Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Eugênio Bucci

REALITY SHOWS

"Nem mesmo a mínima ética", copyright Folha de S. Paulo, 28/04/02

"Não faça com os outros o que você não quer que façam com você. Simples, não? Trata-se de uma norma básica de conduta, uma norma elementar, óbvia. É chamada de ?regra de ouro?, pois é um princípio ético universal que aparece em quase todas as filosofias morais, em quase todas as religiões. O que faz todo o sentido. Sem que se pratique minimamente a ?regra de ouro?, a vida em sociedade é inviável. Basta raciocinar pelo inverso: o que seria de uma comunidade em que cada um fizesse ao próximo exatamente aquilo que não tolera para si mesmo? Não vale responder que aconteceria o que vem acontecendo com as grandes cidades brasileiras. Seria um exagero. As metrópoles se deterioram a cada semana, sem dúvida, mas ainda há nelas um mínimo laço social; mesmo no pior caos urbano resta uma pontinha da noção de reciprocidade ética. Mas há um lugar brasileiro em que a ?regra de ouro? já foi pelo ralo. Esse lugar é a televisão: nela, o sujeito que manda no espetáculo impõe aos outros o que jamais admitiria para si. Parece um absurdo, mas é apenas um fato.

Comecemos pelo grotesco. O TV Folha da semana passada trouxe uma reportagem (?O barato das baratas?, de Carla Meneghini) sobre a dieta servida nessas gincanas calculadamente enojantes que estão na moda. Lá pelas tantas, os voluntários são obrigados a engolir minhocas, larvas, baratas. Uma apresentadora entrevistada pela reportagem declarou que não comeria nunca os ?pratos? que oferece aos convidados. Ou seja, ela mesma não aceita pôr na boca o que oferta aos seus astros anônimos. Alguém pode argumentar que não há nada de tão errado assim com a apresentadora bonitinha que, afinal, como dizem, só está divertindo a ?galera? (essa expressão, ?galera?, deveria ser considerada também um prato asqueroso). Não haveria nada de errado não fosse o fato de que seu cinismo reproduz, com ar de inocência, o traço dominante da TV contemporânea: o desprezo pelos outros. Aí, o que seria mera diversão adquire uma conotação mórbida. Os rituais de flagelação viraram uma epidemia nas TVs do mundo inteiro, todos sabemos, mas, no Brasil, eles contêm um requinte de humilhação de classe. Silvio Santos é exemplar nesse quesito. Ele gosta de atirar sobre o auditório notas de R$ 50 dobradas como aviõezinhos. Aí, enquanto suas ?colegas de trabalho? se estapeiam pelo dinheiro, o animador exercita sua gargalhada em falsete. Pergunto: ele recomendaria a seus familiares que fossem ali disputar um troco na base da unhada? De jeito nenhum. Silvio Santos, como a apresentadora desavisada, convida os outros a um ridículo que recusaria para a sua família.

Os programas de mais ibope são os que vão mais longe no esporte de humilhar. Nos auditórios sensacionalistas do final de tarde, as tragédias íntimas dos mais pobres, sempre os pobres, são convertidas em quadros humorísticos. Nos ?reality shows?, os competidores se mostram do avesso em troca de um instante de celebridade. Os animadores se fartam de rir. O vexame é dos outros, não dos animadores e muito menos dos magnatas da TV. Estes ficam de fora. Aos seus próprios herdeiros tentam proporcionar o que pensam ser uma boa formação, com escolas no exterior e tudo. Dificilmente recomendariam que seus filhos e netos que assistissem com assiduidade aos programas que oferecem todos os dias aos filhos e netos dos outros.

A televisão no Brasil não é apenas o lugar em que a ?regra de ouro? é invertida: ela muitas vezes é o assassinato da ?regra de ouro?, é o veículo para ofensas aviltantes contra o próprio público. A TV às vezes parece ser feita não para o povão, mas contra o povão, algo assim como um desaforo. A TV é o verdadeiro prato de vermes que vai goela abaixo dos outros, mas nunca é servido à mesa dos magnatas. Estes teriam vergonha. Ou nojo. Pelo menos isso."

 

"Globo e SBT estréiam ?pacotão? de reality shows", copyright O Estado de S. Paulo, 27/04/02

"O SBT e a Globo prepararam um ?pacotão? de reality shows, cujas estréias estão marcadas para a tarde de hoje. A Rede Globo lança dois programas de uma só vez: primeiro, o novo quadro Amor a Bordo, no Caldeirão do Huck, seguido pelo game musical Fama. Na mesma linha, está o programa Popstars, de Silvio Santos.

A maratona começa às 14h20, com o primeiro episódio de Amor a Bordo, apresentado por Luciano Huck. Serão sete homens e sete mulheres, jovens, bonitos e solteiros, que vão conviver durante 16 dias no iate Barco do Amor. No primeiro episódio, o grupo vai participar de um jantar de confraternização e já terá de eliminar quatro pessoas.

Eles dormirão em quartos coletivos, separados por sexo, e se ocuparão de jogos e outras atividades. Os vencedores terão direito a algumas horas na sala do amor, cujo clima romântico contribui para que o casal se conheça melhor. Com Amor a Bordo, o canal tenta bater o programa Raul Gil, que tem derrotado Huck no Ibope.

Às 18 horas, a Globo coloca no ar o programa Fama. Uma espécie de show de calouros requintado, apresentado por Toni Garrido. O reality show prentede revelar novos talentos na música. Por dez semanas, os 12 participantes terão uma rotina intensa na Academia Fama, com aulas de canto, dança, expressão corporal, técnica de voz e malhação.

Ao contrário do que o público acompanha nos recentes reality shows, Fama não vai mostrar a convivência de pessoas confinadas, mas dedicação delas para atingir o aperfeiçoamento musical. Por isso, existem 16 câmeras e microfones instalados por toda a academia, exceto nos dormitórios e nos banheiros. Todo dia, antes de Malhação, os telespectadores assistirão a dez minutos de programa. Já aos sábados, o game ocupará 80 minutos, ao vivo, da grade da Globo (hoje, em função do futebol, terá 30 minutos). A cada semana, cinco jurados escolherão quatro integrantes que devem abandonar a academia.

A música também é mote do programa Popstars, do SBT, que passará às 19h45. Em março, a emissora promoveu uma megasseleção de garotas, no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo. Lá, as 6 mil inscritas deveriam provar aos jurados que tinham boa voz. Foram escolhidas 2 mil concorrentes, entre 18 e 25 anos, que já iniciaram uma bateria de testes diários. Serão 20 capítulos de uma hora, transmitidos aos sábados, em que o público vai conferir o talento das participantes e a história de vida delas. Haverá ainda o Minuto Popstars, de segunda a sexta, às 20 horas.

?A cada etapa, os critérios do júri se tornam mais rigorosos e, por isso, as meninas têm de render mais?, explica a diretora artística, Fernanda Telles. ?Elas querem ser reconhecidas pelo talento, mais da fama e do dinheiro.? Cinco ganhadoras formarão um grupo, que poderá ser contratado por uma gravadora e gravar CDs."

 

"A tevê em busca de ídolos para os auditórios", copyright Jornal da Tarde, 27/04/02

"Durante muito tempo, as emissoras de televisão procuraram produzir astros da música popular por meio de festivais. A partir de hoje, a tentativa começa a ser feita com dois produtos híbridos, fusão de reality shows com programas de calouros. Seus nomes: ?Fama?, na Globo, e ?Popstars?, no SBT. Os próprios nomes indicam os objetivos comerciais dos empreendimentos; não há nada neles que remeta o público para a arte da música.

As tevês precisam de lenha para queimar nos programas de auditório. A rapidez com que se gasta um gênero musical, com que se desgasta um ?artista? gerado no próprio sistema, obriga a uma velocidade na renovação que os movimentos naturais da sociedade não provê. Na época do rádio, o sistema de renovação contava também com os artistas já famosos, que viviam mais integrados no meio do povo e indicavam jovens talentos para os programas de calouros. Hoje, os artistas são também autistas, não saem do seu mundo. A tevê (emissoras e público) não agüenta mais os trinados dos falsos sertanejos, os baladeiros chorões, os axés, os pagodeiros ensaiados como Menudos, os funks grosseiros. Engana-se quem pensa que o problema está nos intérpretes. Ele é mais profundo, está na própria música que se produz. E esses produtos híbridos, como os híbridos da natureza, não são férteis.

?Saia Justa? confirma qualidades

O segundo programa ?Saia Justa? (GNT, quartas, 21h) engrenou melhor, sem vacilos, com mais discussão, as participantes se expondo mais. A produção botou Mônica Waldvogel, Marisa Orth, Rita Lee e Fernanda Young mais juntinhas, aproximou os sofás, o que deu mais calor ao encontro. Descontração (Rita fazendo unhas, Fernanda retocando a maquiagem) não impediram uma farpinha aqui e ali. Elas colocaram pitadas de intimidade nos assuntos gerais, o que as torna muito mais próximas do telespectador. A personalidade das quatro está levando Marisa e Fernanda a se destacar, são mais loquazes. Discutiram, a certa altura, a pedofilia dos padres católicos. A pergunta: por que tantos casos agora? Fernanda Young: ?Provavelmente existe há muito tempo.? Uma denúncia encoraja outra. Que fazer com pedófilos em geral? Lee e Young, radicais: ?Pedofilou, estuprou, corta o pau.? Fernanda acha que homem tem de merecer o pau. Marisa, bem mais objetiva, ampla e exata: ?Tem muita mulher que abusa de menino e de menina. É adulto versus criança, gente.?

Celibato favorece?

A Santa Sé condenou a pedofilia; padre pedófilo vai pagar na Justiça. Deu na tevê: a Igreja não quis misturar na discussão o celibato dos padres e o homossexualismo. Correto. Pedofilia é um desvio sexual que não tem a ver com celibato ou homossexualismo. Um pedófilo pode ser casado e hétero. O problema é antigo. Qual ex-seminarista não sabe dele? Quem não ouviu falar de certos padres seculares e coroinhas? Outra coisa é padre que não resiste a mulher, algumas têm até filhos com eles. Quem gosta de menino, procura menino; quem gosta de mulher, procura mulher. A Santa Sé não quis que se confundisse uns com os outros, ou que o celibato justificasse o pedófilo.

Pelados no parque

Todas as tevês deram matérias sobre a foto da multidão de pelados que será feita no parque. Não conseguiram explicações para a motivação dos que querem participar da foto, sem ganhar dinheiro, sem ter 15 minutos de fama. As pautas focaram apenas as fotos. Seria interessante que as matérias mostrassem o lado prático, os problemas para realizar o trabalho. Como evitar indiscrições da imprensa amarela? E os voyeurs? Onde e como são guardadas as roupas dos pelados? E depois da foto, a fila para vestir a roupa? Uns ficam de olho nos outros?

Le Pen e as pesquisas

Não vi na tevê uma matéria que explicasse por que a votação do direitista Le Pen, na França, causou tamanha surpresa. Os telejornais disseram, ligeiramente, que as pesquisas não davam a ele o segundo lugar na eleição. Teria sido interessante que se fizesse uma matéria mais aprofundada sobre os institutos de pesquisa franceses, seus métodos, a razão do erro e da surpresa. Principalmente porque estamos, no Brasil, em época de pesquisas eleitorais."