Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"A ‘orientação’ da informação", copyright Diário de Notícias, 14/4/03

"Nas democracias ocidentais, controladas por meios de comunicação social fortes e independentes, os governos organizam estratégias de comunicação com as quais procuram conseguir boa cobertura jornalística e minorar eventuais ?danos? causados pela vigilância sistemática e crítica dos media. A ?orientação? da informação constitui uma das formas mais subtis e eficazes desse controle. Essa ?orientação? exerce-se, sobretudo, em períodos de crise e em épocas de eleições, embora assuma, cada vez mais, um caracter permanente, necessário ao sucesso da governação.

Os americanos criaram a expressão spin doctors para identificarem os políticos e analistas que nas ?noites eleitorais? são destacados pelos staffs dos candidatos para comentarem os resultados, nas televisões. A expressão generalizou-se a outros campos, sendo aplicada a assessores, funcionários, jornalistas e a todos os que, de alguma maneira, procuram ?orientar? a discussão de um determinado assunto de maneira favorável aos seus pontos de vista.

Vem isto a propósito da presença, nas televisões portuguesas, de militares no activo como comentadores da guerra no Iraque. Segundo o Público (4/4) e o DN (10/4) a participação dos militares é coordenada pelo Ministério da Defesa e correspondeu a pedidos dos órgãos de comunicação social. De acordo com as notícias dos dois jornais, os militares escolhidos receberam dos seus chefes a recomendação de que se deveriam limitar às questões militares, técnicas e estratégicas.

Vejamos: a presença sistemática de militares fardados nos noticiários das televisões portuguesas, como comentadores, não teve paralelo noutras televisões europeias. Embora o facto de surgirem fardados possa não ser especialmente significativo, constitui o sinal de que se encontram a título oficial, mais propriamente, em representação do Ministério da Defesa. De facto, não seria natural que uma instituição fortemente disciplinada e habitualmente ?fechada? à informação, como é a militar, resolvesse distribuir alguns dos seus membros pelos canais de televisão sem autorização superior. Trata-se, pois, de uma ?missão? que, como referiu um assessor do ministro citado pelo Público, constitui ?uma oportunidade? para o País perceber que ?há gente nova com muitas qualidades?, o que, no dizer do DN, ?tem permitido potenciar perante o País a imagem de uma geração de oficiais já sem o estigma da guerra colonial e com formação elevada?.

Não existiu, pois, por parte do Ministério da Defesa, qualquer ambiguidade relativamente à presença dos seus representantes nos canais de televisão. Por outro lado, a disponibilidade manifestada pelo Ministério da Defesa e o formato adoptado, de selecção de ?comentadores residentes? (embora limitados a um tema e período específicos) possui algumas vantagens para as televisões. Em primeiro lugar passaram a dispor de comentadores em permanência e em exclusividade, o que lhes permitiu, nos primeiros dias, ?alimentar? emissões contínuas sobre a guerra. Em segundo lugar, não envolve custos. Em terceiro lugar, as novas técnicas de videografismo e as imagens virtuais ? que tanto parecem entusiasmar os pivots dos telejornais ? favorecem a representação televisiva da guerra. Finalmente, não é fácil ?recrutar? noutros campos do saber um tão elevado e habilitado número de pessoas permanentemente disponíveis para comentar a guerra.

Os jornalistas sentem sempre alguma incomodidade em reconhecer a dependência face às fontes oficiais. Contudo, como uma vez mais se provou, em situações de conflito armado é difícil fugir- -lhe. Os processos de controle da informação podem ser mais ou menos sofisticados mas nunca são politicamente neutros. A acreditação de repórteres, a organização de pools, a selecção dos locais a filmar e fotografar, as ?fugas? de informação, constituem formas de ?orientação? da informação. A selecção de comentadores, por parte de instituições com poder na sociedade, insere-se, também, nesse processo.

As televisões portuguesas procuraram contornar o problema, recorrendo, para além dos oficiais destacados pelo gabinete do Ministro da Defesa, a antigos chefes militares, o que, tendo embora contribuído para desgovernamentalizar o debate, não o desviou das estratégias militares. Na imprensa, a presença ?militar? foi menos evidente, embora o DN tenha chegado a publicar, na mesma edição (10/4), dois textos da autoria de um mesmo oficial (na reserva).

Ora, nas poucas vezes em que foi possível ouvir professores, investigadores e diplomatas debruçarem-se sobre a região e os povos envolvidos no conflito, constatou-se que existem outras perspectivas e abordagens que seria útil conhecer. Os ?directos? televisivos e os debates ?sobre a hora? são, evidentemente, importantes. Mas o trabalho jornalístico pressupõe, também, a capacidade de ir além do imediatismo, perspectivando e enquadrando os acontecimentos.

Bloco-Notas

Militares e jornalistas ? Na passada terça-feira, em que o Hotel Palestina, em Bagdad, foi atingido, tendo morrido e ficado feridos jornalistas internacionais que ali se encontravam a cobrir a guerra, o general Loureiro dos Santos, solicitado a comentar o relato feito pelo correspondente da RTP, Carlos Fino, que acabara de mostrar imagens dos feridos e de relatar a perplexidade que varria os correspondentes estrangeiros, expôs uma ideia que nem sempre se tem presente. Disse o general (cito de cor) que num conflito armado os militares e os jornalistas são campos com interesses opostos. Enquanto os militares pretendem manter o secretismo sobre determinadas operações, os jornalistas pretendem divulgá-las. A conciliação destas posições, afirma o general, deve ser feita através daquilo a que chamou uma entente cordiale.

Interesses coincidentes ? As palavras do general são confirmadas pelos investigadores que se dedicam ao estudo da informação em tempo de guerra. Contudo, se é certo que os campos militar e jornalístico possuem lógicas e interesses diferentes e mesmo opostos, também é certo que, em muitos aspectos, existem interesses coincidentes. Assim se explica, por exemplo, que os jornalistas sejam convidados frequentemente, pelos militares, a acompanhar actividades especiais ou de rotina e a participarem noutras iniciativas de relações públicas que proporcionam, geralmente, notícias favoráveis à instituição militar. Essas iniciativas mostram um domínio das estratégias de comunicação por parte da instituição militar que falta, por vezes, a outras instituições.

Vencedores e vencidos ? O enfoque jornalístico nas estratégias, no ?jogo? e na ?disputa? entre ?vencedores? e ?vencidos? constitui um dos aspectos mais evidentes da cobertura da guerra, não sendo, contudo, um seu exclusivo. A cobertura de campanhas eleitorais é, também, um exemplo elucidativo da tendência dos media para a discussão das estratégias (neste caso, eleitorais) em prejuízo dos temas de substância. Como mostram todos os estudos internacionais, as metáforas da guerra (e do desporto) são as mais presentes nas notícias sobre as campanhas.

Guardar as distâncias ? Alguns jornais noticiaram que jornalistas portugueses instalados no Hotel Palestina recusaram atender o telefonema de ?um elemento do Ministério da Defesa? após o ataque de que o hotel foi alvo, por recearem ?aproveitamento político por parte do ministro?.

A situação faz lembrar o caso relatado em Fev./2001 no magazine Brill’s Content, especializado na crítica dos media. Diz o magazine que o ex-presidente Bill Clinton recusou responder &agravagrave; pergunta sobre qual era o seu colunista preferido porque o seu assessor de imprensa lhe disse que qualquer elogio a um colunista lhe arruinaria a carreira. Neste caso, foram os jornalistas que quiseram ?ficar à defesa? e guardar as distâncias."