalismo aponta para a simplificação e para a dramatização, enquanto a ciência precisa de tempo para chegar a resultados que, na maioria dos casos, não são conclusivos nem enquadráveis em formatos jornalísticos criativos. Comunicar ciência pressupõe trabalho e empenho na produção, em tempo oportuno, de informação factual e inteligível, além de colaboração entre cientistas e jornalistas. De facto, os cientistas possuem a obrigação ética de fornecer informações acessíveis, disponibilizando-se para colaborar com os media na apresentação e discussão dos temas da sua especialidade.

A informação sobre descobertas apresentadas em reuniões científicas reveste-se de enorme interesse público, desde que devidamente enquadrada, explicados os seus limites, o seu significado e alcance, apresentadas as discussões a que deu origem e acautelados eventuais conflitos de interesses. A comunicação da ciência não se compadece com um estilo de jornalismo assente em notícias breves e apelativas baseadas em relatórios de discutível credibilidade. Pelo contrário, pressupõe investimento na especialização e a libertação dos jornalistas das pressões que caracterizam o dia-a-dia da redacção.

Bloco-notas

Um bom exemplo ? A questão hoje trazida a esta página quase dispensava a intervenção da provedora, na medida em que a jornalista e o leitor esclareceram directamente, por iniciativa da jornalista, as questões colocadas. Trata-se de caso que merece ser assinalado, por contrariar a ideia de que os jornalistas se furtam ao contacto com os leitores. A provedora recebe muitas mensagens de leitores que se queixam da dificuldade em contactar jornalistas e colaboradores do DN. Daí que a iniciativa de Helena Mendonça e a disponibilidade do leitor sejam dignas de menção.

Os termos ? Alguns dos leitores usam termos duros e agressivos contra o jornal ou contra os autores das notícias sobre as quais protestam junto da provedora. Isso deve-se, talvez, ao facto de a quase totalidade das mensagens chegar à provedora por correio electrónico e de a ?ciberescrita? proporcionar uma espontaneidade e uma informalidade que a escrita tradicional não deixa passar. Os jornalistas do DN a quem essas mensagens são reenviadas, para esclarecimento, reagem, por vezes, com indignação, como foi o caso da autora da peça acima focada. Vejamos o que disse o leitor, a propósito das consequências dessa notícia: a jornalista ?não poderia ter-se informado um pouco mais? Não terá acesso fácil à Internet, onde pode obter, em minutos, respostas a estas questões? Não têm vocês, aí, no jornal, acesso a alguém que saiba alguma coisa destes assuntos? Esta situação é triste e irritante. Até porque é quase a regra, quando se toca em assuntos científicos. Seria um belo tema de mestrado na área do jornalismo a análise das causas e consequências da ignorância e irresponsabilidade de alguns dos senhores jornalistas na publicitação deste tipo de tema?.

A resposta ? ?Indignada com os termos utilizados pelo leitor para criticar a notícia e ao mesmo tempo sensibilizada com a última questão?, diz Helena Mendonça, ?resolvi telefonar ao leitor. (…) Pretendia eu saber quais as críticas que colocava ao conteúdo do texto e debater um pouco o problema das expectativas criadas nos doentes e seus familiares. Num tom afável e totalmente oposto àquele que expressara na carta, Moura Nunes deu-me conta de que um doente telefonara a um colega, a perguntar se poderia tomar aquele medicamento. Concordou que os resultados da pesquisa estavam correctamente referidos na notícia. (…) Referiu (…) a necessidade de que este tipo de notícias sejam acompanhadas de pareceres e opiniões de especialistas (…), para melhor fundamentar o que está em causa na informação. (…) Quanto à questão das expectativas (…), acabámos a conversa telefónica de acordo sobre os cuidados a ter na publicação de notícias deste tipo, revelando o leitor que o tom (…) utilizado na carta reflecte mais o cansaço de ver sistematicamente publicadas nos jornais informações pouco fidedignas, sensacionalistas e erradas. Não era este o caso.?"