Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Velhas regras", copyright Diário de Notícias, 11/11/02

"O caso tratado hoje constitui um interessante exemplo das relações que podem estabelecer-se entre leitores e jornalistas. Existe nas mensagens de ambos um potencial de diálogo que um jornal como o DN pode explorar com benefício das duas partes. As mensagens terminam de modo significativo. Diz o leitor: ?Agradeço-vos a leitura deste mail. Informo que estou disponível para mais esclarecimentos. Eis as minhas ?coordenadas? (…):.?? Diz, por seu turno, o jornalista: ?Se o caro leitor dispuser de informações oficiais que desmintam os dados que nos foram fornecidos pelo director da Federação Norueguesa de Exportadores de Pescado, (…) tenho todo o prazer em falar consigo e aprofundar este assunto (…) que certamente tem dados interessantes para noticiar (…) Sobre as imprecisões que não especificou, se entender explicar-me quais são, estou disponível para o ouvir?.

Interactividade

O assunto dispensaria, como se vê, a intervenção da provedora. De facto, o caso acabou por ser tratado, directamente, entre as partes ? o leitor dirigiu-se à provedora comentando a notícia; a provedora remeteu os comentários ao jornalista para que respondesse e este enviou a sua resposta, simultaneamente, à provedora e ao leitor. Tudo isto se passou online. O leitor vive na Noruega, leu a notícia na edição digital do DN, mas como não tinha o endereço do jornalista contactou a provedora. A interactividade acabou por funcionar, embora por interposição da provedora.

Mais-valia

O exemplo merece referência, porque exemplifica a mais-valia do jornalismo digital, relativamente ao jornalismo ?tradicional?. Este leitor poderia ter tido acesso imediato ao jornalista e este podia ter-lhe facultado o acesso directo aos documentos que consultou para elaborar a notícia, através de links (hipertexto), se o DN digital facultasse aos leitores o contacto dos jornalistas. Por seu turno, o leitor poderia ter-lhe fornecido as informações que enviou à provedora sobre o assunto, concretizando outra das características do jornalismo digital. O leitor tornar-se-ia, no caso, ele próprio um produtor de informação e a sua experiência e conhecimentos teriam sido partilhados por outros leitores.

Gestos

Este exemplo mostra, também, que os jornalistas não fogem ao contacto com os leitores. O que acontece é que certas decisões de natureza técnica, ou de outra índole, não facilitam, nem proporcionam esse contacto.

Responder, pessoal e pontualmente, às cartas dos leitores que chegam por correio ?normal? não é praticável, tendo em conta os ritmos de uma Redacção.

O que não significa que outros sectores da empresa não possam encarregar-se do contacto com quem escreve para o jornal. Quanto mais não seja como uma atenção para com os leitores. A experiência de um ano e meio de provedora diz que esse gesto sensibiliza agradavelmente os leitores.

Trabalho em bacalhau, na Noruega e disponho de fábricas para frescos, verdes e secos (…). Temos sido muito visitados (…) pelos media de toda a Europa comunitária, nos últimos anos. Tal deve-se ao facto de o Conselho de Produtos do Mar da Noruega ter efectuado um estudo sobre quais as empresas (…) que melhor reflectiam a realidade do negócio de bacalhau na Noruega. (…) Fomos nós os escolhidos. (…) Servimos de ?cartão de visita? da imprensa, rádio e televisão de vários países para os quais a Noruega exporta o ?fiel amigo?.?

Pedro C. Gomes, o leitor que assim se apresenta, refere que existem ?imprecisões? numa notícia assinada pelo jornalista João Pedro Fonseca, publicada em 28 de Outubro passado, intitulada Bacalhau está em vias de extinção, a qual se baseia num relatório da Comissão Internacional de Exploração dos Mares (CIEM), que defende o fim da pesca nos mares do Norte e da Irlanda. O jornalista deduz, do relatório, que Portugal ?pode não ser directamente afectado?, uma vez que a maior parte do bacalhau que consome vem da Noruega.

Pedro C. Gomes afirma que a notícia pode ser enganadora, porque, ?sendo a Noruega um importante fornecedor de Portugal, não é, hoje em dia, o mais importante?. Segundo diz, ?o país que, de longe, é o maior responsável pela redução dramática dos stocks do Mar do Norte é precisamente a Rússia, que não é mencionada. E esse país tem como comprador principal Portugal. O produto capturado na Escócia, Inglaterra, Irlanda, etc… é pouco escoado para Portugal, sendo muito mais usado nos mercados locais?. Pedro C. Gomes acrescenta que ?a realidade do negócio (…) internacional do bacalhau é bem mais complexa? e perante o enorme consumo que Portugal ainda detém (…) merecia (…) melhor tratamento jornalístico.

O jornalista João Pedro Fonseca recusa que o seu texto contenha imprecisões, afirmando que se baseou no relatório da CIEM. A prova da oportunidade da notícia, está, em sua opinião, no facto de o comissário europeu para as Pescas ter reagido prontamente, ?dizendo que pediu uma moratória para terminar a pesca do bacalhau no Mar do Norte?, reacção que o DN incluiu numa notícia publicada no dia seguinte. Lamentando que o leitor comece a sua carta ?com uma sobranceria de quem conhece o sector melhor que ninguém?, João Pedro Fonseca recorda que, no dia seguinte, o director de indústria da Federação Norueguesa de Exportadores de Pescado confirma que ?Portugal importa da Noruega cerca de 90% do bacalhau que consome? e que do ?apelo dos cientistas? não resultará ?qualquer impacte na exportação de bacalhau para Portugal?.

Sobre a publicação do relatório, o jornalista afirma que, apesar de o mesmo ter sido conhecido na sexta-feira anterior, no dia em que preparou o seu texto ? domingo, 27 de Outubro ? ?não havia qualquer possibilidade de ouvir as associações do sector, nem de obter números oficiais dos organismos públicos?. Decidiu, mesmo assim, ?dar a notícia?, por a considerar ?uma questão ambiental importante que diz muito aos portugueses?, fazendo-a acompanhar, no que respeita a Portugal, dos dados de 2001, na certeza de que, no dia seguinte, avançaria para uma análise mais aprofundada do relatório, o que foi feito numa peça em que são ouvidos ?todos os agentes envolvidos na pesca do bacalhau?. À provedora, o jornalista solicita que analise a sua decisão de publicar os dados do relatório sem ter contactado fontes oficiais para confirmar se Portugal importava a maioria do bacalhau da Noruega, não obstante ter indicado, nesse mesmo texto, que ?os números eram de 2001?.

A provedora não dispõe, obviamente, de competência para analisar a substância das ?imprecisões? a que se refere o leitor, relativamente à origem do bacalhau consumido em Portugal, embora considere que a afirmação (do leitor) de que a Rússia tem como ?comprador principal Portugal? não contradiz a afirmação (do jornalista) de que a maior parte do bacalhau que se consome em Portugal vem da Noruega. Por outro lado, as afirmações do jornalista, sobre essa questão, foram confirmadas, no dia seguinte, por responsáveis oficiais.

O problema, de âmbito mais geral, que o jornalista coloca é, contudo, importante. Trata-se de saber se um jornal deve publicar informação (escrita ou verbal) emanada de fontes credíveis e identificadas sem a contrastar com outras fontes, igualmente credíveis.

A notícia em questão baseia-se num relatório de uma instituição cuja credibilidade não pode ser posta em causa. Contudo, uma notícia baseada, apenas, numa única fonte é sempre uma notícia frágil. Como se sabe, a contrastação das fontes é um dever do jornalista, como aliás João Pedro Fonseca reconhece ao referir as tentativas feitas, nesse sentido, no domingo em que preparou o texto. Pode discutir-se se o ?princípio do contraditório? pode ser adiado para ocasião posterior, como veio a acontecer no caso em apreço. Não é o processo mais rigoroso, embora seja melhor que a omissão total. Mas, perante a impossibilidade real de apresentação conjunta de vários pontos de vista sobre informação que se considere inadiável (haveria que analisar, neste caso, também, esse aspecto) o jornalista pode sempre explicar aos leitores essa circunstância. O melhor será, contudo, cumprir velhas regras, entre as quais, documentar e enquadrar os factos, citar e contrastar as fontes, em cada notícia publicada.

Uma notícia baseada, apenas, numa única fonte é sempre uma notícia frágil. A contrastação das fontes é um dever do jornalista. Adiá-la não é o processo mais rigoroso, embora seja melhor que a omissão total."