Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"A mediatização da sexualidade", copyright Diário de Notícias, 17/3/03

"O que deve responder um pai a um filho de 8 anos que, depois de ver a primeira página do jornal, lhe faz a seguinte pergunta: ?Oh pai, o que é sexo oral????

Esta pergunta foi dirigida à provedora pelo leitor Pedro Portocarrero, a propósito da manchete do DN de 2 de Março ? Maioria dos portugueses pratica sexo oral. Outros leitores dirigiram-se também ao jornal, como se viu na edição do dia 7, na rubrica Meu Caro DN, onde surgiam duas longas cartas sobre a citada manchete, acompanhadas de uma resposta do director do jornal.

Um dado comum à posição manifestada pelos leitores é a reprovação da escolha do tema ?sexo oral? para manchete do jornal. Mas os argumentos que usam para contestar a decisão, possuem outros pontos comuns: a rejeição de que o seu protesto possa ser confundido com qualquer atitude de ?puritanismo? ou de ?apelo a valores morais?; a reivindicação da sua qualidade de leitores fiéis do DN; a evocação da marca ?jornal de referência? que querem continuar a encontrar no DN; a referência às crianças.

Como refere o leitor P. Portocarrero, ?(…) nem todos os factos merecem ser notícia. E ter honras de primeira página, é um privilégio? que só as notícias ?indiscutivelmente importantes? devem ter. Segundo o leitor, ?a notícia em causa pode ser importante para sociólogos, sexólogos, psicólogos?, mas será que o é para a maioria dos leitores? E pergunta: ?Quem faz o DN ignora as diferentes sensibilidades, níveis culturais e sociais, e hábitos comportamentais do público-alvo??

As perguntas são pertinentes. A elas respondeu, indirectamente, o director do DN, na edição do dia 7, admitindo a posteriori que terá ?avaliado por defeito a sensibilidade de uma parte dos leitores? do jornal. Explica o director que ?por arrogância intelectual ou puritanismo de fachada? se considerou ?durante décadas que, em termos noticiosos, essa era matéria menor e, portanto, reservada à imprensa dita popular?. Em sua opinião, ?os jornais de referência não devem passar à margem de aspectos mais polémicos e sensíveis do comportamento humano, nomeadamente, a vida sexual (…)?, acrescentando que a diferença se faz ?na forma e profundidade da abordagem?.

Vejamos: a sexualidade é um tema de inegável interesse público.

Tem sido, aliás, objecto de tratamento jornalístico e de discussão nos media, a propósito, por exemplo, da introdução da disciplina de educação sexual nas escolas. Inspirado na sugestão do Governo britânico, que terá aconselhado a prática de sexo oral para diminuir o número de adolescentes grávidas, o DN publicou um dossier sobre ?o comportamento sexual da população portuguesa?, do qual constavam, além de dados sobre a prática de sexo oral, números relativos à gravidez das adolescentes portuguesas, opiniões de especialistas sobre a sugestão do primeiro-ministro britânico e uma peça sobre o trabalho de duas psicólogas numa escola de Miranda do Corvo.

Entre todos eles, o DN escolheu para capa os dados relativos ao sexo oral, anunciando, a toda a largura da primeira página, que a Maioria dos portugueses pratica sexo oral.

Não está em causa, sendo mesmo natural e louvável, que o DN aborde um tema que ainda é visto como um ?interdito social?, mas sim que esse tema tenha sido apresentado no seu aspecto meramente mecânico e espectacular. É certo que o embaraço causado aos leitores por esse título resulta, sobretudo, do desvio para o espaço mediático de um domínio considerado íntimo.

Mas o que os leitores questionaram não foi a divulgação de um comportamento ligado à sexualidade, nas suas diferentes vivências, mas o lugar dessa informação na hierarquia das notícias e a ênfase que lhe foi conferida. Ao atribuir relevância excepcional à prática do sexo oral, comparativamente a outros aspectos da sexualidade mencionados no dossier, o DN transformou um comportamento natural e ?recorrente? (conforme se diz na peça) num fait divers desprovido de significação social.

Um jornal aberto à inovação e à rejeição de tabus, mais próximo do quotidiano dos cidadãos, que traga a público comportamentos, estilos de vida e mundos vividos é, certamente, algo que os leitores desejam e esperam do DN. Mas as preocupações manifestadas por muitos, a propósito de tendências que julgam desenhar-se ao nível da orientação do jornal e que os levam a ter dificuldade em reconhecer o ?seu? DN, devem constituir um sinal para os seus responsáveis.

Trata-se, é certo, de uma parte dos leitores, mas é, porventura, uma parte com capacidade de influência junto de actuais e potenciais leitores.

O DN tem uma história de prestígio que é a sua marca, com a qual ganhou um lugar na imprensa portuguesa de qualidade e um público fiel e exigente no qual, para além das ?classes dirigentes? citadas no seu estatuto editorial, se contam leitores das chamadas ?camadas populares?.

Não pode, pois, esquecer que essa identidade construída ao longo do tempo, uma vez destruída raramente pode ser refeita.

Bloco-notas

Estilos de vida ? Até há alguns anos matéria reservada, quase exclusivamente, a jornais populares e revistas ?mundanas?, os temas ligados aos comportamentos e aos estilos de vida ganharam peso com a expansão da televisão. Num contexto de valorização de tempos livres, esses temas favorecem o aumento do consumo de bens e serviços. Insere-se nessa estratégia a atenção dedicada pelos media a assuntos como a moda, a beleza, o sexo, a cultura física, a culinária, a decoração, as viagens, o automobilismo, entre outros. Criando novos públicos, estes temas criam, também, novos consumidores dos produtos que lhes estão associados e que, por sua vez, vão contribuir, através da publicidade, para a sobrevivência dos próprios media.

Novas metodologias ? Um excelente contributo para o estudo dos estilos de vida e da sua apresentação nos media é o último número de 2002, da revista European Journal of Communication, onde surge um conjunto de artigos dedicados ao tema. Entre eles, encontra-se o do investigador italiano Federico Boni, que analisa a maneira como a edição italiana da revista internacional Men?s Health, dirigida aos leitores do sexo masculino, constrói a identidade masculina. No que respeita à sexualidade, os resultados do estudo mostram que a imagem do ?novo homem?? apresentada pela revista corresponde à de um jovem ?algo feminino?. O estudo identifica como componentes de uma ?masculinidade imaginada?, veiculada pela revista, a saúde, a dieta, o exercício físico, o ?saber viver?, a moda e a sexualidade. Essa imagem não corresponde, contudo, à manifestada por grupos de leitores da revista ouvidos no estudo.

Novas abordagens ? As atitudes, interesses e opiniões dos cidadãos relativamente aos valores, aos estilos de vida e aos media são, geralmente, analisadas no âmbito de estudos de marketing, com objectivos de conhecimento das preferências das audiências em termos de consumo. Contudo, dada a crescente comercialização dos media, torna-se cada vez mais ténue a distinção entre o consumo de bens materiais e o consumo de ?bens simbólicos?. Daí que os estudiosos dos media dediquem cada vez maior atenção à cobertura de aspectos relacionados com os estilos de vida. Acresce que as implicações e as consequências do crescente interesse dos media pelos temas associados aos estilos de vida não se esgotam no estudo das actividades, interesses e opiniões dos inquiridos em estudos de mercado.

Conhecer os públicos ? Como mostram muitos trabalhos científicos, os estereótipos criados pelos media não correspondem, geralmente, a uma realidade concreta. Daí que se torne cada vez mais importante que os responsáveis dos media procurem conhecer os seus públicos, para além dos resultados obtidos nas tradicionais pesquisas de mercado. Com efeito, não é invulgar constatar que certas decisões editoriais reflectem desconhecimento dos públicos a quem se pretendem dirigir."