Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Eugênio Bucci

BRASIL URGENTE

"Telejornalismo, povo e preconceito", copyright Folha de S. Paulo, 3/03/02

"?Brasil Urgente? é o novo telejornal popular da Rede Bandeirantes. O adjetivo ?popular?, aqui, eu o emprego de propósito. Note o leitor como essa palavra adquire uma conotação preconceituosa: indica um gênero bem marcado de noticiário, normalmente feito de delegacia, medo e futebol, que cai como uma luva (ou como chuteira) no gosto do povão, a turba indistinta que se farta de atrocidades e que sapateia na geral. Sendo produto desse preconceito, esse tal de jornalismo popular é uma aglomeração mal-acabada de baixezas criminais, reportagens apressadas e muita gritaria. Em tese, até poderia existir um jornalismo que tratasse de estupros, entre outros fatos mundanos, e que, ao mesmo tempo, fosse criterioso e elegante. Em tese, bem entendido. Na prática, jornalismo popular continua sendo isso aí, uma expressão equivalente a carne de segunda. Moída.

No meio desse mundo-cão do jornalismo, ?Brasil Urgente? estreou dando sinais de que teria vindo para superar as mazelas crônicas do gênero. A começar pelo apresentador, Roberto Cabrini, que tem o que se chama de uma reputação a zelar. Algumas de suas reportagens na Globo marcaram época, como a que localizou PC Farias, então foragido da Justiça. Se há um jornalismo nobre na TV, é o que Cabrini fazia (não por acaso, o termo ?nobre?, aqui, carrega o mesmo preconceito que o termo ?popular?, mas com os sinais invertidos). Agora, o ex-nobre Cabrini se vê engolido por um cenário plebeu: enchentes, autópsia de ET, crianças molestadas, um crematório americano que dá sumiço nos cadáveres. Poderá ele renovar o gênero?

Por enquanto, o que se tem é o seguinte: o jornalismo popular ganha Roberto Cabrini, um repórter reconhecido, e isso talvez seja bom para o público; em troca, Roberto Cabrini ganha o problemaço que é o telejornalismo popular, e isso não se sabe ainda se será bom ou ruim para ele, quanto mais para o público. Ele topou um senhor desafio, é verdade. Topou-o contra a corrente. Os melhores profissionais da televisão ainda torcem todos os narizes de que dispõem para os telejornais na linha crime-e-castigo. Daí que o jornalismo centrado no cotidiano dos brasileiros mais simples, cotidiano que envolve, claro, assuntos policiais, mas não só isso, ainda não foi bem feito entre nós. Sim, é preciso reconhecer que ?Cidade Alerta?, da Record, às vezes traz boas coberturas, como as que mostraram os protestos em Salvador contra o então senador ACM. Antes de ?Cidade Alerta?, o velho ?Aqui Agora?, do SBT, também teve bons momentos, apesar da sujeira que lhe era dominante. Mas nenhum deles conseguiu se livrar completamente do monstro do sensacionalismo, nenhum teve como escapar à fórmula de segurar a audiência na base da oferta de deformidades morais. Com isso, todo programa ?popular? vai se afundando mais e mais no popularesco. É uma sinuca de mau gosto, por assim dizer.

Ainda é cedo para saber se ?Brasil Urgente? vai se sair bem. Há pistas duplas. Às vezes, o apresentador tenta emprestar um ar mais digno ao programa, orientando o público sobre seus direitos, tomando partido de ações em defesa da cidadania, o que é sempre bom, mas não rende ibope. De outro lado, não lhe faltam horrores, tiroteios, discos voadores. Essa ambiguidade é inevitável; até mesmo para elevar o padrão do ?popular?, ?Brasil Urgente? precisa negociar com o popularesco, não há outro caminho. Junto da ambiguidade, porém, existe o risco, que é cada vez mais forte, de que o programa, ao se valer das atrações popularescas, acabe se tornando mais uma delas. Seria um triste desfecho. Cabrini seria então apenas um Gil Gomes mais escanhoado. Quanto ao gênero do jornalismo popular, ficaria ainda mais escravizado pelos seus próprios defeitos. Esse triste desfecho não está descartado. Ao contrário, é cada vez mais iminente."

 

QUINTO DOS INFERNOS

"Quem fundou o Brasil", copyright O Estado de S. Paulo, 27/02/02

"João, filho de Maria e irmão de José, não tinha o physique du rôle de um herói (que o filho Pedro tinha de sobra): branquelo, bochechudo, feio, tímido, tristonho e gorducho, foi sempre retratado com um olhar entre mortiço e lúbrico, sem nunca exibir aquele brilho altivo, próprio dos campeões. Maria, a mãe rainha, era louca e, após a morte do herdeiro, José, coube-lhe reger sem reinar até ela morrer na América distante, onde foi aclamado el-rei Dom João VI. As maledicências de sua corte atravessaram o Atlântico e dois séculos. Das alegadas diferenças físicas entre seus nove filhos surgiu a imagem de um rei traído pela mulher, a feia e temperamental espanhola Carlota Joaquina. A imagem sem majestade, caricata até, se completa com a fama de glutão: consta que sempre carregava coxas de frango, seu acepipe favorito, nos bolsos engordurados do casaco.

Até que ponto essa imagem é justa ou injusta nunca se saberá, embora ela já tenha sido contestada por uma obra clássica (sua biografia escrita por Oliveira Vianna) e a correspondência do rei com a rainha tida como adúltera fosse de uma ternura imprópria para um casal que teria vivido às turras.

Nunca se saberá se os boatos que viraram história tinham fundamento ou se não passavam de intrigas cortesãs, próprias das sociedades ociosas e assustadas, como o era a portuguesa na virada do século 18 para o 19, à sombra cruenta do corso à frente dos poderosos e sanguinários exércitos franceses. Tudo isso, apimentado pela natural ojeriza republicana à Coroa e pela imaginação de escritores como João Felício dos Santos, cujo perfil da rainha terminou virando a última palavra sobre a espanhola que colecionava amantes e detestava o Brasil.

Mas há fatos históricos que não podem ser negados. Hoje já se reconhece que a fuga da corte portuguesa para o Brasil foi a melhor fórmula de o Estado português sobreviver ao conflito entre ingleses e franceses pelo controle da Europa. Se o lance resultou da tibieza ou de uma hesitação doentia de Sua Majestade pouco importa. Importa é que ele resultou magistral. Não apenas pela oportunidade de fugir do alcance das tropas de Bonaparte, mas principalmente por permitir a Portugal perpetuar-se e fortalecer-se no outro lado do oceano.

Já que o país que resultou dessa jogada, o Brasil, disputa hoje um lugar de mais destaque como líder dos países emergentes, depois do discurso do presidente Fernando Henrique na Assembléia Francesa e das vitórias obtidas pela diplomacia na Organização Mundial do Comércio, talvez tenha chegado a hora de elevar Dom João VI ao panteão dos heróis da Pátria, com importância idêntica à conferida a dois Pedros: o capitão das caravelas Pedro Álvares Cabral, que desembarcou em praias baianas, e seu filho Pedro de Alcântara, que se rebelou contra as cortes lisboetas às margens de um riacho paulista.

Se Pedro Álvares Cabral o descobriu e Pedro de Alcântara o tornou independente, Dom João VI, de certa forma, fundou o Brasil. Afinal, sua decisão de atravessar o mar e instalar a sede da Coroa do lado de cá, afrontando tradições, preconceitos e mesmo a lógica comum, foi completada com uma série de obras de sua lavra, sem as quais teria sido mais difícil o Brasil se livrar da condição colonial: abriu os portos, fundou o Banco do Brasil e trouxe para cá missões de cientistas europeus de renome. De volta a Portugal, reconheceu a independência proclamada por Pedro.

Quem duvidar disso pode observar as posições que Brasil e Portugal ocupam no contexto internacional contemporâneo e verificar se Dom João VI foi, ou não foi, um estadista de muito talento, muita sensibilidade ou muita sorte, que fez a coisa certa no momento certo, tirando proveito de uma situação adversa para dar a volta por cima com um estilo do qual os brasileiros sempre se orgulharam muito.

Essa discussão torna-se mais oportuna agora, pois a Rede Globo leva ao ar a minissérie O Quinto dos Infernos, uma vez mais achincalhando a imagem do rei, numa provável tentativa sub-reptícia de se livrar da própria responsabilidade pela avacalhação dos costumes nacionais de um tempo a esta parte, fabricando falsas raízes históricas para ela. Não devemos nos enganar: por mais devassa que possa ter sido a rainha Carlota Joaquina ou mais néscio que Dom João VI tenha mostrado ser, eles têm muito menos responsabilidade pela disseminação da ética do inferninho no Brasil do que o veículo que os detrata. Os brasileiros de boa-fé devem levar em conta que o pai do primeiro imperador tem mais responsabilidade pelo País sério, que se faz respeitar cada vez mais pelos parceiros mundiais, do que pelo afrouxamento dos laços morais, pelo qual a cupidez mercantilista dos barões da comunicação eletrônica é muito mais culpada do que eles ousam confessar. (José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde)"