Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Eu falava o que elas queriam ouvir”

TT Catalão

 

A

imagem que temos do louco furioso, desconexo e babando asneiras é desmentida pelo assassino de mulheres Francisco de Assis. O que mais tem alarmado a sociedade nas entrevistas do chamado “maníaco do parque” é seu amplo repertório de imagens e o raciocínio em discurso estruturado. Aí a primeira questão: quem o chamou de maníaco foi a imprensa. Rótulo sem laudo. Apenas para dar figura ao que era suspeição.

Classificação adotada pela defesa pois, sendo insano, ele escaparia das grades para ser interno em um Manicômio Judiciário. Aquele mesmo que declarou o trágico Bandido da Luz Vermelha como recuperado. Até hoje não foi feita a exumação de seu corpo, assassinado em “maldita liberdade”.

O novo promotor Edilson Bonfim é radical em não aceitar esta classificação prévia de “maníaco” dada pela imprensa. “Ele é ardiloso e frio demais para ser louco. Seus surtos acontecem programadamente”, diz o promotor.

Esse, talvez, tenha sido o primeiro deslize da mídia, pródiga em precipitações e relapsa em apuração. O departamento de marketing fala mais alto que o compromisso com a informação. Na avaliação do jornalista Alberto Dines, um dos coordenadores do OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, na TV e na Internet, “até que a imprensa se comportou razoavelmente bem antes de o rapaz ser preso”. Manteve sua condição de suspeito com elogiosa isenção. A critica posterior vem pelo modo com que a sua “‘confissão extra-oficial” pode ter sido obtida pela revista Veja. A ética determina que o jornalista sempre se apresente como tal para evitar armações. Augusto Nunes, outro observador da imprensa, alerta contra esse artifício. Tal busca desesperada pelo furo compromete a credibilidade e poderia nos tornar maníacos por notícias.

A desenvoltura de Francisco para lidar com a mídia é surpreendente. Chegamos ao estilo de suspeitos com percepção globalizada do crime. “O cinema falado é o grande culpado”, diria Noel Rosa. Eles perceberam que a notícia, além de mercadoria, às vezes vem embalada como espetáculo. Lembremos do finado bandido Leonardo Pareja e sua rota espetacular de fuga com pistas vazadas para criar um clima on the road de dar inveja a seriado americano. Não se sabe se a compulsão de aparecer dos policiais contribui.

O caso é repleto de gente “comum que passa a ser alguém” mesmo pela lamentável porta do crime. Francisco foi pródigo em coletivas à imprensa. O clima de monstro superastro com fios, tumulto e microfones talvez tenha superado suas fantasias mais perversas.

Desde o momento da prisão ele já manipulava contradições de culpas da própria imprensa. Informava sua condição de suspeito e “alertava” para uma possível injustiça. A coletiva em São Paulo; o vazamento (ou peça publicitária da defesa) para a revista; o “encontro” com os pais da vítima em um programa de TV; os detalhes na confissão oficial e o quase regozijo para falar, falar, falar e mostrar lugares com requintes de prazer ao reconstituir cenas mostram a competência tragicamente performática de Francisco. A própria situação de caça internacional e clima de sensação reforçou nele o senso de que estava no centro das luzes.

A mídia percebe quando a morbidez dos detalhes alimenta suas entranhas. Uma espécie de insanidade de mão dupla, enquanto Francisco permite-se ao perverso usufruto da sua miserável vida como serial media e sua miserável vida alimenta a rede ávida por novidades.

Um outro componente da sociedade espetáculo ficou claro no principal argumento de sua sedução: as moças queriam ser modelos. Essa mística do eldorado das capas e papéis de estrela é a possibilidade de sair do nada para lugar nenhum. Uma chance para escapar da massa. Francisco declara cinicamente: “Eu falava o que elas queriam ouvir”. A narcose, mestra das técnicas de boa venda. Técnicas também usadas pelo político sem escrúpulos quando seduz com “fale ao povo o que ele espera, mesmo que nunca alcance”.

Francisco apresenta-se como sedutor pela fragilidade da presa que desejava “ser modelo”. Anuncia-se o predador, o caçador canibal. Alguma afinidade com a lógica da máquina do mercado cultural que expõe ao máximo, extrai tudo e deixa o bagaço. “Come” o sucesso pela saturação extrema. Comer é imagem chula para um tipo de macho que só se sente viril quando “come” o máximo de gatinhas. Francisco ainda mordia “para dominar”. E queria “engolir uma mulher inteira”.

Na verdade, a imprensa vem conferindo ao criminoso sua busca mais sagrada: a audiência. Esta grande moeda que impulsiona o negócio enquanto permite, ao mesmo tempo, a liberdade empresarial para vôos mais isentos de verbas “opinativas”, principalmente as oficiais. A audiência qualificada pode libertar a imprensa de ser refém das corporações. É a sagrada audiência que determina inserções. É o leitor-espectador quem confere poder real a um veículo. Seu capital maior, sua credibilidade.

No caso de Francisco, ele parece saber disso ao se expor em demasia para transitar como sujeito e objeto de sua patologia. “Vocês precisam da minha doença para que eu alimente a sua”. Isso foi dito por Charles Manson, um sádico assassino hippie americano queridinho dos astros do rock.

Francisco sente-se espetacular em mostrar pontos e formas do crime. Há alguma satisfação ao divulgarmos tal brutalidade como matéria. O tornamos mais vivo ao ampliar sua voz e imagem. Um desprezível ninguém passa a ser algo. Mesmo celebridade abjeta. Quanto mais espetacular ele se sentir, mais ele vai fantasiar seus casos. Vai assumir o que fez, o que não fez e o que nem pretendia fazer para ampliar a bestialidade.

E nós? Vamos apurar ou despejar, sem critério, sobre o público? Alimentaremos sua última canibalização sob nossa impotência?

Prova de sua extrema astúcia e de que apreendeu rapidamente os furos da lei e contou com as deficiências da investigação policial é que ele foi preso e solto cinco vezes. Prova de sua lábia para distorcer. Na melhor técnica utilizada pela mídia quando é tendenciosa ou sectária.

Além do Pareja já tivemos bandidos de QI alto como Mariel Mariscot, Lúcio Flávio e Ronald Biggs. Articulados e sedutores. Fariam até carreira meteórica como políticos ou jornalistas. O caso do assessor do ex-presidente americano Richard Nixon, Gordon Liddy, é um bom exemplo de circuito entre crime e carreira de sucesso de mídia. Liddy assumiu a principal culpa no caso Watergate, quando Nixon teve que deixar o cargo por ter sido conivente com a invasão dos arquivos da oposição. Liddy virou estrela de rádio em mais de 250 emissoras dos EUA. Ferina língua da extrema direita, chegou a ser citado por incitamento à violência pelo rádio: dava dicas de como atirar para matar em agentes federais, por conhecer os pontos vulneráveis no uniforme policial. Seu carisma de criminoso lhe rendeu palestras milionárias.

Como um idiota é subitamente alçado à situação de alvo da curiosidade, capaz de vender sua história a editores ou produtores cinematográficos? Será que algum agente já acertou com Francisco alguma exclusividade paga? Lembre o caso de Divine Brown, a prostituta que foi pega com a boca na botija do ator inglês Hugh Grant. E de Monica Lewinsky, que virou “garota-de-programa-de-governo” para a voraz oposição a Clinton.

Quando Gordon Líddy saiu da cadeia, não respondia aos repórteres – odiava-os. Watergate, afinal, foi um furo de mídia que derrubou um presidente e o colocou na cadeia, e sua promessa era voltar como “jornalista” para atacar como o atacaram. Conseguiu. Sua única frase nesta coletiva foi uma citação de Nietzsche: “O que não me destrói me faz mais forte”.

Francisco deve estar esperando a vez dele. Luzes não faltam. Até virar arquivo morto e ceder espaço à próxima atração. O show não pode parar.