Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"O ?recorte?", copyright Diário de Notícias, 15/7/02

"O director do Jornal de Leiria, Francisco M. Figueiredo, escreveu à provedora a propósito de uma notícia publicada na secção Regional do DN, em 18 de Maio passado, intitulada Aljubarrota não quer uma Disneylândia à portuguesa. A notícia relata a apresentação do projecto da Fundação Batalha de Aljubarrota que, segundo as palavras do seu presidente, citado no texto, se propõe ?munir a zona de serviços turísticos a uma escala que honre a sua história?. A notícia refere, também, a existência de algumas polémicas em torno do projecto e cita um texto do ?licenciado em História? Orlando Cardoso, sem indicar onde foi publicado, em que este pergunta se os habitantes de Aljubarrota ?cederão os seus terrenos a interesses financeiros que se preparam para construir uma Disneylândia à portuguesa?.

Acontece que as palavras de Orlando Cardoso citadas pelo DN foram publicadas no dia 16 de Maio no Jornal de Leiria, num artigo cujo título, segundo Francisco Figueiredo, ?fazia referência à Disneylândia? e onde o autor expunha uma ?ideia? que o DN reproduziu, sem identificar ?o ?local? onde as afirmações foram inicialmente publicadas?. Francisco Figueiredo lamenta ?que um jornal de referência, como o DN pretende ser, não tenha o cuidado de referir devidamente as suas fontes?.

Pronunciando-se sobre o caso, a editora adjunta da secção Regional do DN, Helena Santareno, informa que a notícia foi elaborada pela jornalista Ana Pago, que ?fez o que qualquer outro profissional faria ao saber que lhe fora marcado o serviço: reuniu informação para se inteirar o melhor possível sobre o assunto. Na documentação que reuniu encontrava-se um recorte, não identificado, que ela, de facto, citou, por o considerar pertinente, tendo em conta o que foi dito na apresentação da fundação em causa?.

Quanto ao título, a editora adjunta afirma que foi ela própria que o elaborou, desconhecendo que a ?ideia? da Disneylândia constava de um ?recorte? retirado do Jornal de Leiria, do qual só tomou conhecimento após a queixa do director desse jornal.

Vejamos: a identificação das fontes constitui uma das regras básicas do jornalismo. Esse tema foi, aliás, já algumas vezes, abordado nesta coluna. Contudo, o caso que motivou o protesto do director do Jornal de Leiria, embora se prenda, também, com fontes de informação, escapa às análises anteriormente feitas pela provedora. De facto, não se trata, neste caso, de um acordo para a preservação da confidencialidade da fonte ou de qualquer outra das razões geralmente invocadas pelos jornalistas para não identificarem as suas fontes.

Pelo contrário, Ana Pago refere o nome e a qualificação académica do autor da frase citada, pelo que a omissão do ?local? onde essa frase foi inicialmente publicada não teria explicação plausível, dado não ser crível que o DN pretendesse, intencionalmente, evitar a referência ao Jornal de Leiria como a fonte onde recolhera a citação. Acresce que a notícia surge na secção Regional, onde, por definição, a imprensa regional é olhada com maior atenção, dado essa secção ser vocacionada para o tratamento das questões regionais e locais. A omissão surgia, pois, como inexplicável, não fosse a informação fornecida pela editora adjunta vir esclarecê-la. Tratou-se, afinal, de um ?recorte não identificado?, que se encontrava na documentação que a jornalista Ana Pago reuniu para tratar o caso. Dada a sua ?pertinência?, a jornalista resolveu utilizá-lo, não obstante desconhecer a sua origem. Por seu turno, a editora adjunta, considerando pertinente a comparação com a Disneylândia (mencionada no texto da notícia), ?puxou-a? para título.

Analisando a notícia de Ana Pago, verifica-se que é construída em torno da sessão de apresentação do projecto da Fundação Batalha de Aljubarrota, nela se expondo o ponto de vista do presidente da fundação, Alexandre Patrício Gouveia e do curador Ernâni Lopes, que defendem o projecto da fundação. Procurando apresentar outras versões, de modo a conferir maior objectividade à notícia, a jornalista refere a existência de contestação por parte da população, citando afirmações de outras fontes – o ?historiador Gouveia Monteiro, inicialmente à frente do projecto?, o ?investigador António José Teixeira? e o ?licenciado em História Orlando Cardoso? – todas críticas do projecto, sem, contudo, mencionar onde e quando foram publicadas essas afirmações, nem fazer prova da mencionada contestação. Ora, não obstante representarem uma tentativa da jornalista para diversificar os pontos de vista sobre o referido projecto, essas omissões retiraram rigor à notícia.

Admitindo que a omissão se tenha ficado a dever a uma deficiente recolha da documentação, um jornalista não deve, em princípio, utilizar documentos cuja origem desconhece, muitos menos, ?puxá-los? para título. Acresce que não teria sido difícil ?localizar? o citado ?recorte?. Em alternativa, existiriam outras fontes a contactar. Mas, se a utilização do ?recorte? se revelasse, de todo, imprescindível ao esclarecimento do tema – o que não fica provado – havia, ainda assim, várias maneiras de o citar. Desde logo, apresentando-o com reserva e explicando a impossibilidade de localizar a sua origem.

A provedora não pode, pois, deixar de dar razão ao director do Jornal de Leiria.

Bloco-notas

Objectividade ? Num trabalho já clássico sobre a objectividade no jornalismo, editado em Portugal por Nelson Traquina em 93 na antologia Jornalismo: questões, teorias e ?estórias?, a socióloga norte-americana Gaye Tuchman afirma que os jornalistas usam determinados procedimentos de rotina – a que chama rituais – para ?neutralizar potenciais críticas?. Segundo ela, ?as tácticas conotadas com a objectividade?, como fazer citações de outras pessoas ou apresentar hipóteses alternativas através da citação de opiniões contraditórias, podem conduzir ao aumento da credibilidade das notícias.

Procedimentos ? Segundo Tuchman, o jornalista é ?um homem de acção?, que, como tal, tem de tomar decisões imediatas relativamente à validade, fiabilidade e ?verdade? dos assuntos que tem em mãos. Por isso, necessita de ?noções operativas? sobre a objectividade, a fim de diminuir os riscos decorrentes dos prazos que lhe são impostos, das exigências da hierarquia e das reclamações do público. Tuchman identificou quatro ?procedimentos?, a que chamou ?rituais estratégicos?, como capazes de fomentar a objectividade no jornalismo. São eles ?a apresentação de possibilidades conflituais?, vulgarmente chamada ?princípio do contraditório?, que consiste em ouvir todas as partes envolvidas numa notícia; a ?apresentação de provas auxiliares?, isto é, a obtenção de provas que corroborem uma afirmação; o ?uso judicioso de aspas?, que consiste em inserir ?nomes e citações?, deixando ?os factos falarem por si?; e ?a estruturação da informação numa sequência apropriada?, vulgarmente chamada ?pirâmide invertida?, que consiste na apresentação da informação por ordem decrescente de importância. Tuchman avisa, contudo, que qualquer destes procedimentos possui vulnerabilidades, embora permitam, aos jornalistas, defenderem-se dos ?perigos múltiplos? que envolvem o seu trabalho.

Jogo de verdade ? Num livro intitulado Le discours d’information médiatique, publicado em 1997, Patrick Charaudeau, especialista em Ciências da Linguagem, debruça-se sobre a questão da identificação das fontes, não numa perspectiva ética ou deontológica, mas do ponto de vista da construção da notícia. Diz Charaudeau, que as fontes podem ser estudadas de duas maneiras: como procedimento estratégico destinado a produzir efeitos de credibilidade e como obrigação decorrente do ?contrato mediático? – ?jogo de verdade? – entre o jornalista e o público. Estabelecendo uma distinção entre o ponto de vista da ?instância produtora da informação? (o media) e o da ?instância de recepção? (o público), Charaudeau afirma que este pretende saber o que está na origem da informação que lhe é fornecida, sendo os media responsáveis pela transparência das fontes, obrigando-se a identificá-las. Essa responsabilidade é dupla, abrangendo quer a origem das fontes, quer os meios da sua identificação – nome, estatuto, função."