Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Etnias, pobreza e oficialismo

 

"Nós, uruguaios, temos certa tendência a crer que nosso país existe, mas o mundo não sabe. Os grandes meios de comunicação, os que têm influência universal, jamais mencionam esta nação pequenina e perdida no Sul do mapa.

Numa exceção, há alguns meses, a imprensa britânica se ocupou de nós, nas vésperas da visita do príncipe Charles. Então, o prestigiado jornal The Times informou a seus leitores que a lei uruguaia autoriza o marido traído a cortar o nariz da esposa infiel e castrar o amante. O The Times atribuiu à nossa vida conjugal esses maus costumes das tropas coloniais britânicas: agradecemos a gentileza, mas a verdade é que não descemos tão baixo. Este país bárbaro, que aboliu os castigos corporais nas escolas 120 anos antes que a Grã-Bretanha, não é o que parece quando olhado de cima e de longe. Se os jornalistas descessem do avião, poderiam ter algumas surpresas.

Nós, uruguaios, somos pouquinhos, nada mais que 3 milhões. Cabemos todos num só bairro de qualquer das grandes cidades do mundo. Três milhões de anarquistas conservadores: não gostamos que ninguém mande em nós e custa-nos mudar. Quando nos decidimos a mudar, a coisa é séria. Agora sopram no país bons ventos de mudança. Já é hora de deixarmos de ser testemunhas de nossas próprias desgraças. O Uruguai perdeu muito tempo estacionado em sua própria decadência, desde a época em que supunhamos estar na vanguarda de tudo. Os protagonistas se tornaram espectadores. Três milhões de ideólogos políticos, e a política prática em mãos dos politiqueiros que tornaram os direitos dos cidadãos favores do poder; 3 milhões de técnicos de futebol, e o futebol uruguaio vivendo da nostalgia; 3 milhões de críticos de cinema, e o cinema nacional não passou de uma esperança.

O país que vive em perpétua contradição com o país que foi. A jornada de trabalho de oito horas foi imposta por lei, no Uruguai, um ano antes que nos Estados Unidos e quatro anos antes que na França: mas hoje em dia encontrar um trabalho é um milagre, e milagre maior é encher as panelas trabalhando nada mais que oito horas; só Jesus poderia se fosse uruguaio e se fosse capaz de multiplicar os pães e os peixes.

O Uruguai teve lei de divórcio 70 anos antes da Espanha e voto feminino 14 anos antes da França; mas a realidade continua tratando as mulheres pior que os tangos, e elas brilham por sua ausência de poder político, umas poucas ilhas femininas em um mar de machos.

O sistema de poder, um sistema cansado e estéril, não apenas trai sua própria memória, além disso, sobrevive em contradição perpétua com a realidade nacional. O país depende do campo, das vendas de carne, couro, lã e arroz ao exterior, mas o campo está em mãos de poucos. Esses poucos, que pregam as virtudes da família cristã, expulsam os peões que se casam e maltratam a pouquíssima gente que trabalha em suas imensas propriedades livres com a graça de Deus. Os médios e pequenos produtores recebem um peso por cada produto que vale dez, e acabam abandonando a produção para tentar a sorte em Montevidéu. A capital do país, centro do poder burocrático, congrega a metade da população nacional.

Há cada vez mais pessoas que vivem recolhendo lixo; e, no ritmo em que vamos, os produtores rurais caberão todos juntos num estádio de futebol, e vai sobrar espaço. Mas o Uruguai tem mais terra cultivável que o Japão e uma população 40 vezes menor. Aqui, quem quer terra para trabalhar recebe uma porta na cara; e quem consegue alguma terrinha, depende dos créditos que os bancos outorgam sempre a quem tem, jamais a quem necessita.

Em matéria de contradições entre o poder e a realidade, ganhamos os campeonatos mundiais que o futebol nos nega. No mapa, rodeado por seus grandes vizinhos, o Uruguai parece um anão. Nem tanto. Temos cinco vezes mais terra que a Holanda e cinco vezes menos habitantes. Contudo, são muitos os uruguaios que emigram, porque aqui não encontram seu lugar sob o sol. Uma população escassa e envelhecida: poucas crianças nascem, nas ruas se vêem mais cadeiras de rodas que carrinhos de bebês. Quando essas poucas crianças crescem, o país as expulsa. Exportamos jovens. Há uruguaios até no Alasca e no Havaí. Há vinte e tantos anos, a ditadura militar mandou muita gente para o exílio. Em plena democracia, a economia condena ao desterro muito mais gente. A economia é manejada por banqueiros, que praticam o socialismo socializando suas fraudulentas bancarrotas e praticam capitalismo oferecendo um país de serviços. Para entrar pela porta de serviço no mercado mundial, reduzem-nos a um santuário financeiro com sigilo bancário, quatro vacas atrás e vista para o mar. Nesta economia, o povo sobra, por pouco que seja.

Modéstia à parte, deve-se dizer tudo, também por bons motivos mereceríamos figurar no Guinness. Durante a ditadura militar, não houve no Uruguai um só intelectual importante, nem cientista relevante, nem artista representativo, nem um, disposto a aplaudir os mandões. E nos tempos atuais, já na democracia, o Uruguai foi o único país no mundo que derrotou as privatizações em consulta popular, no plebiscito do final de 1992, 72% dos uruguaios decidiram que os serviços públicos essenciais continuarão sendo públicos. A notícia não mereceu uma linha da imprensa mundial, ainda que fosse uma insólita prova de senso comum. A experiência de outros países latino-americanos nos ensina que as privatizações podem engordar as contas privadas de alguns políticos, como ocorreu na Argentina, no Brasil, Chile e México nos últimos dez anos; e as privatizações humilham, a preço de banana, a soberania.

O habitual silêncio dos grandes meios de comunicação evitou qualquer possibilidade mínima de que o plebiscito propagasse seu exemplo para fora das fronteiras. Mas, fronteiras adentro, aquele ato coletivo de afirmação nacional contra a corrente, aquele sacrilégio contra a ditadura universal do dinheiro, anunciou que estava viva a energia de dignidade que o terror militar quis aniquilar.

Valham estas linhas, se de algo valem, como fundamento de voto pelo Encontro Progressista. Oxalá as urnas confirmem, nestas eleições de 31 de outubro, a vocação respondona deste país paradoxal, onde eu nasci e voltaria a nascer.”

“Uma contradição chamada Uruguai”, copyright Gazeta Mercantil, 28/10/99

 

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