Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"A voz das mulheres", copyright Diário de Notícias, 2/9/02

"Leitor há mais de 50 anos desse jornal estou a verificar que, ultimamente, os seus colaboradores (…) são quase 100 % masculinos?, escreve o leitor Joaquim Silva. ?Analise-se, por exemplo, a rubrica Inquérito: raramente se fazem inquéritos a mulheres?, continua o leitor, ?para lá da incidência quase exclusivamente masculina, as perguntas dessa rubrica fazem-me pensar que os seus orientadores estão (…) desfasados, ou são desconhecedores da realidade social do povo português?.

O leitor escolheu, como exemplo das suas afirmações, cinco dias entre 31 de Maio e 7 de Junho deste ano, da rubrica Inquérito, tendo verificado que, em 25 inquiridos nessa semana, apenas surge uma mulher. Sobre as perguntas feitas aos entrevistados, e com base nesses dias, refere o leitor: ?Porque se pergunta só a homens se confiam no pessoal que os serve nos restaurantes? Será que as mulheres portuguesas já não vão a restaurantes?? Continuando a citar perguntas feitas nesses dias, diz o leitor: ?A pergunta ?o que pensa do plano de relançamento da economia?, será indicada só para homens? E a pergunta ?os pais devem ser castigados pelas faltas dos filhos?, também?? Sobre esta última o leitor pergunta, com ironia, se ?aí, pelo DN, os filhos já nascem só dos homens?.

O director do DN, Mário Resendes, afirma que o jornal ?tem procurado aumentar a presença de personalidades femininas em tudo o que respeita à vida do jornal?. Confessando não ser ?adepto do sistema de quotas?, reconhece que, ?nesta matéria, existe, na sociedade portuguesa, uma situação que prejudica, objectivamente, as mulheres, não lhes reconhecendo sempre o devido mérito?. Mas recorda que ?por curiosa coincidência a Provedora dos Leitores do DN é uma mulher?.

A questão colocada pelo leitor – de uma certa marginalização da mulher na imprensa e na vida pública – tem sido objecto de muitos debates e variados estudos. A provedora não dispõe de dados que lhe permitam apurar até que ponto o DN se posiciona, nesta matéria, diferentemente dos seus congéneres. Contudo, no que respeita à sua Redacção e analisando, apenas, a ficha do pessoal publicada diariamente no jornal, verifica-se que dos 132 jornalistas 51 são mulheres (cerca de 38,6 %), sendo que nas secções Artes e Multimedia, Negócios e Sociedade o número de mulheres ultrapassa o de homens. Já a direcção do jornal é exercida, apenas, por homens, enquanto no que se refere a editores (responsáveis pelas diferentes secções do jornal), embora exista, desde Agosto, uma editora executiva, apenas a secção Grande Reportagem está a cargo de uma mulher. Existem, por outro lado, três mulheres como editoras adjuntas: uma na secção Ciência e Ambiente, outra na Sociedade e outra na Regional. Tal como a direcção, o Planeamento/Opinião é ocupado apenas por homens. Quanto ao órgão eleito pelos jornalistas – o Conselho de Redacção – cuja presidência pertence ao director, possui uma maioria de mulheres (quatro num total de cinco jornalistas). No que respeita às cinco delegações, apenas a do Funchal é dirigida por uma mulher. Relativamente aos colaboradores que assinam, com regularidade, artigos de opinião no DN existe um forte predomínio de autores masculinos. Em 33 colaboradores (número que poderá pecar por defeito) surgem apenas cinco mulheres. Estes dados poderiam ser objecto de múltiplas interpretações, por exemplo, relacionando a composição (masculina/feminina) de cada secção com o número de peças publicadas por cada uma delas, ou a respectiva contribuição para a primeira página. Poderia, ainda, verificar-se em que medida a ?maioria feminina? de algumas secções influencia os temas e o tratamento que lhes é dado e apurar se existe um ?olhar feminino? sobre os acontecimentos.

Partindo do princípio que a direcção e os editores detêm o essencial do poder no seio da Redacção, e embora os estudos sobre a imprensa mostrem que esse poder é não só volátil como sujeito a influências endógenas e exógenas difíceis de localizar, pode concluir-se que, como refere o director, existe no DN, tal como na sociedade portuguesa, ?uma situação que prejudica, objectivamente, as mulheres?, mantendo-as afastadas dos centros de decisão. Nesta perspectiva, as jornalistas possuem pouca ou nenhuma influência sobre as decisões editoriais de fundo, escapando-lhes, por exemplo, o controlo da primeira página, por sinal, a que mais marca o perfil do jornal.

Retomando a questão colocada pelo leitor quanto à rubrica Inquérito, embora a análise de apenas uma semana não autorize conclusões definitivas, os resultados confirmam uma presença maioritariamente masculina de entrevistados. Admitindo que a escolha desses entrevistados, tal como a dos colaboradores externos do jornal, é da responsabilidade das chefias e que estas são maioritariamente exercidas por jornalistas masculinos e existindo, por outro lado, um predomínio de jornalistas do sexo masculino na Redacção, pode concluir-se que, no DN, o ?poder masculino? se faz, claramente, sentir. Contudo, o facto de grande número de mulheres jornalistas se encontrarem libertas de cargos de chefia e, portanto, mais disponíveis para trabalhos ?no terreno?, pode significar que elas estão em condições de influenciar o conteúdo das notícias no que respeita a enfoques, narrativas e selecção de fontes.

Bloco-notas

Estudo ? Os investigadores que pretendam estudar a história do jornalismo português, e mesmo a história do País nos últimos 138 anos (a idade do DN) encontram nas páginas deste jornal, publicadas ao longo desses já longos anos, uma fonte inesgotável de conhecimento.

A presença feminina nas redacções é hoje um dado adquirido, documentado em estudos e trabalhos académicos. A tese de doutoramento de Cristina Ponte, professora na Universidade Nova de Lisboa, sobre a noticialidade da infância na imprensa de informação geral, embora não se centrando na feminização do jornalismo português, fornece importantes contributos para a compreensão dessa questão no que se refere ao DN.

Marca feminina ? Numa análise diacrónica ao DN, Cristina Ponte passa em revista 30 anos da vida do jornal, entre 1970 e 2000, analisando, a propósito do tema que estudou – a noticialidade da infância – as transformações sofridas pelo jornal durante esse período.
Entre a enorme soma de detalhes que enquadram o estudo, Cristina Ponte assinala a chegada da primeira mulher – a jornalista Helena Marques – à direcção do DN como directora adjunta, juntamente com o actual director, Mário Resendes, tendo o jornalista Dinis de Abreu como director.

Referindo-se à ?nova geração de jornalistas? chegada à redacção no final da década de oitenta e princípios de noventa, Cristina Ponte afirma: ?Crescia o número de mulheres, de jovens e de jornalistas com formação universitária. A Informação Geral é uma das secções que vai ter uma marca feminina, passando a chamar-se Sociedade, no Verão de 1990. Foi, vários anos, quase exclusivamente composta por jornalistas mulheres e nela se irão confrontar o ?jornalismo institucional? da notícia canónica (Quem, o quê, onde e quando) com formas de escrita que vão valorizar o sobre.?

Cristina Ponte associa, pois, a presença de um maior número de jornalistas mulheres a um tratamento mais profundo da infância.

Vozes masculinas ? Entre os dados apurados por Cristina Ponte encontra-se uma comparação entre o número de peças sobre a infância publicadas no ano 2000, no DN e no Público, por jornalistas, colunistas e leitores do sexo feminino e do sexo masculino. Os dados obtidos mostram que na cobertura da infância se encontra, em ambos os jornais, ?o predomínio da assinatura feminina?, verificando-se o inverso nas peças editadas provenientes de vozes externas: colunistas, figuras convidadas ou leitores. Segundo a autora, se o predomínio masculino de ?vozes externas? não é indissociável do panorama mais geral da imprensa, já ?a assinatura feminina? entre as que fornecem mais peças sobre a noticialidade da infância se pode relacionar com a composição maioritariamente feminina das secções de Educação e Sociedade em ambos os jornais."