Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Os saberes do jornalista", copyright Diário de Notícias, 9/11/03

"?Erros, erros e erros?, diz a leitora Margarida Pereira-Müller, a propósito da edição do DN do passado dia 27. ?Não li exaustivamente (o jornal) como aliás nunca faço?, refere a leitora. ?Leio somente as notícias que me interessam ? e muitas vezes na diagonal. E mesmo assim, encontrei três erros?: ?centenas de milhares? ? quando deveria estar ?centenas de milhar?; ?Á margem da exposição? ? quando deveria estar ?À margem da exposição?; ?a maioria das pessoas que fuma se encontram? ? quando deveria estar ?a maioria das pessoas que fuma se encontra?. Pergunta, então, a leitora: ?Não seria uma boa ideia fazer pequenos cursos de reciclagem de Português aos jornalistas?? E acrescenta: ?Os meios de comunicação têm uma grande responsabilidade na divulgação da utilização correcta da língua portuguesa. O DN, como jornal de referência, tem essa responsabilidade acrescida.? Lamenta, pois, ?que se encontrem erros de português constantemente no jornal?, especificando que não se trata de ?gralhas?.

Vejamos: a leitora tem razão, não apenas na identificação e correcção dos três erros que aponta mas, também, na referência que faz à responsabilidade dos meios de comunicação social na difusão da língua portuguesa.

No que respeita à imprensa, a existência de erros no uso do português deve-se a vários factores, entre os quais o desaparecimento da figura do revisor, que deu lugar a um aumento das gralhas e dos erros; as novas tecnologias digitais, pelo imediatismo e autonomia que proporcionam, apesar das vantagens que, por outro lado, apresentam; a tendência actual dos formatos jornalísticos para a expansão da imagem e a redução do espaço dedicado ao texto, que obriga a um esforço de síntese na escrita e exige um domínio da língua que nem sempre existe.

A compressão da escrita devida a limitações de espaço possui, aliás, consequências a diversos níveis, desde o estilístico ao deontológico.

Por outro lado, a língua portuguesa não favorece a economia de palavras, ao contrário, por exemplo, da língua inglesa, rica em palavras monossilábicas (por isso se diz que o inglês ?é a melhor língua dos media?).

Se outras razões não existissem, estas seriam suficientes para que os responsáveis editoriais na imprensa, rádio e televisão reforçassem o controlo do uso correcto do português por parte de quem se expressa nesses meios. É claro que um controlo prévio é impossível em algumas situações, por exemplo, nos apresentadores e locutores de rádio e televisão, cuja intervenção se baseia muito no improviso. Contudo, é possível criar mecanismos que actuem a posteriori, procedendo-se, se for caso disso, ?à reciclagem? de que fala a leitora Margarida Pereira-Müller.

Apesar de as palavras da leitora se dirigirem especialmente aos jornalistas, a responsabilidade do uso correcto da língua abrange, contudo, todos os profissionais dos media, principalmente os da rádio e da televisão que contactam mais directamente com o público, aos quais, por não possuírem um estatuto profissional definido, não se exigem, geralmente, qualificações e comportamentos específicos nos planos cultural e deontológico.

Ora, o uso descuidado da língua é contraditório com a tradição literária de que o jornalismo português é herdeiro e que vem dos séculos XVIII e XIX. Essa tradição é marcada pelas ?incursões? no jornalismo de grandes nomes da literatura nacional como Herculano, Garrett, Eça, Ramalho Ortigão e outros, que lhe imprimiram uma feição literária que deu origem a um jornalismo mais centrado na opinião e no comentário do que nos factos. Tal como noutros países (a França é o exemplo mais significativo), em Portugal, no século XIX, o jornalismo constituía uma espécie de antecâmara para as ?profissões? da literatura e da política.

Por outro lado, os anos de censura à imprensa, em que os jornalistas se viam obrigados a escrever nas entrelinhas, ?burilou? o estilo e acentuou a importância dada à forma literária.

A herança literária do jornalismo português é visível, também, no facto de muitos jornalistas se tornarem escritores e de muitos dos que chegam aos lugares cimeiros na hierarquia de uma redacção se terem tornado conhecidos mais como autores de editoriais, comentários, análises ou crónicas do que como repórteres. Aliás, o ?jeito? para escrever constitui, ainda hoje, um dos principais critérios de entrada numa redacção. Trata-se, contudo, por vezes, mais de ?pirotecnia retórica? do que do domínio do estilo e das regras gramaticais.

A questão do uso correcto do português constitui, contudo, apenas um aspecto, embora dos mais importantes, de uma ?paleta de saberes? exigida a um jornalista. Nessa ?paleta?, incluem-se, também, outros saberes, alguns dos quais completamente ignorados, outros absorvidos por ?osmose? no dia-a-dia da redacção.

Contudo, o jornalismo não é mais encarado como uma função que pode ser exercida por ?qualquer um? com ?jeito para a escrita?. O jornalismo requer estudo, reflexão e discussão.

Bloco-Notas

Sobre o DN ? Alguns leitores solicitaram à provedora que comentasse as notícias sobre a situação interna do DN, nomeadamente, as posições vindas a púbico a propósito da escolha do novo director. Não compete, contudo, à provedora, pronunciar-se sobre essa matéria, uma vez que não pertence aos quadros do jornal nem integra qualquer dos seus órgãos, não participando, também, em reuniões de natureza editorial ou outra. A provedora toma conhecimento do conteúdo do jornal ao mesmo tempo que os leitores, exercendo-se a sua intervenção a posteriori. Contudo, alguma matéria publicada a propósito desse assunto, merece ser analisada.

Entidade independente ? Através de Mário Bettencourt Resendes, o DN teve o mérito de conceber a figura do provedor dos leitores como uma ?entidade independente perante a administração, a direcção e a redacção do jornal?, atribuindo-lhe, como missão principal a ?defesa dos direitos dos leitores?. Compete-lhe a ?análise das reclamações, dúvidas e sugestões respeitantes ao conteúdo jornalístico do jornal? possuindo, ainda, outras competências, como sejam a ?crítica regular do jornal, com base nas regras éticas e deontológicas? e a análise e crítica de ??aspectos do funcionamento e do discurso dos media que se possam reflectir nas relações com os respectivos destinatários?. O DN concebeu, pois, a figura do provedor dos leitores, de modo a garantir-lhe o máximo de liberdade e o máximo de responsabilidade. Ora, se existe alguma dificuldade no exercício da função (e existe) ela não reside no âmbito limitado das suas funções, mas, pelo contrário, na sua enorme amplitude. São, contudo, os leitores que ?moldam? a função, ao proporem e exigirem, como têm feito, respostas para questões que querem ver tratadas na coluna da provedora.

Comunicados a analisar ? Para além do caso pontual da nomeação do novo director, as posições dos órgãos internos do DN, expressas em comunicados vindos a público na última semana, contêm matéria susceptível de uma reflexão sobre o jornal. Por isso, a provedora procurará, em próxima oportunidade, analisá-las no que elas contêm de significativo sobre ?aspectos do funcionamento e do discurso dos media?, respondendo, assim, aos leitores que a solicitaram a fazê-lo.

Figura de retórica ? Alguns desses leitores chamam a atenção para o facto de, amiudadas vezes, a provedora criticar aspectos do jornal que são ignorados pela redacção. Perguntam, então, se o cargo é, apenas, uma figura de retórica. A esses leitores a provedora responde que, se é verdade que algumas vezes os seus reparos parecem não ser acolhidos pelo jornal, uma crítica dos media e do jornalismo é, não obstante, necessária. De facto, existem, hoje, estudos e experiências que proporcionam abordagens inovadoras do campo dos media, que seria ocioso ignorar."